1. Introdução
Há mais de meio século que o audiolivro é considerado um formato editorial, mas só na última década é que ganhou verdadeira relevância para o mercado editorial a nível mundial, devido ao desenvolvimento das tecnologias digitais, especialmente à transmissão através de serviços de streaming, e ao enorme crescimento (em termos de divulgação e vendas) que estes serviços tiveram com a popularização dos criadores de conteúdos em redes sociais (que fazem críticas e publicidade aos mesmos) bem como com a pandemia covid-19.
Em Portugal, apesar de anteriores tentativas de desenvolvimento e venda deste formato com vinis, cassetes e CDs (especialmente de poesia declamada ou a acompanhar livros infantis), foi precisamente a pandemia, apoiada pela popularização dos podcasts, que impulsionou as editoras a começarem a investir seriamente no formato. Atualmente, já estão disponíveis no mercado vários audiolivros de produção nacional, tanto em plataformas de streaming, nomeadamente na Kobo+e_Leya, como à venda à la carte, em livrarias online. Apesar disto, observa-se alguma dificuldade em publicar, de forma consistente, audiolivros infantojuvenis de qualidade, principalmente devido aos elevados custos de produção aliados muitas vezes à necessidade de adaptação do texto e de incluir elementos musicais ou de sonoplastia.
Assim, e uma vez que são raros em Portugal os estudos que se debruçam sobre o formato áudio e a produção nacional já existente, o presente trabalho tem como objetivo refletir sobre os desafios mais prementes na edição de audiolivros infantojuvenis. Deste modo, procede-se, em primeiro lugar, ao estudo do contexto português da edição de audiolivros e, posteriormente, à análise das vantagens e das limitações do formato áudio, assim como à distinção entre livro ilustrado e livro-álbum, a fim de compreender que características, tipologias e géneros da literatura infantojuvenil podem trazer desafios à produção áudio.
Esta reflexão será focada no panorama português, especialmente no audiolivro com intuito educativo ou de entretenimento (por oposto ao de serviço público), e realizada a partir da análise da oferta do grupo editorial LeYa neste segmento, uma vez que é a empresa editorial que se destaca em termos de número e de acessibilidade na publicação de audiolivros. O corpus textual compreenderá, deste modo, seis títulos: cinco dos quais incluídos na plataforma Kobo+e_Leya – Mensagens do Avô, de António Mota, narrado por Zeferino Coelho (ASA, 2020); A Polegarzinha, de Hans Christian Andersen, narrado por Ruben Martins (Gailivro e Público, 2021); Leandro, Rei da Helíria, de Alice Vieira, narrado por Diana Cunha (Caminho, 2021); Com Muita Pinta!, de Lara Xavier, narrado por Carla Teixeira Pinheiro (Texto, 2023); O Pavão Yoyô e o Tigre Gagá Juntos Fazem Yoga, de Sónia Gomes Costa, narrado pela autora (Oficina do Livro, 2020) – e um, Astérix - O Menir de Ouro, de Albert Uderzo e René Goscinny, narrado por Tobias Monteiro, Pedro Pernas, Tiago Retrê, Simon Frankel, Pedro Camões e Ana Catarina (ASA, 2020), publicado como ligação QR code na edição física e disponibilizado gratuitamente no próprio site . Para ilustrar as diferentes tipologias de livros infantojuvenis e as dificuldades que estas levantam na edição de audiolivros, serão também utilizadas como exemplo as obras (em formato físico): O Camião das Histórias, de Rosário Alçada Araújo com ilustrações de Patrícia Furtado (ASA, 2022), A Minha Árvore Secreta, de David Pintor (Caminho, 2022) e O Principezinho, de Antoine de Saint‑Exupéry (D. Quixote, 2015).
2. A edição de audiolivros em Portugal
Em Portugal, a edição de audiolivros é relativamente recente. Segundo e , os primórdios do audiolivro de produção nacional foram marcados por discos de vinil de poesia declamada, como “LP Poesias de José Régio narrado por Ary dos Santos ou 3 Poemas de Amor, Ódio e Alguma Amargura com poemas de Eugénio de Andrade, Almada Negreiros e Mário Cesariny, ditos por Mário Viegas e publicado pela Orfeu em 1976” (), e cassetes com clássicos como O delfim, de José Cardoso Pires e Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco publicadas pela Dom Quixote, em parceira com o Círculo de Leitores (). Ainda assim, e juntando os vários CDs que acompanhavam livros infantis no início do século xxi , nenhuma destas tentativas teve impacto suficiente no mercado editorial para perdurar e desenvolver uma atividade comercial distinta. Só a partir de 2020, com a enorme adesão às subscrições de serviços de streaming durante a pandemia covid-19, a popularização dos podcasts, e a consequente explosão de receitas (a nível mundial) provenientes de audiolivros, se observa editoras generalistas a investirem no futuro do formato em Portugal.
É exceção, no entanto, segundo e , a editora BOCA, fundada em 2006 como empresa especializada em edição de audiolivros. Mantém-se ainda hoje ativa com mais de 40 edições, na sua maioria publicadas em formato físico (livro com CD ou DVD) e digital (ebook e MP3), das quais 11 são dirigidas a “crianças de todas as idades”, fazendo parte da secção BOCA JÚNIOR.
Das editoras generalistas, atualmente destaca-se a LeYa graças à sua parceria com a Rakuten Kobo (uma das líderes mundiais da distribuição de livros digitais), da qual proveio a subscrição Kobo+e_LeYa, onde o grupo editorial disponibiliza os seus audiolivros. A facilidade de utilização da plataforma e o acessível preço da subscrição (5,99€) relativamente a um exemplar físico, são alguns dos fatores do sucesso do formato a nível internacional (), sendo ainda responsáveis pela liderança da editora no desenvolvimento do audiolivro no mercado português. O catálogo digital da LeYa é constituído por cerca de 50 audiolivros, dos quais 17 se podem considerar como infantojuvenis.
As restantes casas editorais que afirmam, segundo , estar a produzir ou investir no formato, são: a Porto Editora (que vende as suas edições áudio em MP3 na livraria online Wook), o grupo editorial Infinito Particular (que tem pelo menos seis audiolivros à venda na Wook e na loja Kobo) e a Penguin Random House Portugal (que ainda não tem edições deste segmento disponibilizadas ao público). Destas editoras, do subsistema infantojuvenil, estão publicados O Pequeno Livro dos Medos de Sérgio Godinho, narrado pelo autor (Assírio e Alvim, 2022) e O Apelo do Selvagem de Jack London, narrado por Mónica Mendes (Cultura Editora, 2021).
Para expor adequadamente o panorama português da edição de audiolivros é relevante mencionar também a pequena coleção, iniciada em 2020, de clássicos da literatura portuguesa em áudio da Imprensa Nacional-Casa da Moeda (IN-CM). Esta coleção está disponível integralmente e de forma gratuita no site da IN-CM, tendo já publicadas as obras: Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, narrada por António Fonseca; Mensagem, de Fernando Pessoa, narrada por Luísa Fidalgo; O Mandarim, de Eça de Queirós, narrada por Liliana Leite; e Obras Poéticas de Marquesa de Alorna, narrada por Ana Catarina Afonso. Importa ainda referir o crescente catálogo de audiolivros da Fundação Francisco Manuel dos Santos, que está a investir seriamente na adaptação de todos os seus mais recentes ensaios, vendendo-os em variadas plataformas de distribuição de livros digitais, incluindo a Audible e a loja Kobo.
3. O formato áudio
O audiolivro é um formato editorial que se distancia profundamente dos restantes formatos de livro. Devido ao facto de transpor um texto escrito para um produto de som, o seu processo de criação acaba por ser muito similar aos utilizados nas indústrias de música e rádio (). Nesta sua ligação à produção sonora assenta uma das razões para o seu boom nos últimos dez anos, pois esteve sempre associado ao desenvolvimento das tecnologias que possibilitam a sua gravação e transmissão. Esse boom deve-se muito às novas tecnologias digitais, especialmente ao digital audio streaming, que popularizou empresas e serviços como a Netflix e o Spotify e promoveu a transição dos novos programas de rádio para o modelo podcast. É precisamente esta sua ligação às várias artes e meios de comunicação que torna o audiolivro um produto editorial tão desafiador e que, apesar da sua recente popularidade, não é visto, ao contrário do ebook, como uma ameaça ao livro físico. Segundo Pedro Sobral: “O audiolivro não é um formato de substituição da leitura em papel, mas sim complementar; quando o consumo de audiolivros aumenta, o consumo de livros em papel também aumenta. O áudio é uma porta de entrada para a leitura, não um substituto” (citado por ).
Estas são duas das principais vantagens do audiolivro: a promoção da leitura e o estímulo das vendas. “O estudo Immersive Media & Books 2020, da Panorama Project, demonstra que os consumidores de audiolivros são significativamente mais ativos em todos os formatos e compram mais livros do que os restantes leitores” (Branco citado por ).
Outra grande vantagem do formato é a sua facilidade de utilização. Uma vez que hoje em dia qualquer pessoa pode ter um smartphone, quase toda a gente anda constantemente com um leitor de audiolivros no bolso sem ter de investir num dispositivo propositadamente com esse objetivo. Isto faz com que seja possível praticar uma série de atividades distintas enquanto se ouve uma história (; ).
Quer Joana Branco, quer Pedro Sobral, concordam que uma das grandes vantagens que este formato oferece aos leitores é resolver o problema que muitos têm com o tempo necessário para dedicar à leitura e a solução que o "multitasking"representa; tal como os podcasts, os audiolivros permitem momentos de "leitura" que não seriam possíveis de outro modo: enquanto se conduz, durante a realização de tarefas domésticas ou enquanto se faz exercício. ()
Há ainda vários autores que defendem que os audiolivros trazem uma série de vantagens educativas para as crianças e jovens. Segundo é um formato que motiva à leitura, que ajuda a desenvolver o vocabulário e as capacidades de compreensão, sendo que vários académicos defendem também que pode ajudar a trabalhar obras de diversidade cultural em contexto de aula, especialmente em situações em que os professores podem não se sentir confortáveis a ler em voz alta palavras ou expressões provenientes de línguas ou dialetos com os quais não estão familiarizados. Segundo , o facto de muitos audiolivros serem narrados por atores, personalidades conhecidas, profissionais especializados ou mesmo os próprios autores confere outra dimensão ao texto e pode mesmo servir de exemplo para uma correta leitura em voz alta, mostrando aos jovens leitores como o tom, a colocação de voz, a distinção de personagens num diálogo, as pausas, o ritmo e o silêncio podem ser elementos cruciais à compreensão e dinamização do texto verbal. A mesma autora explica que ter experiências agradáveis com audiolivros pode proporcionar a um aluno leituras e interpretações que não teria apenas numa leitura “tradicional”, ajudando a criar atitudes positivas para com a leitura e promovendo o desenvolvimento de hábitos regulares de leitura ().
No entanto, o formato também tem algumas limitações, principalmente no que diz respeito aos processos editoriais. Em primeiro lugar, a produção de audiolivros está absolutamente dependente da posse de direitos subsidiários, isto é, da obtenção de autorização formal do autor ou titular dos direitos de autor para adaptação da obra original ao formato áudio. Atualmente a tendência é para adquirir logo os direitos para todas as possíveis adaptações da obra aquando da assinatura do contrato editorial e para ir adquirindo os direitos para a produção áudio de obras de fundo de catálogo (). No entanto, em Portugal só livros publicados a partir de 2020 vêm com o audiolivro contabilizado no contrato, sendo que muitas das publicações anteriores não têm possibilidade de serem adaptadas por dificuldades de renegociação, especialmente no caso de serem de origem estrangeira ou de os seus direitos estarem na posse de herdeiros.
Outra restrição do formato advém dos elevados custos que exige, em termos de investimento inicial e de custos de produção. Construir ou alugar um estúdio de gravação é uma das despesas essenciais para se poder publicar audiolivros, que é acrescida se for preciso colocar em estúdio mais do que um intérprete (). Deve ter-se em conta também a narração (geralmente paga à hora, mediante o tempo em estúdio) e a edição, masterização e pós-produção do áudio. Estes valores são também variáveis consoante a experiência e fama do narrador e o tamanho ou complexidade do livro (quando maior ou mais complexo o livro, mais tempo demora a sua narração).
Pode também dizer-se limitação a influência que o narrador tem na qualidade do produto final. “A poor reading of a text can negatively impact a listener’s opinion of a book” (). Para uma narração de qualidade é preciso que o livro seja lido de forma clara por um narrador que seja dinâmico e tenha uma boa projeção de voz (). É preciso também que o narrador leia e prepare previamente o texto de forma a ter o cuidado de criar diferenciações de voz para as personagens, para que seja claro quem está a falar num diálogo (), assim como pronunciar devidamente palavras e expressões estrangeiras ou incomuns.
4. Os desafios dos audiolivros infantojuvenis
Segundo , os livros infantojuvenis são preferencialmente – mas não exclusivamente – destinados a crianças e jovens, e não se limitam à designação de literatura. Dentro deste subsistema literário, podem incluir-se múltiplos géneros, que se dividem em dois grandes grupos: livros de ficção (que incluem literatura tradicional de transmissão oral, histórias tradicionais escritas por autores como Charles Perrault e os irmãos Grimm, contos de autor, obras clássicas como Alice no País das Maravilhas, adaptações de obras originalmente para adultos, narrativas juvenis – de mistério, ficção científica, fantasia ou romance “cor-de-rosa” –, romances juvenis de cariz mais literário, contos infantis ilustrados, livros-álbum, literatura dramática [teatro], poesia para crianças, e banda desenhada) e livros “fora do âmbito da ficção” (), que incluem livros para bebés, livros informativos, livros de referência – enciclopédias, atlas, dicionários – e livros de atividades (). Podem também observar-se, neste subsistema, uma variedade de formatos, dos quais se destacam o livro ilustrado, o livro-álbum e os que se incluem na categoria de livro-objeto ou livro-brinquedo (como o pop-up, o livro‑acordeão, o livro às tiras e o livro-puzzle).
Compreender que géneros e formatos constituem os livros para a infância e a juventude é extremamente importante para seleção das obras a adaptar, porque muitos destes livros estão centrados numa materialidade e/ou componente estética que não é transponível para o formato áudio. Das tipologias de livros mencionados, deverão excluir‑se automaticamente de ponderação os livros-objeto, assim como os livros que não se incluem no grupo da ficção (à exceção de um ou outro livro informativo que, por se centrar mais no texto verbal, seja passível de adaptação). Isto não pressupõe, no entanto que todos os livros de ficção sejam possíveis ou fáceis de adaptar. Aliás, a banda‑desenhada, ou romance gráfico, é um género que não se recomenda publicar em audiolivro, porque, como prova a edição áudio de Nimona (HarperCollins Publishers, 2016), exige modificação da obra, assim como efeitos sonoros para conseguir transmitir toda a sua essência. Dentro dos livros de ficção é preciso analisar se se enquadram no livro ilustrado ou no livro-álbum e que imagens ou grafismos poderão necessitar de ser descritos, explicados ou excluídos da obra adaptada. Isto porque garantir uma narração fluída em livros que contenham mapas, ilustrações e gráficos é uma das principais dificuldades dos editores de audiolivros ().
O livro ilustrado, também designado no Brasil como livro com ilustrações, caracteriza-se por o texto ter predominância em relação às ilustrações, que têm apenas um papel complementar, sendo possível uma leitura da obra apoiada exclusivamente no discurso verbal, sem que se percam os elementos cruciais da narração e decifração (; ). Este é o formato de livro infantil mais facilmente adaptável para áudio.
Por oposição, o livro-álbum, “definido por Uri Shulevitz (1997) como 'o livro que não se pode ler pela rádio'” (), é um formato que traz mais desafios à produção de audiolivros. Em primeiro lugar devido à preponderância concedida à materialidade e à estética como veículos da história a contar, exigindo obrigatoriamente a alteração do texto no caso de adaptação, uma vez que o conteúdo verbal perde pelo menos parte do seu sentido quando desassociado das ilustrações e dos elementos paratextuais. Há ainda a possibilidade de o livro-álbum não conter texto. “Claramente secundário em relação à ilustração, o texto pode não estar presente no álbum, uma vez que a ausência de texto não implica ausência de discurso e de narração” (). No caso do silent picture book, não sendo totalmente impossível a conversão ao formato áudio, não faz sentido produzir um audiolivro, uma vez que retiraria a experiência de leitura independente que um pré-leitor consegue ter com esses livros, assim como a possibilidade de fazer múltiplas leituras dos mesmos.
Os álbuns podem ser narrativos, poéticos ou em portefólio e abranger múltiplos géneros literários. Podem ainda conter narrativas paralelas (em que há duas histórias que estão presentes em simultâneo, começando, por exemplo, em sentidos opostos – uma narrada da esquerda para a direita e outra da direita para a esquerda, ou sendo contadas com cores distintas) ou narrativas em segundo plano (). Estas são estruturas narrativas que também perdem com a adaptação a áudio, pois todos os conteúdos que sejam exclusivamente visuais deixam de ser intuitivos ou abertos a interpretação por terem de ser descritos ou explicitados. Assim, as narrativas paralelas correm o risco de perder o seu paralelismo, uma vez que as associações entre as narrativas são muitas vezes feitas através da ilustração ou dos elementos paratextuais, como as cores, as capas e a disposição dos elementos nas páginas.
Para sintetizar a distinção entre livro ilustrado e livro-álbum, tomemos como exemplo dois livros infantis LeYa, publicados em 2022 e indicados para crianças dos 4 aos 6 anos: O Camião das Histórias, de Rosário Alçada Araújo, com ilustrações de Patrícia Furtado, editado pela ASA, e A Minha Árvore Secreta, de David Pintor, editado pela Caminho. Só pelos autores é possível discernir em que formato se inserem – o primeiro, com autora e ilustradora, é considerado um livro ilustrado, enquanto o segundo, escrito e ilustrado por um só autor é claramente um livro-álbum. Deste modo, O Camião das Histórias, apesar de rico em ilustrações, poderia ser facilmente produzido em áudio, porque se compreenderia perfeitamente a história apenas através do texto verbal. Por sua vez, A Minha Árvore Secreta é um livro que não se aconselharia adaptar porque são as ilustrações da evolução da árvore, mais do que as pequenas frases que as acompanham, que contam a história. Assim, num audiolivro perder-se-ia, tanto os traços que caracterizam o livro, como a capacidade de observação exigida ao leitor para apreciar o seu conteúdo.
Segundo , os elementos que caracterizavam o livro-álbum têm contaminado outros livros, surgindo em diversos géneros da literatura infantojuvenil, alargando o seu público-alvo, que inicialmente se focava em crianças dos dois aos oito anos. Enquanto esta tendência promete uma evolutiva melhoria de valorização e qualidade dos livros infantojuvenis no panorama português, reitera ao mesmo tempo o facto de este subsistema ser mais difícil de adaptar para audiolivro do que os livros adultos. Um livro que se pode inserir neste subsistema e que, enganadoramente, aparenta ser um livro fácil de editar em formato áudio é O Principezinho, de Antoine de Saint‑Exupéry. Contém muito poucas ilustrações para a quantidade de palavras que apresenta, no entanto, como as ilustrações são do autor e são mencionadas no texto, aquando de se preparar o seu audiolivro teria de se cortar ou alterar frases como “Eis a cópia do desenho” ou “O meu desenho número 2 era assim: [...]” porque ao perderem o referente deixariam de fazer sentido na obra. Deste modo, é crucial, na preparação da adaptação, não só avaliar cuidadosamente a obra e as suas características como anotar o documento escrito para que, quando iniciarem as gravações, a leitura decorra o mais fluidamente possível.
Antes de nos debruçarmos mais concretamente na análise dos audiolivros infantojuvenis de produção nacional, importa apresentar, de forma geral, o corpus escolhido e como este demonstra a diversidade de géneros literários que se integram na literatura para a infância e a juventude. Mensagens do Avô, de António Mota, é um livro de não-ficção, composto por cartas que um avô escreveu ao seu neto no contexto da pandemia covid-19. É narrado excelentemente (sem quaisquer efeitos adicionais) por Zeferino Coelho, que transmite a sensação de que se está mesmo a ouvir um avô a falar connosco. A Polegarzinha, de Hans Christian Andersen, é um clássico conto de autor e foi publicado em parceria com o jornal Público; foi narrado e musicado por Ruben Martins, contendo alguns efeitos sonoros. Leandro, Rei da Helíria, de Alice Vieira, é uma obra de literatura dramática escrita para ser representada em palco; foi narrada, tal como o texto se apresenta, por Diana Cunha. Com Muita Pinta!, de Lara Xavier, narrado por Carla Teixeira Pinheiro, é um pequeno texto em verso pertencente à coleção Histórias Plim!, publicado com o intuito de dinamizar a aprendizagem de matemática com rimas. O Pavão Yoyô e o Tigre Gagá Juntos Fazem Yoga, de Sónia Gomes Costa e narrado pela própria, é também uma história em verso, contada e musicada para dar a conhecer o Yoga às crianças. Por fim, Astérix - O Menir de Ouro, de René Goscinny e Albert Uderzo, pertence à coleção de livros-álbum, que complementa a coleção original de banda‑desenhada. Foi escrito em forma de texto dramático com o propósito de ser gravado em audiolivro e posteriormente ilustrado para que o livro físico acompanhasse a versão áudio. À semelhança do original em francês, a edição ASA foi produzida com um elenco completo, com a música original (associada à marca Astérix) e sonoplastia de elevada qualidade.
Os audiolivros infantojuvenis têm a particularidade de, por falta do papel cativante e complementar das ilustrações (), pedirem elementos sonoros e/ou música de forma a atrair os leitores e mantê-los interessados e atentos à história. A sonoplastia é a reconstrução artificial de sons do dia-dia que dão vida, de forma quase cinematográfica, à história narrada. Estes elementos sonoros, muitas vezes usados como substitutos de onomatopeias e de ilustrações, podem ser representativos de animais, da natureza (vento, ondas), de mecanismos, meios de transporte ou ações humanas. Em O Pavão Yoyô e o Tigre Gagá Juntos Fazem Yoga demonstram os sons dos animais quando estes participam na história, e enfatizam as menções de uma embarcação (com o som de leves ondas) e do riso de um bebé. Em A Polegarzinha transmitem o ambiente do espaço em que a história se passa, com sons de pássaros e de água de um riacho, e enfatizam ações como bater à porta. Em Astérix - O Menir de Ouro, complementam a contextualização espácio‑temporal com o som de soldados a marchar (representativo da expansão do Império Romano) e de lareira a crepitar (quando Panoramix, o druida, prepara a poção), e transmitem ações, como quando as personagens estão a caminhar ou a lutar.
Por sua vez, a música pode transmitir o ambiente, marcar o ritmo e sublinhar os sentimentos expressos, podendo demarcar também transições de capítulos e mudanças espácio-temporais; no entanto a sua inclusão exige, na maior parte das vezes, a contratação de músicos que a componham e interpretem adequadamente (). É preciso também ter cuidado para que a música comunique com o texto e não o abafe. Ao analisar o corpus esta foi uma das questões que se destacou. Enquanto em O Pavão Yoyô e o Tigre Gagá Juntos Fazem Yoga a música é parte integrante da obra, enfatiza o que é dito, complementa o texto e a sonoplastia (particularmente como referência a animais que não têm sons distintivos), transporta o ouvinte para ambientes reconhecíveis e dá destaque às partes mais importantes da mensagem a transmitir (como se fossem o refrão de uma canção), em A Polegarzinha a música, em plano de fundo, torna-se distrativa e prejudica o acompanhamento e a compreensão da obra por parte de quem a ouve.
O corpus analisado demonstra, no entanto, que nem todos os audiolivros infantojuvenis necessitam de música e sonoplastia. Mensagens do Avô transmite toda a essência da obra apenas com um narrador adequado e uma leitura proficiente. Com Muita Pinta!, também resulta muito bem graças ao ritmo, à rima e à aliteração que fazem parte do texto e que dinamizam a sua oralização sem se necessitar de acrescentar mais elementos ao áudio.
Apesar de Leandro, Rei da Helíria, não ter, nem necessitar de elementos sonoros complementares, não se pode dizer que tenha resultado numa adaptação de qualidade. Apresenta-se, por isso, um ótimo caso de estudo sobre como géneros literários diferentes exigem soluções editoriais distintas. Esta obra, tendo sido narrada tal como o texto se apresenta em formato físico perde o dinamismo e o ritmo próprios de uma peça de teatro. Em primeiro lugar, foi gravada por uma só narradora que não faz diferenciação de vozes, o que pode provocar uma dificuldade em distinguir as personagens por parte do ouvinte; e, em segundo lugar, torna-se monótona pela constante referência do nome das personagens antes das suas falas. Por contraste, Astérix - O Menir de Ouro, tendo sido escrito também como texto dramático, acaba por resultar numa experiência quase cinematográfica de grande qualidade devido a ter uma voz para cada personagem, assim como um narrador e efeitos sonoros para as indicações cénicas. Deste modo, deduz-se que um audiolivro adaptado de um texto dramático, para ter qualidade, deva ser produzido em semelhança ao teatro radiofónico – interpretado por um elenco completo de narradores profissionais (preferencialmente com experiência de teatro ou dobragem) e com as didascálias interpretadas, narradas por uma voz distinta ou substituídas por efeitos sonoros.
Astérix - O Menir de Ouro e O Pavão Yoyô e o Tigre Gagá Juntos Fazem Yoga demonstram também como se podem criar conteúdos editoriais inovadores com o formato áudio. Apesar de serem formatos quase incompatíveis, o audiolivro, à semelhança do livro-álbum, promove o desenvolvimento de novas formas de contar histórias e de oferecer entretenimento de qualidade às crianças, assim como promove hábitos de leitura nos jovens portugueses. Tal como o livro-álbum, o formato áudio tem ainda muito de experimental, mas no segmento infantojuvenil espera-se que traga obras lúdicas e desenvolva conteúdos inéditos, próprios para serem ouvidos.
5. Conclusão
O audiolivro é um formato editorial que tem sofrido uma grande evolução em termos de popularidade e revenue na última década, pelo que se tornou objeto de um sério investimento por parte das grandes editoras generalistas em Portugal, a partir de 2020. Apesar do futuro promissor que este formato apresenta para o mercado do livro, observa‑se alguma dificuldade em publicar, de forma consistente, audiolivros infantojuvenis de qualidade. Isto advém dos desafios que as diferentes tipologias e géneros de livros para a infância e a juventude levantam na sua adaptação para áudio. Destes desafios destacam-se – para além das limitações características do audiolivro associadas à dificuldade de aquisição de direitos de autor, aos custos de investimento inicial e de produção, e à influência que a proficiência dos narradores tem no produto final – a necessidade de adaptação do texto para que não se percam conteúdos na sua narração, assim como a inclusão de sonoplastia e de música para substituir o papel das ilustrações como forma de cativar e reter a atenção do público-alvo.
Do estudo dos diversos formatos e géneros literários que se podem incluir no subsistema infantojuvenil, constatou-se que há muitos livros que, não sendo impossíveis de adaptar, não faz sentido (numa lógica educativa e/ou de entretenimento) serem convertidos para áudio por perderem características que os tornam apelativos e valiosos para as crianças. São estes os que se incluem na categoria de livro-objeto ou livro-jogo, assim como os livros que não são considerados ficção. Constatou-se também que os livros ilustrados são os mais fáceis de adaptar, sendo o livro-álbum e a banda‑desenhada as tipologias que levantam mais desafios à edição de audiolivros.
Por fim, da análise do corpus, observou-se que, apesar de ser sempre necessário estudar a obra e preparar o seu texto antes de se avançar para a gravação, nem todos os audiolivros infantojuvenis necessitam de efeitos sonoros complementares desde que sejam bem interpretados pelos narradores indicados. Verificou-se ainda que, à semelhança do livro‑álbum, o audiolivro é um formato prometedor no sentido de poder criar conteúdos lúdicos e formas inovadoras de contar histórias, assim como atrair crianças e jovens para a leitura.
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Notas
[1] Audiolivro direcionado para pessoas com deficiência visual – geralmente lido por narradores voluntários (não profissionais) com o mínimo de interpretação possível para deixá-la inteiramente ao dispor do ouvinte. Em Portugal são produzidos pelo serviço de Leitura para Deficientes Visuais da BNP.
[3] De que é exemplo a edição Dom Quixote (2009) de O Meu Primeiro Mozart, de Rosa Salvado Mesquita, “com a história narrada e ilustrada musicalmente por António Cartaxo” (ver https://www.leyaonline.com/pt/livros/infantil-e-juvenil/7-9-anos/literatura-infantil/o-meu-primeiro-mozart-com-cd/).
[9] https://www.kobo.com/pt/pt/search?query=c%C3%A9sar+santos&fcsearchfield=Autho&fcmedia=Audiobook e https://www.kobo.com/pt/pt/search?query=isabel+bernardo&fcsearchfield=Author&fcmedia=Audiobook.
[10] Diretor Geral do Grupo Editorial LeYa e Presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL).
[14] Capa, dimensões, variedade e gramagem do papel, tipo de impressão (influenciada pelo número de cores), número de páginas, presença e quantidade de ilustrações, guardas e badanas, entre outros ().
[15] Ver: As duas estradas, de Isabel Minhós Martins e Bernardo P. Carvalho, publicado pela editora Planeta Tangerina em 2009.