O livro e suas múltiplas linguagens
Se, em sua origem etimológica, a palavra livro nos remete, conforme propõe, a uma superfície para a escrita, na contemporaneidade, este termo ultrapassa – e muito – a ideia de um conjunto de páginas escritas e encadernadas. Em um cenário no qual cresce, em termos quali e quantitativos, o número de livros publicados, nota-se uma recorrente e significativa preocupação não apenas com o conteúdo impresso em suas páginas, mas, também, com a sua materialidade. Elementos gráficos, tipologia, cores, formato, gramatura e tipo de papel empregado, acabamento, recorte, texturas são, assim, reconhecidos em sua função de construtores de sentidos e como possibilidades de expansão dos limites tradicionais do suporte. Em outras palavras, ao lado do texto verbal e das ilustrações, o projeto gráfico integra o processo de significação verbo-visual-sensorial no livro, espaço em que linguagens e meios “[...] se misturam, compondo um todo mesclado e interconectado de sistemas de signos que se juntam para formar uma sintaxe integrada” ().
Assim, se, por vezes, o aspecto material do livro foi relegado – “our automatic and learned response to books at times leads us to be unaware of their materiality, a materiality which fades into the background when we are passively reading [...]” () –, o que se observa, na contemporaneidade – talvez até como forma de sobreviver à efemeridade do contexto digital – é a ruptura com o modo automatizado de encarar o livro em sua dimensão material. O livro passa a ser concebido não apenas como um conjunto de textos verbais, mas um objeto no qual a materialidade, normalmente concebida como “a vehicle used to deliver a narrative, becomes a narrative […] challenging reading experiences” ().
Construído a partir de, pelo menos, três linguagens – texto verbal, ilustração e projeto gráfico – o livro-objeto, em razão de sua composição multimodal, implica uma leitura sinérgica, na qual as linguagens, assumindo a mesma hierarquia, precisam ser lidas em conjunto. Longe de se constituir como adorno, como aspecto que meramente torna o livro mais bonito e atrativo, o projeto gráfico constitui-se como uma terceira narrativa, que estimula e expande os sentidos suscitados pelo texto literário e pelas ilustrações. Conforme assegura , “when materiality adds a multimodal elements to picturebooks, reading becomes fluid and playful, endowing the text and images with deeper meaning through additional modes of expression”. Isso provoca, consequentemente, novas formas de leitura e percepção do livro, bem como um novo papel assumido pelo leitor, visto que, conforme propõe, “to read these books coherently, it is necessary to know these systems and to bring their possibilities and constraints into play”.
Ao leitor cabe, assim, um papel ativo, participativo, uma vez que experimenta conteúdos, formas, efeitos, funções, nova disposição espaciotemporal, sonoridades, deslocamentos, limites, levezas e estranhamentos, o que possibilita a ampliação das redes de conexões entre o leitor e a obra. Trata-se, desta forma, de uma leitura que “rely not only on verbal text which asks for a reader, and visual text that requires a viewer, but also on their materiality that often calls upon a player” ().
Ultrapassando uma leitura intelectual, cognitiva, a leitura do livro-objeto, em razão de sua materialidade, “blurs the boundaries between the body and mind, people and things, and their relational becoming in the presence of one another” (). Convidando-o efetivamente a contribuir com a (re)construção da narrativa, a tornar-se uma espécie de coautor, o leitor é envolvido em um ato que dele demanda não apenas a típica atenção cognitiva requerida pela leitura do texto literário, mas também seu envolvimento sensorial. Uma leitura na qual, portanto, além do prazer intelectual, tem a oportunidade de experimentar o prazer tátil e visual, uma vez que a leitura se torna um ato também performático, que envolve o leitor, inclusive, fisicamente.
É este tipo de leitura que desejamos evidenciar na obra de Antoine Guilloppé, autor e ilustrador que tem oferecido um conjunto de obras nas quais a materialidade, em diálogo com o texto verbal e a ilustração, assume claro potencial narrativo, contribuindo para a expansão dos sentidos suscitados e exigindo uma leitura multimodal.
Entrando na floresta: a obra de Antoine Guilloppé
Nascido em 1971, Antoine Guilloppé é autor e ilustrador francês com formação em design gráfico. Dentre as diversas obras do artista, destacamos a produção geradora de seu grande reconhecimento entre críticos e leitores, que teve início com o desenvolvimento da técnica que se utiliza do corte a laser para criar as ilustrações. Pleine Lune, Plein Solei e Ma Jungle, no original. São obras que se utilizam do papercut na construção narrativa.
As obras se aproximam pela temática e técnica, trazendo os animais e o ambiente de floresta em composições recortadas, nas quais é possível ver partes da página seguinte em função desses contornos. A escolha cromática é reduzida nos três livros, ainda que tenham diferenças entre si: em Pleine Lune, as cores limitam-se a preto e branco; em Plein Soleil, o dourado encontra lugar entre esse mesmo preto e o branco, na representação do sol e em detalhes de adereços dos humanos; em Ma Jungle, borboletas e pássaros são representados com cores diversas, contrastando novamente com o duplo preto e branco.
Para o presente artigo, analisaremos a obra Pleine Lune, publicada no Brasil pela editora Salamandra, em 2011, com o título Lua Cheia. A narrativa se desenrola a partir de um barulho que acaba por despertar todos os habitantes da floresta. No desenrolar da história, conhecemos alguns animais, noturnos – uma vez que nos encontramos em uma noite de lua cheia – que questionam a origem dessa agitação: lobo, raposa, coruja, cervos, morcego, javali e coelhos estão atentos para este mistério. No final do livro, descobrimos que o elemento provocador dessa inquietação era o nascimento de um bebê urso. Conhecer o enredo, no entanto, não é suficiente para a experiência de um livro-objeto, como descreve Ulises Carrión
Em um livro da velha arte as palavras transmitem a intenção do autor. É por isso que ele as escolhe com cuidado. Em um livro da nova arte as palavras não transmitem nenhuma intenção; servem apenas para formar um texto que é um elemento do livro, e é este livro, em sua totalidade, que transmite a intenção do autor. ()
Em outras palavras, a leitura do livro-objeto é multimodal, uma vez que “um livro é formado por diversos elementos, um dos quais pode ser o texto” (), sendo seu produto final o resultado do diálogo entre as linguagens e técnicas narrativas, que nos oferecem uma experiência leitora única e individual, não se restringindo, assim, à narrativa verbal. Lua Cheia é uma amostra disso.
A capa da obra já nos oferece chaves interpretativas da narrativa: as cores preto e branco intercaladas pelo recorte do papel – que fazem com que o leitor veja através da folha; a lua cheia, que ilumina, mas também cria sombras e contrastes. A capa é composta por uma jaqueta, a qual, além de proteger o livro, oferece o primeiro contato do leitor com a técnica que será usada em toda a narrativa de corte a laser. Ao retirarmos a jaqueta, podemos ver a reprodução dessa imagem, sem o papercut, em capa dura.
No texto verbal, algumas palavras se destacam, tanto visualmente – em tamanho maior que o restante (ver Figura 2) – quanto em termos narrativos, dando o tom da história que está sendo contada. Além de criar ritmo e tons diferentes de leitura, essas palavras são um fio condutor para o leitor, visto criarem relações com o título, Lua Cheia, e com as escolhas cromáticas da obra – predomínio do preto e branco. Entre essas palavras, destacamos para esta análise as seguintes: noite, perigo, medo, preocupado e mistério.
Papercut: linguagem narrativa
Ao nos depararmos com um livro-objeto, devemos levar em consideração todas as escolhas autorais e editoriais e suas contribuições para a construção de sentidos da narrativa. No livro Lua Cheia, encontramos a técnica de papercut, que consiste em recortes a laser no papel, criando silhuetas recortadas e vazadas. Essa escolha específica para a criação das ilustrações interfere diretamente no aspecto material da obra. As imagens são criadas a partir da própria página recortada que, por meio dos espaços vazios e contraste com a página seguinte, faz com que a ilustração nos seja revelada. Notamos aqui como o papel deixa de ser um mero suporte para se tornar a própria ilustração.
Essa técnica afeta o leitor justamente na ausência. A leitura é feita por meio dos vazios em contraste com a página seguinte: o que lemos é a presença e a ausência em consonância. Podemos pensar nessa folha do livro como uma potência, que ao ser recortada e, assim, privada de sua presença na versão final do objeto livro, ganha força. escreve sobre essa relação da potência, a qual é definida pela possibilidade do seu não exercício: “há uma forma, uma presença daquilo que não está em ato, e essa presença privada é a potência”. A leitura da ausência, nessa obra, é construção poética, literária, é o que leva o leitor a adentrar a floresta e experimentar os sentidos das cores, palavras e traços. “A exposição da impotência, então, faz com que o sujeito do ato criativo seja aquele que experiencie um campo de forças em tensão, entre potência e impotência, poder e não poder” (). O leitor de Lua Cheia está nesse lugar de leitura da potência, pelos significados imagéticos construídos pelo vazio, pela não presença do papel.
A ausência material das páginas cria significados por meio dos quais podemos ler a narrativa. Em cada cena, um animal diferente em silhueta é mostrado, camuflando-se na noite, e nós, enquanto leitores, só conseguimos observá-lo pelo reflexo da própria lua cheia: pelo branco do outro lado da página.
Devido à técnica de corte a laser, as páginas podem acabar se tornando frágeis ao manuseio, uma vez que os animais são formados a partir de espaços de ausências, através dos quais podemos ver o outro lado. Tal recurso cria frações finas e delicadas de papel, como podemos observar nos ramos e folhas das árvores na Figura 3. No entanto, essa fragilidade é compensada pelas possibilidades de interpretação que acabam por se expandir no momento da leitura desses vazios.
Fundamentos do Design Gráfico
Ellen Lupton, em seu livro , apresenta alguns dos elementos da linguagem visual. Selecionamos, entre eles, os que dialogam mais fortemente com a narrativa criada por Guilloppé. Esses recursos não são usados de maneira gratuita, mas de forma a ampliar a narrativa, à medida em que contribuem para a construção de significados, como observaremos a seguir.
Cor
Pastoreau, historiador francês, em seu livro , discorre sobre como o ser humano sempre teve medo do escuro, mas, mais do que isso, ele afirma: “medo da obscuridade e de seus perigos, medo dos seres que vivem no escuro e nele rondam, medo dos animais cuja pelagem ou plumagem é da cor das trevas; medo da noite, fonte de pesadelos e de perdição” (). Esse medo vem da época em que a humanidade ainda não havia dominado o fogo e, portanto, a luz. O domínio do fogo foi um avanço, “o imenso medo das trevas começou a perder terreno. O escuro não era mais totalmente escuro” (). O autor ainda defende que, apesar de não haver muitas simbologias universais para as cores, em diversas sociedades o preto está ligado à noite: “uma noite ambivalente, até ambígua, mas sempre e em todo lugar inquietante ou destrutiva, que fecunda ou tranquiliza” (). Em outras palavras, devemos pensar a cor como uma construção social, mas não podemos esquecer que o preto, por meio da noite, está ligado de maneira arquetípica ao ser humano.
Com isso, retomamos às palavras que definimos como norteadoras da história de Lua Cheia: noite, perigo, medo, preocupado e mistério. A cor preta, que se destaca desde a capa, está presente não por acaso, mas para conduzir o leitor, por meio do literário e poético da cor, a esse sentimento que permeia a narrativa. O escuro da noite é o espaço-tempo das figuras que o ser humano teme e não compreende, que se esconde longe da luz do dia, a claridade que parece amparar os olhos humanos que não estão preparados para enxergar na escuridão. Esse medo é transportado para os animais da floresta que, acostumados à calmaria da noite, escutam barulhos que não conseguem identificar. O negro que toma conta das páginas cria a sensação, para o leitor, do que está sendo sentido pelas personagens. Nas palavras de Lupton,
a cor pode exprimir uma atmosfera, descrever uma realidade ou codificar uma informação. Palavras como "sombrio'; "pardo" e "brilhante" trazem à mente um clima de cores e uma paleta de relações. Os designers usam a cor para fazer com que algumas coisas se destaquem (sinais de advertência, por exemplo) e outras desapareçam (camuflagem). A cor serve para diferenciar e conectar, ressaltar e esconder. ()
A cor preta, em conjunto com todos os outros elementos do livro, traz a potência da noite. Porém, em contraponto, temos também a cor branca, bastante presente nessa narrativa. Esse contraste se apresenta desde a capa e acompanha o desenrolar da narrativa, que trata sobre incertezas – pelo desconhecido e preocupação – mas também sobre nascimentos e renovação – com o bebê urso ao final do livro. Kandinsky, sobre essas cores, ensina-nos que “o preto tem sempre uma ressonância trágica. É o silêncio sem esperança" (); quanto ao branco, o autor afirma que é o “silêncio que se situa antes de toda a nascença, pleno de promessas e de esperanças" (). Podemos pensar, a partir das colocações de Kandisnky, a presença dessas cores na narrativa. Observamos a ressonância do trágico que espreita os animais, o mistério que traz uma desesperança acerca da floresta por meio do preto; em contraponto, temos o branco, repleto de esperança, na figura do bebê urso que nasce no meio da noite, envolto em folhas brancas (Figura 4), trazendo, de alguma forma, luz para o ambiente.
A noite, como descreve , é ambígua, e temos os dois lados dela nessa narrativa, por meio do jogo entre preto e branco. E, nesse caso, vale a pena ressaltar, elas não se fazem presentes como opostas, mas como intimamente entrelaçadas: é medo e mistério, mas também espaço de possibilidades e de vida.
Textura e camadas
A textura, como diz Lupton, “é o grão tátil das superfícies e substâncias. As texturas em nosso meio ambiente ajudam a entendera natureza das coisas” (). Em Lua Cheia, temos essa estrutura de papel recortado que cria uma textura, tanto “concreta quanto virtual” (). Ou seja, sentimos o recorte na superfície do livro, empregado no papel, e percebemos a aparência visual dele também, cheio de texturas visuais, se transformando na floresta ou até na pelagem dos animais (Figura 5).
O próprio papel possui textura por si só, e essa escolha já afeta o leitor, pois “texturas palpáveis afetam a maneira como uma peça é sentida pela mão, mas também afetam sua aparência” (). Em Lua Cheia, temos um papel liso com uma gramatura bem grossa. No entanto, originada pelo papercut, é criada uma textura áspera que o leitor sente ao passar as mãos pelas páginas.
A ausência de papel, que cria as imagens, convida para uma leitura sensorial, em que exploramos toda a dimensão da página não apenas com os olhos, mas também com as mãos, sentindo os espaços, as texturas e o papel liso nos desníveis entre recortes. Portanto, ao percorrer as mãos pelo livro, o leitor percebe um leve arranhar na pele. Experimentamos, ao tocar as páginas, a sensação de quando estamos no escuro, buscando o caminho com nossas próprias mãos. Estamos dentro da floresta, em noite de lua cheia, sentindo as árvores e tateando nosso entorno em busca do caminho que devemos seguir.
O livro ainda nos indica esse caminho por meio das camadas, que são “componentes simultâneos e sobrepostos de uma imagem ou sequência” (). Nas imagens que tocamos, podemos perceber a página de cima e a que fica por trás dessa primeira, dois elementos simultaneamente sentidos. Essa sensação igualmente colabora com a construção da textura e do querer virar a página, descobrir o que está por trás dessa imagem. Tal sobreposição ainda nos leva para o contexto da floresta, em que galhos, folhas e plantas criam essas múltiplas camadas, que são traduzidas na narrativa pelos recortes do papel formando as ilustrações. Lupton assegura que
a beleza da textura no design encontra-se, com frequência, na pregnância de sua justaposição ou contraste [...]. Colocando uma textura em relação a outra, oposta ou complementar, o designer pode amplificar as propriedades formais únicas de cada uma delas. ()
Reforçamos, portanto, a relação da textura com as camadas espaciais na narrativa de Lua Cheia, uma vez que percebemos não apenas visualmente, mas também de maneira tátil essa relação – construída pelo corte a laser do papel – que cria imagens dessa noite na floresta em que estamos inseridos.
Figura/fundo
O livro Lua Cheia, em toda sua visualidade e técnica, cria, principalmente, uma relação de figura e fundo nas páginas, “relações [que] definem a percepção visual. Uma figura (forma) é sempre vista em relação ao que a rodeia (fundo)” (). Ou seja, as imagens geradas pelo papercut, ao criarem espaços positivos e negativos, sugerem, automaticamente, uma relação figura fundo com a página seguinte, abrindo espaços para a visualidade, uma vez que “uma forma preta num campo preto não é visível, pois sem separação e contraste, a forma desaparece” ().
As ilustrações na narrativa de Guilloppé, por meio desse fundamento do design, se alternam entre o preto e o branco, sugerindo uma dupla leitura de cada imagem ao longo do livro. Na Figura 6, podemos notar como a página dos coelhos, inicialmente figura branca no fundo preto na ilustração, se transforma em figura preta no fundo branco, com cada uma trazendo elementos novos para a narrativa – antes cobertos pelas folhagens que escondiam os próprios coelhos. As pegadas nos guiam a favor da leitura ocidental (da esquerda para a direita), indicando que esse é o movimento para desvendarmos esse som. No entanto, quando de fato viramos a página, os coelhos estão virados para a esquerda: estamos sozinhos daqui por diante. Os coelhos, escondidos, se negam a seguir com a narrativa, indicando fisicamente para o lado oposto da leitura. Seguimos nós, leitores, as novas pegadas que surgem, pegadas maiores – que descobriremos depois serem dos ursos – para frente com o objeto livro.
A ilustração que, a princípio, se via branca no fundo preto, ao virar da página se torna preta no fundo branco – figura/fundo se invertem. Podemos pensar nessa relação como se olhássemos o espaço negativo e positivo causados ora frente e ora contra a luz da própria lua cheia da narrativa. O que é fundo se torna figura e vice-versa.
Podemos perceber outra construção de sentido nessa relação. Como descrito anteriormente, o tom da narrativa é algo de mistério, um barulho na floresta que deixa os animais preocupados. Essa inquietação das personagens também nos é revelada no movimento das páginas recortadas: os animais olhando de um lado para o outro em busca desse som que os mantém em vigília. Observamos, pelo menos, dois pontos de vista das cenas a nós apresentadas: as personagens olhando de um lado para o outro na floresta. A raposa olha inicialmente para a direita e, quando viramos a página, ela está olhando para a esquerda (Figura 7).
Essa possibilidade nos é oferecida pela técnica do papercut e a relação figura/fundo, que move a personagem pelo próprio objeto livro ao revelar a página seguinte.
A narrativa reforça esse barulho que acorda os habitantes da floresta e acaba nos parecendo constante. Esse som, ao final, era o filhote urso que nascia. Porém, ao longo do livro, existe um elemento que também cria ruídos, fazendo com que os animais se inquietem. Nós, leitores, produzimos um leve barulho ao virar as páginas. O papel de gramatura grossa se arrasta no movimento de leitura, criando um som de trovejar quando viramos uma página para ler a seguinte. As personagens viram a cabeça de um lado para o outro, junto à nossa ação de leitura, respondendo ao ruído que causamos dentro dessa floresta.
Escala
A dupla leitura causada pela ausência e contraste da técnica papercut pode ser pensada também como expansão para leituras múltiplas possibilitadas pelo vazio. A luz, aquela que o ser humano aprendeu a dominar – com o fogo – diminuindo assim seu medo do escuro, pode proporcionar uma amplitude física na leitura da obra de Guilloppé.
Pensaremos, a partir de agora, no conceito de escala:
A escala pode ser considerada tanto objetivamente como subjetivamente. Em termos objetivos, ela se refere às dimensões exatas de um objeto físico [...]. Subjetivamente, a escala alude à impressão que alguém tem do tamanho de um objeto [...], dependendo da maneira como ele se relaciona com nossos corpos. ()
As dimensões objetivas do livro Lua Cheia são de 32,5 x 30cm, com ele fechado, e 65 x 30 cm, com ele aberto. No entanto, subjetivamente, podemos ampliar suas imagens ao utilizarmo-nos justamente de luz: podemos projetar as ilustrações em uma parede ou outra superfície, com o auxílio de uma fonte de iluminação através das páginas (Figura 8).
Para ampliar a experiência, o ideal é que o leitor esteja em um ambiente escuro, reproduzindo, assim, a noite da narrativa. A atmosfera da história invade nosso espaço físico quando amplia sua escala.
Ultrapassamos as páginas dos livros ao expandirmos sua materialidade objetiva para uma imagem subjetiva, virtual, com a projeção de suas ilustrações. Fazemos, nós mesmos, o papel da lua cheia, iluminando os animais da floresta e criando ressonâncias da narrativa, produzindo luzes e sombras. Somos agentes do fazer nascer.
A materialidade do livro de Guilloppé nos convida a brincar com o movimento da luz, aproximando e afastando a fonte luminosa do objeto livro e observando esses resultados na parede. Quanto mais próxima a fonte de luz, menor a imagem projetada; quanto mais distante, maior é a projeção. A escala, nesse jogo de deslocamentos se alterna, por vezes, tomando todo o espaço do leitor, com as sombras dominando o espaço. Por vezes essa imagem fica ainda menor que as dimensões objetivas do livro, com os próprios leitores dominando essa sombra, em um jogo de escalas.
Outra possibilidade que se abre é a alternância cromática (Figura 9). Nós, enquanto leitores que manipulamos o livro, a luz e, consequentemente, a própria sombra, podemos nos utilizar de fontes de iluminação de cores distintas, trazendo assim novas atmosferas e sentidos. A cada nova cor que adicionamos, experimentamos uma nova composição poética com o elemento cromático construindo sensações físicas ao ambiente de leitura.
Essas projeções nos remetem ao teatro de sombras, uma arte milenar surgida na Ásia, que tem como princípio a linguagem das silhuetas. Em outras palavras, é uma forma de contar histórias por meio de sombras projetadas em uma tela em branco. Essa técnica está presente, de maneira implícita, na obra de Guilloppé, uma vez que dispomos, em nossas mãos, de uma possibilidade de projeção e uma potência narrativa gerada por meio das ausências do papercut. Tanto o teatro de sombras quanto o livro Lua Cheia, portanto, jogam com essa dualidade que foi vivenciada pelo ser humano ao longo da história: luz e sombra, claro e escuro.
Considerações finais
Alguns fundamentos do design, descritos por , ficam claros e foram mais explorados nesse artigo. No entanto, podemos ainda observar questões de hierarquia de informações no aumento de algumas palavras do texto verbal, padronagem das sugestões de folhas criadas nos recortes, tempo e movimento pela mesma manipulação que traz o jogo de escalas.
As leituras possíveis da obra de Guilloppé estão, principalmente, nas ausências: o vazio criado pela técnica de papercut que gera o negativo e a não figura, junto com a cor preta e branca que, por muito tempo, foram entendidas como não-cores e a projeção de sombras inapreensíveis. As ausências materiais, no entanto, não podem ser entendidas como ausências de significação, pelo contrário: elas estão presentes nessas ausências. A poética reside nesses espaços intencionalmente vazios.
As cores, o preto em contraste com o branco, que parecem distantes, são mostradas, incansavelmente, pela negativa como interligadas. Entramos, ao abrir o livro, em um conflito entre as potências de luz e sombra que, ao mesmo tempo, questionam constantemente essa antítese. Em todo o livro, temos esse diálogo entre as linguagens, as ilustrações, texto verbal e projeto gráfico, que nos apresentam elementos duplos. Tal como o medo da morte e a alegria do nascimento, ambos representados no livro.
Nós, enquanto leitores, apreendemos o objeto para além de suas páginas de papel. Podemos expandir as ilustrações criadas por recortes a laser para todo o espaço físico ao nosso redor, por meio de projeções, em uma ampliação visual da narrativa de Lua Cheia.
Esta obra pode ser vista como endereçada a todas as idades. Ainda que possua uma técnica na qual torna o manuseio frágil, podendo assim ser entendida como uma obra de arte, intocável, a narrativa transpassa todos os públicos. A criança, ao manipular as páginas, sentirá as texturas e camadas que formam parte dessa história sobre animais na floresta. Não devemos privar esses leitores de leituras, experiências e sensações. Afastamos, assim, o livro de um lugar do sagrado, e o aproximamos do leitor, que encontrará nos vazios formas de ampliar suas leituras. Um convite a experimentar, de diversas maneiras, o livro e sua materialidade.
Referências
2
Alaca, I. V. (2015). Materiality in picturebooks. Em B. Kümmerling-Meibaeur (Ed.), The Routledge Companion to Picturebooks (pp. 59-68). Routledge. https://doi.org/10.4324/9781315722986-7
3
Alaca, I. V. (2019). Materiality in Picturebooks: An Introduction. Libri & Liberi, 8 (2), 243–255. https://doi.org/10.21066/carcl.libri.8.2.8
5
Do Rozario, R.-A. (2012). Consuming Books: synergies of materiality and narrative in picturebooks. Children’s Literature, 40, 151–166. https://doi.org/10.1353/chl.2012.0013
13
Kümmerling-Meibauer, B. e Meibauer, J. (2019). Picturebooks as Objects. Libri & Liberi, 8 (2), 257–278. https://doi.org/10.21066/carcl.libri.8.2.1
15
17
18
Yannicopoulou, A. (2013). The materiality of picturebooks: Creativity activities. Em T. Kotopoulos (Ed.), 1st International Conference on “Creative Writing”. https://www.semanticscholar.org/paper/The-materiality-of-picturebooks-Creativity-Yannicopoulou/e97e203a3f450bc6551e0847cb886641a4cc1c76