Resumen
Este estudio se centra en la materialidad del libro infantil ilustrado La visita, de Antje Damm, desde una doble mirada analítica: verbal-visual y de recepción de la obra entre lectores brasileños de diferentes edades, a partir de reseñas escritas por usuarios de Skoob, una red social brasileña dedicada exclusivamente a los libros. El análisis verbo-visual señala que el texto visual no es meramente descriptivo, retrata estrictamente lo que está presente en el texto verbal. Por el contrario, la visualidad ofrece al lector algunas claves poderosas para la reflexión, permitiendo en ocasiones que la lectura de imágenes sea protagonista en la producción de significados. El análisis de la recepción muestra que los lectores perciben y resaltan la importancia y calidad de la visualidad en la construcción de la narrativa, además de expresar la capacidad del libro para evocar emociones de diferentes órdenes. Los lectores también señalan el poder de la obra para dialogar con diferentes grupos de edad, no restringidos a la audiencia infantil, a quienes originalmente estaba destinada. La visita es un libro ilustrado que requiere de lectores de todas las edades una mirada sensible y competente, con especial apertura al potencial de la visualidad.
Palabras clave:
O livro ilustrado sob diferentes olhares: uma análise verbo-visual e de recepção de A visita de Antje Damm
Camila Alves de Melo, Marília Forgearini Nunes
O livro ilustrado sob diferentes olhares: uma análise verbo-visual e de recepção de A visita de Antje Damm
Elos: Revista de Literatura Infantil e Xuvenil, núm. 9, 2022
Universidade de Santiago de Compostela
El libro ilustrado bajo diferentes vistas: un análisis verbo-visual y de recepción de La visita de Antje Damm
Picturebook from two perspectives: a verbal-visual and a receptional analysis of The visit by Antje Damm
Camila Alves de Melo a
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Marília Forgearini Nunes b
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Copyright © Universidade de Santiago de Compostela
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial-SinDerivar 3.0 Internacional.
Recibido: 15/09/2021
Aceptado: 04/03/2022
Resumo: Este estudo toma como foco a materialidade do livro infantil ilustrado A visita, de Antje Damm, a partir de um duplo olhar: o da análise verbo-visual e o da recepção da obra entre leitores brasileiros de diferentes idades, a partir de resenhas escritas por usuários do Skoob, uma rede social brasileira destinada exclusivamente aos livros. A análise verbo-visual aponta que o texto visual não é meramente descritivo, representando estritamente aquilo que está presente no texto verbal. Ao contrário, a visualidade oferece algumas chaves potentes de reflexão ao leitor, às vezes deixando que a leitura das imagens se sobressaia na produção de sentidos. A análise de recepção mostra que os leitores percebem e destacam a importância e a qualidade da visualidade na construção da narrativa, bem como expressam a capacidade do livro de evocar emoções de diferentes ordens. Os leitores também pontuam a potência da obra em dialogar com diferentes grupos etários, não se restringindo ao público infantil, a quem originalmente se destina. A visita é um livro ilustrado que exige de leitores de todas as idades um olhar sensível e competente, com especial abertura para as potencialidades da visualidade.
Palavras-chave: livro infantil; livro ilustrado; análise verbo-visual; recepção; A visita.
Resumen: Este estudio se centra en la materialidad del libro infantil ilustrado La visita, de Antje Damm, desde una doble mirada analítica: verbal-visual y de recepción de la obra entre lectores brasileños de diferentes edades, a partir de reseñas escritas por usuarios de Skoob, una red social brasileña dedicada exclusivamente a los libros. El análisis verbo-visual señala que el texto visual no es meramente descriptivo, retrata estrictamente lo que está presente en el texto verbal. Por el contrario, la visualidad ofrece al lector algunas claves poderosas para la reflexión, permitiendo en ocasiones que la lectura de imágenes sea protagonista en la producción de significados. El análisis de la recepción muestra que los lectores perciben y resaltan la importancia y calidad de la visualidad en la construcción de la narrativa, además de expresar la capacidad del libro para evocar emociones de diferentes órdenes. Los lectores también señalan el poder de la obra para dialogar con diferentes grupos de edad, no restringidos a la audiencia infantil, a quienes originalmente estaba destinada. La visita es un libro ilustrado que requiere de lectores de todas las edades una mirada sensible y competente, con especial apertura al potencial de la visualidad.
Palabras clave: libro infantil; libro ilustrado; análisis verbo-visual; recepción; La visita.
Abstract: This study focuses on the materiality of the picturebook The Visit, by Antje Damm, from two analytical perspectives: from the verbal-visual and the reception of the work among Brazilian readers of different ages, based on reviews written by users of Skoob, a Brazilian social network addressed exclusively to books. The verbo-visual analysis points out that the visual text is not merely descriptive. On the contrary, visuality offers to the reader some powerful keys for reflection, sometimes allowing the images to lead the production of meanings. The reception analysis shows that readers notice and highlight the importance and the quality of visuality in the construction of such narrative, as well as expressing this book's ability to evoke emotions of different orders. Readers also point out the power of the work in dialoguing with different age groups, not restricted to the child audience, to whom it was originally intended. The Visit is a picturebook that requires readers of all ages to have a sensitive and competent look, with a special openness to the potential of visuality.
Keywords: children's book; picturebook; verb-visual analysis; reception; The visit.
Introdução: ajustando o olhar
Este estudo parte da crença de que os livros infantis ilustrados convocam leitores de todas as idades à leitura, reverberando neles diferentes sentidos tecidos a partir de seus olhares sobre as relações entre as linguagens verbal e visual presentes em tais materialidades. Por isso, faz-se eco à defesa de Crouch (1972, p. 7, tradução nossa) de que “[...] não existem livros para crianças. Eles são um conceito inventado por razões comerciais e mantido pelo instinto humano de classificar e categorizar.”. Embora estejam disponíveis aos olhos de todos os leitores sem distinção, não significa que sua leitura seja de uma ordem menos complexa; muito pelo contrário, pois o livro, que possui imagens, embora “[...] inicialmente destinado aos mais jovens, a priori menos experientes em matéria de leitura, [...] se consolida como uma forma de expressão por seu todo, e não exige menos competência estabelecida e diversificada de leitura” (Linden, 2011, p. 7). A relação entre linguagens configura uma textualidade específica e, consequentemente, também uma leitura e um leitor característicos.
Em especial sobre a visualidade em livros infantis, Ramos (2020) assemelha a leitura desse componente à das obras de arte e argumenta que devemos “olhar livros como paisagens” (Ramos, 2020, p. 31), em um movimento contemplativo, atento aos detalhes e demorado. Um olhar imerso em uma complexidade que produz relações com a materialidade presente em nossas mãos, com o entorno e com as vivências de cada leitor. É por entender esse olhar enquanto “sentido sofisticado” (Ramos, 2020, p. 35) em uma “arte de olhar” (Ramos, 2020, p. 48) que este estudo se constitui.
Este trabalho focaliza o livro infantil ilustrado A visita de Antje Damm, lançando sobre ele um duplo olhar: o da análise verbo-visual presente na textualidade e o da análise de recepção da obra entre leitores brasileiros de diferentes idades, a partir de resenhas escritas por usuários da rede social Skoob, difundida no Brasil com objetivo centrado no compartilhamento de informações relacionadas a livros e sua recepção pelos leitores.
A visita é o primeiro título publicado no Brasil da escritora e ilustradora alemã Antje Damm. O livro foi publicado na Alemanha em 2015 e, ao longo dos anos, tem recebido diferentes prêmios, a exemplo do conferido em 2018 pelo The New York Times e pela Biblioteca Pública de Nova York, que o elegeram como um dos dez melhores livros infantis ilustrados do ano, além de diversas outras premiações de organizações alemãs (Prêmio Troisdorf de livros ilustrados, Prêmio da Feira do Livro de Leipzig e Prêmio da Livraria Infantil Neverland em Mainz Gonsenheim).
O livro popularizou-se no Brasil após ter sido escolhido, em 2020, para a ação “Leia para uma criança”. Essa ação é promovida anualmente pelo Itaú Social desde 2010, tendo atingido a marca de 57 milhões de livros físicos distribuídos até o ano de 2009, sendo 53,4 milhões para pessoas físicas e 3,6 milhões para organizações da sociedade civil, bibliotecas comunitárias e escolas públicas (Itaú Social, 5 de outubro de 2020). A ação envia anualmente livros (2 ou 4 exemplares, conforme o ano), de forma gratuita, àqueles que preencherem um breve cadastro via internet. A cada ano uma coleção de livros é escolhida para ser distribuída, e essa seleção acontece via edital público, a partir do qual as editoras submetem suas obras para análise de uma comissão composta por diferentes agentes: “[...] especialistas em literatura infantil, mediadores de leitura, organizações da sociedade civil, bibliotecas comunitárias, secretarias de educação, cultura e assistência social, voluntários do Itaú Unibanco, adultos e crianças de diversas regiões do país” (Itaú Social, 5 de outubro de 2020, s/p). Para a coleção de 2020, os dois livros selecionados foram: “A visita”, de Antje Damm, e “Com que roupa irei para a festa do rei?”, de autoria de Tino Freitas, com ilustrações de Ionit Zilberman. Para o referido ano, a expectativa da instituição era distribuir 3,6 milhões de exemplares e mais 600 mil coleções destinadas exclusivamente às organizações da sociedade civil, às bibliotecas comunitárias e aos municípios parceiros (Itaú Social, 5 de outubro de 2020). Tais números dão uma dimensão do alto volume de circulação dessa obra nas mãos de vários leitores brasileiros.
Olhares para as cores de Elise e Emil: uma análise verbo-visual
A visita tem como personagens Elise e Emil, e o que dá cor ao livro, literalmente, é o encontro dos dois. A história é ambientada na casa de Elise, impecavelmente arrumada por ela, uma mulher um tanto medrosa e que, em consequência disso, não sai de seu “refúgio”. Porém, um dia, um aviãozinho de papel chega à casa de Elise pela janela, quando ela a abre por alguns minutos. Elise, medrosa que é, queima o brinquedo e perde o sono assustada com o acontecido. No outro dia, Emil bate em sua porta perguntando pelo avião e manifesta estar “muito apertado”. Para a surpresa do leitor, o pedido provoca reações de Elise que, além de indicar o banheiro, ainda lê para o menino, brinca com ele e prepara uma fatia de pão com manteiga. Depois desse encontro, Emil vai embora e Elise demonstra tristeza, mas abre a janela e começa a ensaiar dobraduras em algumas folhas de papel até conseguir um aviãozinho perfeito.
O objeto colocado sob foco de análise é um livro ilustrado, que de modo simples pode ser definido como um livro cujo texto verbal é associado a ilustrações, sendo que a relação entre esses dois modos de enunciar constitui um único enunciado. Segundo Sipe (2008), quando navegamos pelas páginas de um livro ilustrado, tudo precisa ser observado, incluindo elementos editoriais e gráficos; não se pode iniciar a leitura pelas primeiras palavras da narrativa ou do poema, todos os elementos desde a materialidade do livro até o modo com que os elementos verbais e visuais se organizam nas páginas são importantes para a produção de sentido.
Em A visita, a articulação entre a parte verbal e a parte visual foi pensada de forma cuidadosa pela autora Antje Damm, e tal articulação tem a sensibilidade como estratégia principal, associando narração, diálogos das personagens e imagens. O texto verbal é narrado em terceira pessoa, por narrador heterodiegético, ou seja, que não é personagem da trama, e também onisciente, quer dizer, que sabe tudo sobre as situações e as personagens, inclusive seus sentimentos, como o medo sentido por Elise. Já o texto visual tem um processo de criação diferenciado, como mostra a Figura 1:
Figura 1.
A partir dessas fotos, podemos ver que o cômodo de entrada da casa de Elise, que é o cenário utilizado ao longo de todo o livro, foi criado dentro de um espaço tridimensional: uma caixa. Os objetos da casa também foram projetados em três dimensões, com acréscimo de desenhos para embutir detalhes. Alguns poucos objetos (como folhas de uma planta ou a chaleira), além de Elise e Emil, são as exceções criadas em duas dimensões, ou seja, foram desenhadas em papel, recortadas e adicionadas ao cenário. Antje Damm tem formação em arquitetura, ao passo que as composições e modelagens presentes na obra têm influência direta dessa profissão que hoje não exerce mais, dedicando-se exclusivamente à literatura.
Ainda sobre o processo de criação da autora, as cenas do livro são montadas dentro da caixa, posicionando objetos e personagens, adicionando elementos de luz e sombra e registrando as composições por meio da fotografia. Cada imagem fotografada ocupa uma dupla de páginas do livro, conferindo aos leitores uma perspectiva panorâmica do cenário das ações narradas. Inclusive, por se tratar de registros fotográficos, podemos inferir que o cenário sempre foi colorido e que a autora tenha utilizado recursos de edição de imagem para lhe conferir as cores neutras presentes nas primeiras páginas da história, em um processo inverso ao que acontece na história, como será abordado a seguir. Além disso, as fotografias ocupam a totalidade das páginas, sem que haja margens ou espaços exclusivamente reservados ao texto verbal. Talvez seja possível dizer que, nesta obra, o texto verbal é que está subordinado ao texto visual e não o contrário, visto que a disposição do texto verbal na página não se dá em um local fixo, convocando o leitor a percorrer o olhar pela página e suas imagens, antes de se deter à leitura do verbal.
Na análise da materialidade, observa-se que a primeira capa e a quarta capa (verso) reproduzem imagens em que Elise brinca com Emil (Figura 2), ou seja, não foi feita uma ilustração exclusiva para este fim. As cenas apresentam parte da história, antecipam ou oferecem informações privilegiadas ao leitor, convidando-o a iniciar a produção de sentido antes mesmo de abrir o livro. Na primeira capa, predominam cores quentes e vibrantes, como amarelo e laranja. Na quarta capa, embora ainda haja resquícios de amarelo, há uma predominância das cores frias, como azul e cinza.
Figura 2.
A versão original, em língua alemã, tem como título Der Besuch (A visita, em tradução livre), exatamente o mesmo título escolhido para a tradução em português. Porém, a edição alemã tem capas diferentes da edição brasileira (Figura 3), apresentando a parte do livro em que Elise escuta alguém batendo a sua porta e se pergunta se deve abrir ou não. Observa-se a presença exclusiva da cor amarela que ilumina a pequena janela no centro da porta, ao passo que o restante do cenário possui uma configuração cromática mais discreta, com o preto, o cinza e o branco predominando.
Figura 3.
Somente a edição brasileira tem a primeira e a quarta capas diferentes, tanto da edição alemã quanto de edições de outros países, como pode ser visto na Figura 4, que é um registro divulgado pela própria autora em seu perfil na rede social Instagram:
Figura 4.
As edições que não apresentam o colorido na capa deixam o leitor, ao visualizar as imagens presentes no exterior do livro, curioso por saber quem será a visita de que trata o título. A versão que predomina não dá indícios de quem é essa visita, a versão brasileira pode antecipar ao leitor quem é o visitante: uma criança cujos pequenos pés se mostram embaixo do armário na quarta capa. Se a capa “[...] é a embalagem do livro e tem como função apresentar o leitor ao objeto de leitura, seduzindo-o para voltar o seu olhar a esse objeto” (Ramos e Panozzo, 2005 apud Ramos e Nunes, 2013, p. 255), os dois projetos editoriais cumprem com esse objetivo, embora a edição que predomina traga mais elementos de mistério ao leitor sobre o conteúdo. Além disso, a configuração cromática também revela intencionalidades diferentes ao convite, e pode-se inferir a concepção de texto voltado para a infância associado à cor.
Ao abrir o livro, na sua edição em língua portuguesa, e folheá-lo, nota-se que no início da história as ilustrações são compostas por cores neutras, opacas: branco, preto, cinza e bege. Essas são as cores que dominam a casa de Elise no início do livro. As primeiras imagens configuram um espaço lúgubre onde a noite parece ser a constância, como mostram as primeiras páginas (Figura 5).
Figura 5.
Nesse espaço, a personagem Elise é também uma figura sem cor, apresentada apenas pelo contorno em preto, contrastando com o suporte branco para figurativizar o corpo, seu cabelo, sua roupa. A expressão facial e o corpo da personagem são tristes, revelam melancolia, aspectos que podem ser observados na Figura 6.
Figura 6.
Outras cores começam a aparecer na história na página em que o aviãozinho azul de papel entra pela janela aberta. As janelas revelam um tom vibrante e quente de amarelo, como se observa na Figura 7:
Figura 7.
Ao abrir a porta para Emil, as cores começam a invadir o interior da casa, a começar pelo menino que surge à porta vestindo calças curtas, boné vermelho e camiseta amarela. Ao entrar na casa, por onde passa, vai deixando no ambiente rastros de cores vibrantes, colorindo o chão, as paredes e os objetos, como mostram as páginas apresentadas na Figura 8:
Figura 8.
Uma das últimas imagens do livro é justamente igual à primeira, mostrando a casa de Elise antes preta e branca (Figura 9) e, ao final, preenchida de cores (Figura 10). Um claro convite ao leitor para voltar páginas e reler para comparar.
Figura 9.
Figura 10.
Na obra, passa-se gradualmente das cores neutras às cores quentes: “[...] amarelo, laranja e vermelho são cores expansivas, quentes, que criam atenção visual” (Ramos e Paiva, 2014, p. 439). Ao final, já se está imerso em uma aquarela de cores quentes e frias misturadas de forma a tornar a casa de Elise semelhante a um arco-íris. Os elementos de cor inseridos nas imagens, além de complementarem a experiência estética do leitor, têm todo um simbolismo na história. Pode-se analisar a inserção ou “ausência” do colorido de diferentes maneiras e em distintos momentos da narrativa.
No interior do livro, a primeira imagem a ser vista, na folha de rosto (Figura 11), é o quadro de Elise em sua juventude, antes de um baile e com seu vestido mais bonito, como relata para Emil ao longo da história. O retrato apresenta-se na mesma paleta de cores das primeiras páginas: branco, preto, cinza e bege. Porém, algumas páginas depois, Emil nota-o e questiona Elise sobre quem é a pessoa que está posando para a foto, ao passo que ela dá a explicação anteriormente referida. O fato de Emil estar perto do retrato e questionar Elise sobre ele provoca mudanças no aspecto cromático do registro (Figura 12), como se vê na comparação:
Figura 11.
Figura 12.
O retrato ganha cores, exibindo uma Elise corada e com vestes coloridas. Essa mudança contrasta com a mesma Elise, no momento em que é questionada pelo menino, parada no canto direito da imagem (Figura 12), ainda preenchida por suas cores neutras, embora já com algumas leves mudanças de tonalidade em comparação com o início da história. A sequência a seguir (Figura 13) mostra a evolução de Elise ao longo do livro, da primeira à última aparição da personagem:
Figura 13.
A sequência mostra as consequências da visita de Emil, não só para o ambiente, mas também para Elise. Gradativamente, a personagem vai abandonando suas expressões de medo, melancolia, indiferença e raiva em prol de um sorriso tímido que, ao fim, torna-se um sorriso marcado e sincero, com direito a bochechas coradas. Além disso, seu avental e vestidos, antes em cores neutras, ganham leves tons de rosa, aspectos que sugerem que a personagem ainda preserva suas características, visto não “adotar” cores vibrantes como as da casa, embora tendo sido, inegavelmente, contagiada pela visita de Emil.
Além das cores, há outro componente simbólico na história: o aviãozinho de papel é o elemento que anuncia a chegada da novidade, da cor e, talvez, da renovação na vida e na casa de Elise. Ao mesmo tempo, é esse elemento que relaciona Emil a ela, simbolizando o encontro das duas personagens e o desejo de uma nova aproximação, visto que, após a partida do menino, Elise começa a fazer a dobradura. Esse objeto tem tanto significado para a narrativa que é ele que finaliza o livro, aparecendo em destaque junto ao colofão, como mostra a Figura 14.
Figura 14.
A narrativa se encerra com o final do encontro entre Elise e Emil, mas o desejo de reencontrar o menino é manifestado por ela quando as duas personagens se despedem: “– Tchau, Elise. Sua casa é muito bonita! – ele falou e deu um tchauzinho. – Até logo, Emil! – disse Elise” (Damm, 2018, s/p). Ao dizer que a casa dela é muito bonita, Emil toca em um ponto sensível. Em função de não sair por causa do medo que sente, a personagem tem dedicação integral à casa, limpando-a com esmero todos os dias. O elogio de Emil à residência, mesmo que um tanto transformada desde sua entrada, faz com que Elise core como em nenhum outro momento ao longo da história (Figura 15). Esse corar pode indicar que Elise tenha ficado feliz por Emil ter valorizado sua casa, objeto de tanta dedicação. É a consecução de ações satisfatórias (ler, brincar, comer) em companhia de alguém interessado pela sua história de vida e que valorize aquilo a que dedica atenção e esmero, reconhecendo o esforço, que pode ter provocado a seguinte fala de Elise: “Até logo, Emil!”, em resposta ao “Tchau” do menino.
Figura 15.
Outro elemento que mostra a transformação provocada pelo encontro com Emil é o momento em que, após a partida do menino e durante a noite, ela coloca-se diante de diversas folhas de papel (Figura 16) e, depois de algumas tentativas e erros (estes simbolizados pelas bolinhas de papel amassado em volta da mesa), consegue fazer a dobradura de um avião (Figura 17). A mesma Elise que, algumas páginas antes, tinha sua noite de sono atormentada pela imaginação assombrosa de vários aviões de papel, ao final do livro, produz o mesmo objeto e fica sentada diante dele, contemplativa, com os olhos fechados e sorrindo, talvez rememorando a visita. Nesse momento, o avião materializa o elo entre as personagens.
Figura 16.
Figura 17.
A leitura da obra conduz a pensar que as palavras, neste livro, narram os fatos e mostram os diálogos, enquanto as imagens e suas cores podem ser lidas pelo viés da emoção. Essa é uma característica própria da leitura literária que a difere de outras: a possibilidade de extrair “[...] do texto sensações ou reações” (Hunt, 2010, p. 84-85). Segundo Ramos e Paiva (2014), as cores escolhidas pelo ilustrador podem provocar sensações no leitor. Tendo em vista isso, um olhar possível para a predominância do preto, do branco e das sombras produzidas no início do livro indicam ao leitor a solidão de Elise, que paulatinamente vai se “apagando” com as cores trazidas pela presença de Emil. A partir da composição texto-imagem, a narrativa deixa espaços abertos para que os leitores construam esses sentidos, cabendo a eles “[...] traçar um percurso semântico e sintático, representacional e simbólico a partir dos elementos visuais para compreender o que é veiculado” (Ramos e Paiva, 2014, p. 443). A imagem “[...] acolhe múltiplas propostas de sentido [...]”, ela não “[...] diz o que é para ser lido; ela é sugestiva, expansiva” (Ramos e Paiva, 2014, p. 443). Assim, esse percurso de análise, tanto do texto imagético quanto do verbal é subjetivo, tem a ver tanto com os significados construídos durante e a partir da leitura da obra como com o que o leitor traz de vivências leitoras anteriores.
Ainda sobre os sentidos a serem construídos pelo leitor, a história deixa o final em aberto: não sabemos se o menino visitou Elise novamente, se ela saiu de casa para encontrá-lo ou outra situação. Cabe ao leitor imaginar possíveis caminhos. O final aberto confere autonomia ao leitor para que imagine finais possíveis para a história, personalizando-a de acordo com seus desejos pessoais. Essa abertura aos sentidos do leitor está nas páginas finais, que o deixam frente a duas cenas visuais (Figura 18) sem qualquer texto verbal. O silêncio verbal, decorrente da ausência do texto verbal, convida à significação a partir das imagens:
Figura 18.
Para Ramos e Nunes (2013, p. 262) “[...] uma imagem tem que ter substância de modo que alargue as vivências do leitor.”. Esse final, silencioso em palavras e provocador de sentidos, cumpre o papel de alargar as vivências sensíveis do leitor junto aos livros a partir da leitura das imagens. O aspecto visual chama os leitores para a experiência estética, ou seja, “[...] não se trata apenas de observar uma obra artisticamente executada, percebendo seus materiais ou técnicas de produção, mas de recebê-la, percebê-la, senti-la, deixar-se levar pela emoção que aquele conjunto, artisticamente constituído, provoca” (Ramos e Nunes, 2013, p. 255). É um colocar-se diante da obra para saborear com o olhar tudo o que ela pode oferecer.
Destaca-se, ainda, outra possível interação entre texto e ilustração que se abre aos sentidos, no momento em que Elise dispõe-se a ler para Emil, o narrador afirma: “Fazia um tempão que Elise não lia para alguém” (Damm, 2018, s/p). A frase está colocada estrategicamente abaixo dos retratos pendurados na parede (Figura 19). Ao observá-los, além da imagem de Elise, são vistas outras duas pessoas, possivelmente um homem e uma mulher. O leitor é convidado a refletir sobre o passado da personagem, seus relacionamentos e em que ponto da vida ela fica só. Seria este o momento em que ela “perdeu” as cores? Antes disso, a certa altura, Elise questiona-se sobre quem bate à sua porta, e o narrador nos informa que “Ninguém nunca batia na porta da casa dela” (Damm, 2018, s/p). A Figura 20 explica a razão: um pequeno cartaz colado à porta diz “Por favor, não perturbe”. Esse aviso leva a questionar: em que momento da vida de Elise, antes uma moça que ia a bailes com seu melhor vestido cor de rosa, foi criada essa fobia da rua e das pessoas, a ponto de motivá-la a registrar em sua porta um pedido de afastamento? Será que Elise, já idosa, sofreu alguma perda decisiva nesse processo de reclusão?
Figura 19.
Figura 20.
Refletindo sobre as funções da ilustração no livro, a partir das tipologias estabelecidas por Camargo (1995), acredita-se que o livro mescle ilustrações com função narrativa e com função expressiva ou ética. Na função narrativa, a ilustração narra acontecimentos da história e pode mostrar detalhes que o texto "omite", ajudando o leitor no entendimento dos fatos, trazendo mais elementos para compreender a história e mostrando as ações realizadas (Camargo, 1995). São as imagens (e não o texto verbal) que mostram a “coisa incrível” que aconteceu quando Elise abriu a janela (Figura 21) ou o que rondava sua noite insone e cheia de medos (Figura 22).
Figura 21.
Figura 22.
A outra função, expressiva ou ética, refere-se às ilustrações que demonstram os sentimentos das personagens envolvidas na trama, a partir das suas expressões e ações, e do uso de diferentes recursos plásticos (Camargo, 1995). Em “A visita”, além das expressões de Elise e Emil demonstrarem suas emoções, o recurso plástico utilizado para auxiliar nessa demonstração do que se passa com as personagens são, predominantemente, as cores, como já mencionado anteriormente. Esse aspecto pode ser visualizado na sequência de expressões de Elise (Figura 23): melancólica, assustada, incomodada, feliz e terna. Cores opacas aparecem em sua fase de medo, relacionadas aos seus sentimentos negativos. Em contrapartida, a predominância de cores vibrantes, relacionam-se aos sentimentos positivos.
Figura 23.
A análise verbo-visual evidencia que, em A visita, o texto visual não é um mero retrato daquilo que se apresenta no texto verbal. Ao contrário, a visualidade destaca-se no livro, visto que é nela que são colocadas algumas chaves potentes de reflexão ao leitor, às vezes, deixando que a leitura das imagens assuma a produção de sentidos. A cor tem papel central no desenvolvimento da narrativa, na construção das cenas, na caracterização e na evolução das personagens. A relação verbo-visual é preponderantemente sensível, convida a desvendar as possibilidades de significação de ambas na construção do enunciado narrativo. A próxima seção dedica-se à análise de recepção, observando quais desses diferentes elementos que compõem A visita foram recebidos e como reverberaram significativamente nos leitores.
Os olhares dos leitores para A visita: recepção do livro por leitores brasileiros
Atualmente, a internet tem se mostrado um campo fértil de compartilhamentos entre leitores, seja em redes sociais gerais ou em redes sociais específicas sobre livros. No Brasil, desde 2009, estabeleceu-se o Skoob (“books” ao contrário), rede social específica sobre leitura que congrega mais de 7 milhões de leitores. Uma das funções que a rede oferece aos seus usuários é a produção de resenhas sobre os livros lidos por eles; a partir dessa funcionalidade, é possível compartilhar com outros leitores experiências literárias individuais que podem ser curtidas e comentadas por qualquer usuário cadastrado à rede. O acesso às resenhas é público, qualquer indivíduo pode ler o que foi escrito pelos usuários, mesmo não sendo cadastrado na plataforma. Sendo assim, as resenhas são, para fins de pesquisa, um potente instrumento de análise da recepção dos livros, uma vez que os leitores expressam suas percepções e sentimentos envolvidos na leitura. Tendo em vista isso, esta seção buscará, nas resenhas produzidas pelos usuários do Skoob, vestígios da recepção dos leitores de A visita.
Figura 24.
A Figura 24 mostra que o livro de Antje Damm, até a primeira quinzena de setembro de 2021, foi marcado como “lido” por 313 pessoas, em processo de leitura por 6 e com desejo de ler por 60. A avaliação das obras é medida por um instrumento baseado em escala likert, que pede aos usuários para que classifiquem de 1 a 5 estrelas. A visita recebeu 4,3 estrelas em uma avaliação realizada por 242 pessoas. Foi marcado como favorito por 13 leitores e possui 50 resenhas escritas. Na sequência, dialogar-se-á com a recepção do livro de Damm a partir dessas resenhas.
Das 50 resenhas1 produzidas, em 29 delas, os autores mencionam algum elemento da visualidade, seja a ilustração ou, de forma mais detalhada, a importância das cores. Dessas resenhas, destacam-se algumas:
Mais uma leitura que fiz para meus filhos que me surpreendeu pela força da linguagem visual. De um capricho e minuciosidade ímpar, a autora traz um cenário bem construído em suas ilustrações, mostrando onde há tristeza e medo e onde há alegria sem precisar "apontar". [...] (R1, 27/12/2021)
A união perfeita das palavras com a ilustração. O rastro de cores que o garotinho vem trazendo é de encher também os nossos olhos. Um primor. (C, 29/01/2021)
[...] No livro A visita, Antje Damm brinca com as cores na narrativa. Trazendo tons a cada nova descoberta das personagens. Misturando desenhos com criações em MDF. Cada detalhe pensado para transmitir o que se passa dentro de Elise. Juntos vamos percebendo as mudanças e acompanhando o preenchimento do vazio na vida da personagem. Um livro ilustrado que une narrativa escrita com a visual e poderá proporcionar inúmeras interpretações. Refletindo sobre depressão, isolamento, tristeza, amizade, perdas, carinho e cores. (L1, 27/04/2021)
[...] É muito bonito ver as ilustrações, que vão ficando mais coloridas à medida que a Elise vai se divertindo e abrindo seu coração para Emil. (R2, 22/10/2020)
Um livro que reúne a beleza das cores com o colorido que as pessoas podem dar em nossas vidas. (L2, 06/12/2020)
Eu adorei essa estética de conforme Elise se abre pro mundo o livro vai ficando mais colorido. (K, 06/01/2020)
Um dos livros favoritos da galerinha aqui de casa, eles amam ler, recitar, observar as ilustrações, comentam como a vida da Elise vai ficando mais colorida conforme a história avança. Muito delicado e simples, nós amamos! ♥ (P, 25/08/2021)
O livro retrata bem a solidão. É muito interessante como é apresentado o tema, as ilustrações mostram detalhadamente o medo, a curiosidade e a felicidade no rosto de cada personagem. Vale a pena ler! (B1, 08/06/2021)
A vida de Elise mudou depois que recebeu uma visita inesperada. Tudo que era preto e branco, ficou colorido. Li para meu filho Marcelo de 5 anos. (M1, 01/04/2021)
Elise é uma mulher que vive solitária com medo do mundo, até receber a visita de um garotinho em busca de seu avião de papel. A visita traz cor ao mundo de Elise. (G, 31/05/2021)
Nesses 10 registros, é possível observar adultos lendo com crianças e as diferentes significações do encontro entre esses diferentes leitores e a linguagem visual do livro. Interessante o registro de R1, quando relata que o livro é capaz de mostrar “[...] um cenário bem construído em suas ilustrações, mostrando onde há tristeza e medo e onde há alegria sem precisar ‘apontar’” (R1, 27/12/2021). Essa indicação dá conta dos significados que a visualidade pode conduzir o leitor à produção, não havendo necessidade de um texto verbal que indique “Elise está triste” ou “Elise está feliz”, já que a ilustração, por si só, revela ao leitor esses sentimentos. Os leitores apontam o quanto as cores têm relação direta com a personagem principal, Elise, e que elas representam sua abertura para a novidade, representada por Emil.
Há uma resenha que destaca a importância da mediação de leitura, em especial quando o elemento da visualidade está em jogo:
Elise é uma mulher muito medrosa que se esconde em casa. Seu mundo é todo cinza. Mas um dia, um objeto estranho entra pela sua janela e sua vida começa a mudar quando recebe uma visita do dono daquele objeto que exigia ele de volta. Meus alunos gostaram e a parte em que o menino entra na casa e vai subindo as escadas deixando um rastro vermelho, muitos gritavam " ele está sangrando!?" "Oxi professora, o que é isso?" E com isso fui chamando a atenção para como as páginas iam colorindo. Alguns acreditavam que o menino era um mágico, um mago do arco-íris, mas houve alguns mais sensíveis que conseguiram observar que a casa foi mudando porque a personagem principal foi mudando, ficando mais feliz. (R3, 29/05/2021)
R3 relata uma situação de sua vivência enquanto professora, destacando as cenas de leitura do livro para os seus alunos. Ela mostra uma primeira incompreensão da visualidade, o que destaca a importância de um mediador de leitura mais experiente, que auxilie os leitores na construção de sentidos a partir tanto do texto verbal quanto do texto visual. É nesse sentido que Ramos (2020) destaca a importância do mediador estar atento às imagens do cotidiano e ser capaz de “[...] compreender o que as narrativas visuais estão a contar” (Ramos, 2020, p. 41). Tendo em vista as práticas que ocorrem na escola, cabe salientar que, desde muito cedo, as crianças são ensinadas a ler e interpretar o texto verbal, mas o texto visual não é alvo de tanto estudo quanto o primeiro. Por isso, esse mediador (seja na escola ou fora dela) precisa ser competente para auxiliar, em especial o leitor iniciante, na produção de sentidos tanto valendo-se do verbal quanto visual. Ler a imagem não é algo natural, assim como a leitura do texto verbal, a imagem também precisa ser mediada (Nunes, 2021).
A produção de sentidos por parte do leitor perpassa a dimensão do quanto uma leitura é capaz de tocá-lo. Várias resenhas expunham diferentes sentimentos dos leitores frente ao livro:
Peguei esse livro do projeto ‘Leia para uma criança’ do banco Itaú, justamente para ler para os meus priminhos. Como toda boa leitora não pude entregar sem dar uma lidinha e sinceramente, amei! As ilustrações, a história tão curtinha mas que dá um baita quentinho no coração e a sensação de voltar a infância me deixaram bem feliz. Todo livro infantil me deixa assim, pq lembro de pegar os livros só pra ficar espiando as imagens e imaginando o que eu não sabia ler. [...] (L3, 01/11/2020)
Que livro fofo, eu li para minha sobrinha e ela adorou. Minha filha leu diversas vezes e se emociona até hoje. (V, 26/10/2020)
Me identifiquei muito com este livro, pois num momento muito cinza da minha vida uma pessoa muito especial me encontrou e me mostrou as cores do mundo. (A1, 27/12/2020)
Me veio a mente uma pessoa deprimida. A falta de cor me angustiou. (S, 06/01/2021)
Hoje atormentada pelas preocupações da vida adulta e pelo bombardeio de notícias tristes sobre a pandemia, me peguei pensando de como a vida era fácil quando se era criança. Então, peguei ‘A visita’ na estante e resolvi ler com os olhos de criança e com o coração de adulto. Até agora não consegui parar de chorar. O livro conta a história de Elise, uma mulher medrosa, que vive sozinha em uma casa escura e sem cor. Mas de repente um aviãozinho de papel colorido entra pela janela e dali em diante a sua vida enche de cor com uma visita inesperada. O que mais me chamou atenção foram as figuras do livro ganhando cores gradativamente conforme Elise se abria pra essa nova oportunidade, porquê as vezes a gente só está no escuro por opção. [...] (D, 26/03/2021)
Elise tinha medo de tudo. E por isso vivia sozinha, trancada em casa. O livro me mostrou o poder da amizade, e também a importância de não estarmos sozinhos sempre. A solidão não é boa, estar com os amigos é muito legal. Estou com saudade dos meus amigos. (M2, 07/04/2021)
Entre a resenha de D e M2 há um espaço de tempo de quase um mês, porém ambas foram produzidas no período da pandemia de Covid-19. D reflete sobre a insegurança que caracteriza o tempo pandêmico que estamos vivendo, busca a leitura a partir de uma visão criança/adulto e emociona-se com o que encontra, pois em um exame da narrativa verbo-visual e seus sentidos, parte da história para uma reflexão sobre a vida. M2, que se descreve como tendo 9 anos em seu perfil, também faz um movimento semelhante, ao olhar para a solidão presente no livro e percebê-la em sua vivência nesses tempos pandêmicos, relatando a saudade dos amigos. Aqui, vemos uma função da literatura, não só da infantil, mas da literatura em geral, que Todorov (2020) define como “ajudar a viver”, não em negação à realidade que é vivida pelos sujeitos – visto que alguns entendem a literatura como um mecanismo de “fuga” das problemáticas que envolvem a si – mas em conexão com as experiências de cada um, auxiliando-os na compreensão do vivido. Essa leitura, em especial a literária, é pensada no sentido de “[...] algo que nos forma (ou nos de-forma e nos trans-forma), como algo que nos constitui ou nos põe em questão naquilo que somos. [...] não é só um passatempo, um mecanismo de evasão do mundo real e do eu real. [...] tem a ver com aquilo que nos faz ser o que somos” (Larrosa, 2007, p. 130).
Ainda para esses leitores, A visita deu a oportunidade de voltar à infância (L3), de emocionar-se e de identificar-se (V). Naturalmente, as leituras não provocam apenas sentimentos bons, e S destaca a angústia frente à falta de cor que associou à depressão. Essa reverberação de sensações que a leitura causa nos leitores relaciona-se com os “poderes” da literatura, como argumenta (Todorov, 2020, p. 76): “A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver.”. Em defesa semelhante, Candido (2004), em seu famoso texto “O direito à literatura”, defende-a como mecanismo de humanização, processo que confirma “[...] o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor” (Candido, 2004, p. 180).
No livro ilustrado, não somente o texto verbal reverbera no leitor, mas a ilustração, fundamentalmente, torna-se meio de refletir, deslocar-se, emocionar-se a partir do que o ilustrador narra (Ramos, 2020). As resenhas aqui apresentadas mostram, preponderantemente, a dimensão da visualidade atuando como produtora de sentidos que provocam sentimentos de diferentes ordens nos leitores.
Um último eixo de análise das resenhas evidencia que os leitores compreendem o livro em questão como não restrito ao público infantil:
De alguma maneira me senti como se estivesse enxergando as cores com Elise. Livro lindo e criativo, ótima leitura para gente grande e pequena. (M3, 23/06/2021)
Esse livro, apesar de infantil, parece também destinado a adultos. Traz uma boa mensagem e é até emocionante. (A2, 11/12/2020)
Li essa história para o meu filho e foi encantador ver as expressões e curiosidade dele no decorrer das páginas. Achei especial a maneira que a Elise vai A’cor’dar com cada olhar ou pergunta do Emil. Acho extremamente especial quando há livros dentro do livro. Livro para todas as idades! (J, 29/10/2020)
As ilustrações do livro tornam a história ainda mais comovente pelo modo como o mundo de Elise, antes apenas um vazio preto e branco, se torna uma mistura maravilhosa de cores e emoções, a qual reflete a evolução da personagem durante a história. Recomendo muito como literatura infantil, mas também como um livro tocante mesmo para leitores mais experientes. (M4, 19/11/2020)
Nesse livro infantil (que também serve para os adultos) a autora mostrou de forma simples a importância de socializar. Apesar de bem escrito, são as ilustrações delicadas que dão o toque especial à história. (B2, 22/10/2020)
As resenhas ratificam a tese de que o livro infantil ultrapassa as fronteiras do público para o qual se destina, sendo uma leitura que pode ser do interesse também de outros leitores que não apenas as crianças. Quando o livro consegue ultrapassar essas fronteiras e provocar diferentes significações também em outros destinatários, pode-se dizer que ele é um livro bom, alinhado ao que defende Lewis (1967, p. 24, tradução nossa): “Sou quase propenso a definir como cânone que a história infantil que é desfrutada apenas por crianças é uma história infantil ruim. Os bons duram. Uma valsa da qual você pode gostar apenas quando estiver valsando é uma valsa ruim.”.
Considerações finais
A visita é um livro ilustrado que exige do leitor um olhar sensível e competente. A visualidade destaca-se nessa obra, requerendo um pouso demorado do olhar sobre as imagens que, por vezes, assumirão o controle da produção de sentido. A leitura atenta revela que, em alguns momentos, ou as palavras não dão conta de toda a complexidade da cena ou elas “calam-se” para deixar as imagens “falar”. É um livro a ser lido e apreciado por leitores iniciantes e experientes, que poderão se emocionar com as cores de Elise e Emil.
A materialidade do livro analisado, um livro não muito grande, de fácil manuseio, com poucas páginas, com ilustrações destacadas e dominantes na constituição editorial e gráfica, oferece elementos que a direcionam para um público específico, o que o leva a uma classificação como leitura infantil. No entanto, as resenhas analisadas permitem inferir que, seja pelo tema, seja pela constituição gráfica, o livro em questão ultrapassa uma caracterização única e um público leitor restrito.
Este estudo reforça a potência significativa do entrelaçamento entre linguagens na constituição de um texto. Reforça que as brechas de sentido do tecido textual abrem-se aos leitores que se encontrarem com o texto, não importando a sua faixa etária, mas, sim, a sua capacidade de produzir sentidos.
Referências
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Damm, A. [@antje.damm] (10 de agosto de 2021). Den BESUCH kann man an vielen verschiedenen Orten lesen. Danke Anja! [Fotografia]. Instagram. https://www.instagram.com/p/CSYTPBpjYJz/
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Itaú Social (2 de novembro de 2020). ANTJE DAMM - “Filosofar com crianças é fazer perguntas sem dar respostas”. Itaú Social. https://www.itausocial.org.br/noticias/antje-damm-filosofar-com-criancas-e-fazer-perguntas-sem-dar-respostas/
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Todorov, T. (2020). A literatura em perigo [Trad. Caio Meira]. DIFEL.
Nota
1
Os nomes dos autores das resenhas foram suprimidos visto que a sua identificação fere o sigilo ético. As escritas foram transcritas tal e qual produzidas pelos sujeitos.
Notas de autor
acamilaalvesm@hotmail.com bmariliaforginunes@gmail.com
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Como citar este artigo
:
Melo, Camila Alves de e Nunes, Marília (2022). O livro ilustrado sob diferentes olhares: uma análise verbo-visual e de recepção de A visita de Antje Damm. Elos. Revista de Literatura Infantil e Xuvenil, 9, “Notas”, 1-26. ISSN-e 2386-7620. DOI http://dx.doi.org/10.15304/elos.9.7934
Vol.
Num. 9
Año. 2022
O livro ilustrado sob diferentes olhares: uma análise verbo-visual e de recepção de A visita de Antje Damm
Camila Alves de Melo, Marília Forgearini Nunes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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Camila Melo
Doutoranda e Mestra em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre/Brasil). Bolsista de Doutorado do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Marília Nunes
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre/Brasil). Professora Adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.