Uma nova arte de fazer livros
No século XXI, cada vez mais, tem-se visto a publicação de obras literárias que convidam à interação com o objeto, intensificando a experiência leitora em razão de estímulos visuais, táteis e sonoros. Publicações nos mais diversos formatos e com designs muitas vezes inusitados exploram os sentidos, tanto os depreendidos pelas leituras dos artefatos quanto os despertados no corpo durante as performances leitoras. Nessas produções literárias, principalmente as endereçadas às infâncias e à juventude, brinca-se com as possibilidades de significação das materialidades, tornando o suporte também linguagem.
Em razão da diversidade de formas de experimentar a arquitetura textual, o objeto livro pode receber diferentes nomes: livro pop-up, livro-teatro, livro-fantoche, livro-túnel, livro-carrossel, livro perfurado, livro-sanfona (ou acordeão, leporello, concertina), entre outras fontes. Em linhas gerais, todos são livros-objeto, uma vez que exploram a fisicalidade da obra.
Essa tendência, que se vê nas últimas décadas, não é exatamente uma novidade, pois já despontava no universo livreiro desde 1770, com Robert Sayer. Contudo, ganha força mais adiante, como lembram :
A adição de "qualquer coisa mais" aos produtos culturais e, ao livro, em especial, na atualidade, radica num processo evolutivo do livro-objeto, composto por três momentos nodais e em sincronia com o movimento de generalização do design, isto é, do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, da década de 1950 até fins dos anos 1970 e vigente desde a década de 1980 até os dias de hoje.
É observando esses processos de constante ressignificação do formato códice, muito comum nos livros de artista, que Ulisses Carrión escreve, em 1975, A nova arte de fazer livros. Em uma espécie de manifesto poético-teórico, ele reflete sobre as potencialidades estruturais do livro enquanto expressão artística, reverberando nos anos 1980 na pesquisa e na criação de Julio Plaza.
Esse novo modo de se fazer e, consequentemente, de se ler os livros impacta as noções de autoria, bem como os protocolos sacralizados de leitura:
Para ler a velha arte basta conhecer o alfabeto. Para ler a nova arte devemos apreender o livro como uma estrutura, identificar seus elementos e compreender sua função. [...] Na velha arte todos os livros são lidos da mesma maneira. Na nova arte cada livro requer uma leitura diferente. Na velha arte, ler a última página leva tanto tempo quanto ler a primeira. Na nova arte o ritmo da leitura muda, aumenta, acelera. ()
Como se percebe, então, a figura do autor, quase sempre atrelada ao escritor, é alargada para um profissional que pensa a obra como um todo, articulando palavra, imagem e design. Não se trata mais de alguém que escreve, mas que também ilustra e concebe o projeto gráfico, propondo ao leitor uma experiência estética singular. À luz de , e vão chamar de fazedor de livro o sujeito que constrói as camadas de sentido de uma obra a partir do arranjo entre os diferentes elementos que a compõem. Esse entrelaçamento das múltiplas semioses cria uma certa interdependência: "A escolha do papel, formato, dimensão, letra, tipo de impressão, encadernação, quantidade de texto em cada página [...] são de grande importância por interferirem no modo de construir um todo, essa proposta de leitura chamada livro" ().
Vale pontuar que, nem sempre, o fazedor de livro é também o designer, mas está em contato direto com quem cria o design, visto que concebe o projeto literário por inteiro (capa, quarta capa, folha de rosto, epígrafe, apresentação do colofão, disposição do ISBN, luva, jaqueta, cinta, orelha etc.), pensando em formas de brincar com esses paratextos como parte do arranjo literário.
O trabalho que ora se apresenta pretende refletir acerca da possibilidade de que uma leitura de "Ismália", poesia de Alphonsus de Guimaraens (1923), a partir do poema/livro-objeto, de Odilon Moraes (2006), ilustrador e autor do projeto-gráfico, desperte em leitores mais jovens (não só mas também) o prazer por conhecer uma poesia clássica da literatura simbolista brasileira. Em razão dos aspectos lúdicos, plásticos, sensoriais e interativos presentes neste conjunto híbrido e "escultórico" de linguagens, crê-se no potencial de sedução para uma leitura performática, pois:
[...] com ilustrações erigíveis sofisticadas e mecanismos elaborados, características que fazem desses volumes, cada vez mais, objetos de entretenimento, capazes de surpreender leitores de distintas idades e que transformaram, significativamente, o objeto livro que hoje conhecemos. ()
Para apreciar melhor a obra de Alphonsus de Guimaraens e Odilon Moraes, traz-se, a seguir, uma leitura analítica da poesia simbolista "Ismália", do poeta mineiro, cuja obra, como um todo, foi uma das mais altas expressões dessa estética artístico-literária no Brasil do final do século XIX e início do século XX.
De "Ismália", de Alphonsus de Guimarães, a Ismália, de Odilon Moraes: "a palavra impressa [...] presa na matéria do livro" ()
Solidão, loucura, desilusão, nostalgia, amor e religiosidade são algumas temáticas constantes e intensamente laboradas na lírica metrificada, rimada e musicalizada do poeta simbolista mineiro Alphonsus de Guimaraens (1870-1921). Abalado pelo falecimento precoce de sua noiva, como assinalam alguns autores que o estudaram (), as temáticas da morte e do amor sublimado estão sedimentadas nas suas páginas de intenso lirismo musical.
A poesia "Ismália" foi publicada inicialmente, em 1910, no Jornal A Gazeta, de São Paulo. Nessa publicação, a figura feminina evocada chamava-se Ofélia e o primeiro verso era “Quando Ofélia enlouqueceu”. Havia também outros dois versos diferentes, a saber, o 13 e 14, que, posteriormente, sofreram mudanças: “E como um lírio pendeu/ A imagem para voar”. Uma segunda versão dessa poesia, ainda em 1910, foi publicada em dois diários de Minas Gerais: O Germinal e Jornal do Comércio. Nela, o vocábulo “lírio”, do verso anterior acima, foi substituído por “anjo". Em 1915, numa terceira versão, ainda com Alphonsus de Guimaraens vivo, o verso 14 foi transformado em “As asas para voar”. Finalmente, em 1923, numa versão póstuma, surgiu, em vez de "Ofélia", o nome "Ismália". A versão apareceu publicada pelo filho do poeta, João Alphonsus (1901-1944). Há algumas especulações para a mudança, sendo uma delas a de se afastar da referência à personagem de Shakespeare ou mesmo buscar por uma maior sonoridade para o poema, verdade apenas é que Ismália ganhou a eternidade e Ofélia morreu com o poeta ().
Odilon Moraes é ilustrador e autor do projeto gráfico de Ismália, livro publicado em 2006 e reeditado em 2014, pela Cosac Naify, e relançado em 2018, pela editora do Sesi-SP. No arranjo estético das duas últimas edições, apresenta-se: 1. O papel com sua gramatura diferenciada (off set por volta de 150g/m2) para garantir a qualidade das dobras; 2. O formato horizontal e sanfonado de Ismália, agora livro-poema (); 3. A dimensão pequena (16, 7 x 12,1 cm) que cabe quase na palma da mão; 4. O acabamento em capa dura; 5. As cores frias no interior do livro: o marrom em tons terrosos que alternam com um certo embaçamento advindo do branco; 6. As ilustrações que conferem plasticidade a elementos mencionados no texto e de forte conotação simbólica, como a lua, a torre, o mar e o céu.
O próprio movimento do olhar leitor, percorrendo as "páginas", ora para cima (céu), ora para baixo (mar), cria, a partir de um design "imaterial", ativado pelo manuseio, um ritmo de leitura, que se desprende do modo tradicional de ler (). Essa relação íntima com o objeto livro transforma o suporte, em formato sanfonado vertical, em uma instância de significação.
É importante ressaltar, como expõe Odilon Moraes, em capítulo intitulado "O livro como objeto e a literatura infantil", publicado na obra Entre ser um e ser mil: o objeto livro e suas poéticas, organizado por Edith Derdyk, em 2013, que:
Todo suporte traz em si qualidades análogas ao tipo de registro que sustenta. Se a literatura guarda, de sua origem, a estreita relação com a oralidade, não por acaso nossa cultura adotou o livro para suporte de literatura. Assim como ela, o livro como objeto guarda em sua estrutura uma sequência que dá ordem à narrativa. Nos livros, as páginas organizam esse tempo de leitura, enquanto as imagens e letras organizam o tempo interno de cada página. A forma do livro chegou ao que é pelas necessidades da própria literatura, calcada na exploração dessa temporalidade. Toda a estrutura física desse objeto permite a simulação do tempo. ()
E o tempo da personagem Ismália, no poema narrativo, de Guimaraens, não é como nos outros tempos. Trata-se do tempo da solidão, da angústia existencial, da busca por uma compreensão de si mesma. É ainda o tempo da insanidade e até mesmo o da loucura. No livro-objeto, o tempo é outro também, pois em cada ida para cima e para baixo, em um exercício lúdico de desdobrar as "páginas" na vertical, Ismália parece compartilhar com o leitor que movimenta o livro, todos esses sentimentos instáveis, confusos e dolorosos de que padece, em um ir e vir emocional que culmina com seu êxtase final.
Pensando nas três edições, duas da Cosac Naify (2006/2014) e uma da Editora do , observa-se que nada no poema original de Guimaraens foi alterado. O texto verbal está na íntegra, mas não é mais o mesmo. Odilon Moraes, a partir de uma proposta que articula palavra, imagem e design, produz uma obra nova, cuja potência extrapola os limites da linguagem escrita. Nessa proposição artístico-literária, o leitor se transforma em sujeito inter-ativo, um coautor, que vai ativando outras camadas de sentido ao manusear o livro (): as "subidas" e as "descidas" nas páginas sanfonadas não só dão ritmo à leitura, mas também o levam a participar da angustiante dúvida existencial de Ismália em seu devaneio solitário no alto de sua "masmorra" ou ainda em seu profundo abismo existencial, nas águas do mar. Ao ser explorada a arquitetura da obra, ela se transforma em mediadora do texto, porque o livro-objeto é:
[...] revelador das potencialidades criativas da estética contemporânea exatamente pela exploração da dimensão lúdica que decorre da sua existência material e interativa, alterando a relação do leitor com o livro.
[...] o grau de liberdade do processo de leitura é claramente amplificado, permitindo (exigindo!) avanços e recuos nas páginas, tirando partido da espontaneidade do leitor e da sua iniciativa no contato direto com a matéria de que são feitos os livros, crucial do ponto de vista da sua construção e estrutura. ()
Diante de tudo isso, cabe perguntar: de quem seria a autoria de Ismália agora? A resposta, provavelmente, seria uma parceria entre o escritor do texto verbal (Alphonsus de Guimaraens) e o ilustrador e responsável também pelo projeto gráfico (Odilon Moraes), bem como todos os outros profissionais presentes na produção desse objeto livro. O leitor também faz parte deste coletivo como aquele que- ao manipular as dobras ao longo da experiência leitora- ajuda a construir os sentidos. Esse arranjo estético, que garante protagonismo ao leitor, fomenta a expansão de horizontes de compreensão da obra vista como conjunto de forças rítmicas, sonoras, espaciais e temporais.
Ao se apropriar de Ismália, de Guimaraens e Moraes (2006/2014/2018), o leitor se encontra com um objeto em mãos que o desafia a uma leitura diferenciada e multimodal. Não é mais apenas o ritmo sonoro dos versos de Guimaraens que está em jogo, mas sim um novo ritmo de leitura, marcado pela percepção das cores, pela disposição dos elementos na página, pelo formato, pela dimensão etc. Como salienta :
[...] o livro-objeto como um produto híbrido, [é] composto pela simultaneidade da narrativa literária, das narrativas imagéticas, sensoriais, além de uma dimensão prática tátil, ‘escultórica’, a qual evidencia a relevância do design em seu processo de construção de sentidos. Partindo-se dessa acepção, o livro-objeto ultrapassa a linguagem verbal, constituindo-se como um objeto visual, tátil, e mesmo sonoro, olfativo, trazendo para esse objeto um conteúdo essencial ligado à sua materialidade.
É sobre esse desafio de leitura para os jovens leitores que a seção à frente irá se debruçar.
Da linguagem verbal ao suporte material: os desafios de "uma sequência de espaço-tempo que identificamos com o nome de livro" ()
No século passado, o livro para crianças e jovens, de forma geral, era associado a um conjunto de folhas com registro verbal a serem viradas a cada página lida e, na maior parte dos casos, com algumas ilustrações esparsas, muitas vezes, apenas como adorno. Embora no Brasil, desde o período lobatiano, já houvesse certa preocupação com a ilustração que acompanha o texto literário, o chamado livro ilustrado somente passaria a ganhar espaço em meados de 1969 com a publicação de Flicts, de Ziraldo, abrindo assim um período que valoriza a experimentação das linguagens.
Muitos autores, em parceria com ilustradores ou eles mesmos autores-ilustradores, passaram a tornar independentes texto verbal e texto pictórico. Ou seja, sem ela, a imagem, trata-se de uma outra obra (). Ismália, de Guimaraens e Moraes, livro-objeto sanfonado, se apresenta ao leitor como "potência em si", lembrando palavras de, já que se trata de uma obra para idades diversas e não apenas para as infâncias. Aliás, , em seu texto "Entre materialidade e imaginário: atualidade do livro-objeto" destaca que é "difícil poder afirmar que [livros-objetos] se dirigem para um público infantil" (). Seja para esse público ou para outro mais adulto, as potencialidades de obras como Ismália contribuem para que o leitor criança, jovem ou adulto se envolva completamente na experiência sensório-corporal (visual, auditiva, tátil) e estético-cinética propiciada pelo "conjunto escultórico" que emana do livro, propiciando-lhe, muito possivelmente, uma experiência lúdica, prazerosa e diferenciada de outras leituras.
Alphonsus de Guimaraens é comumente estudado como um escritor representativo do movimento simbolista no Brasil, informam as histórias da literatura. Para os poetas simbolistas, as realidades sensoriais eram representadas pela intersecção entre artes, música, literatura, pintura etc. (). Somente através dessa perspectiva era possível alguma unificação entre a vida material, limitada, e a vida espiritual, libertária. Havia um "não" dito à realidade observada e um "sim" dito para a essência dessa realidade, vista através do prisma simbólico do mistério, do sagrado, dos dramas existenciais, da linguagem fluida e musicalizada.
Guimaraens é mineiro de Ouro Preto, mas passou boa parte de sua vida isolado em Mariana, onde hoje existe, na casa onde viveu, o museu Alphonsus de Guimaraens. Sua poesia, conhecida como "crepuscular", apresenta como temáticas a dor pela perda de sua amada, Constança (quando ela era muito jovem), a pena de si mesmo e a morte. Em seus versos, sempre "chorosos", cadentes e ricamente rimados, tudo parece ser deslocado para uma interpretação sonhada, mística e até cristianizada do mundo. Seu próprio nome aparece em uma de suas poesias, "Catedral", em forma de litania, e se repete como um refrão a ecoar sonora e tristemente na mente do leitor:
Entre brumas, ao longe, surge a aurora/ O hialino orvalho aos poucos se evapora, / Agoniza o arrebol. / A catedral ebúrnea do meu sonho/ Aparece, na paz do céu risonho, / Toda branca de sol.// E o sino canta em lúgubres responsos:/ “Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus! ()
Assim como a sugestão imagética da "catedral ebúrnea" surge toda branca de sol, em "Ismália" o leitor se depara com a torre onde a personagem, já ensandecida, se põe a sonhar:
Quando Ismália enlouqueceu / Pôs-se na torre a sonhar... / Viu uma lua no céu / Viu outra lua no mar. // No sonho em que se perdeu / Banhou-se toda em luar... / Queria subir ao céu / Queria descer ao mar... // E num desvario seu / Na torre pôs-se a cantar / Estava perto do céu / Estava longe do mar // E como um anjo pendeu / As asas para voar... / Queria a lua do céu / Queria a lua do mar... // As asas que Deus lhe deu / Ruflaram de par em par... / Sua alma subiu ao céu / Seu corpo desceu ao mar... ()
A escolha da palavra "torre" pode apresentar vários significados e sugerir algumas possibilidades de leitura, ancoradas em . Para esses pesquisadores, "A construção de uma torre evoca imediatamente Babel, a porta do Céu, cujo objetivo era o de restabelecer por um artifício o eixo primordial rompido e por ele elevar-se até a morada dos deuses" (). E, mais adiante, "[...] a tradição de um edifício sagrado elevado em direção ao Céu, [...] procedia, talvez, da origem do desejo de aproximar-se do poder divino e de canalizá-lo para a Terra" (). Com isso é possível pensar que, ao se descobrir perdida dentro de si mesma, a personagem (não se pode esquecer que o poema é narrativo) busca aproximar-se, em um primeiro momento, da figura divina para buscar a salvação. Mas o sofrimento interior, já tão arraigado ("Quando Ismália enlouqueceu"), leva-a a oscilar entre uma solução divina e outra terrena que ela encontraria na imagem simbólica da "lua" no céu e seu reflexo, no mar.
A lua é um símbolo dual, de certa forma contraditório, "[...] é para o homem o símbolo da passagem da vida à morte e da morte à vida; ela é até considerada, entre muitos povos, o lugar dessa passagem, a exemplo dos lugares subterrâneos" (). Ou ainda, lembrando Plutarco:
"[...] é a morada dos deuses bons depois de sua morte. Levam aí uma vida que não é nem divina, nem feliz, mas, contudo, isenta de preocupação, até a sua segunda morte. Porque o homem deve morrer duas vezes". Assim a Lua é morada dos humanos entre a desencarnação e a segunda morte, que será o prelúdio do novo nascimento. ()
Se possível for pensar por esse viés de leitura, Ismália (cujo nome significa "Deus ouve" ou "Deus ouvirá" e ainda é provável que seja uma variante de Ismaela, feminino de Ismael, que significa "ele ouvirá") está associada simbolicamente ao contexto cristão, bastante presente em obras do movimento simbolista e quase uma marca na poesia de Guimaraens. A torre é isolada, alta e no alto, quase uma escada para o céu onde a lua brilha e envolve a atenção de Ismália, seduzindo-a por seu branco embaçado, etéreo, puro, divino. Por oposição, no mar, há seu reflexo, mais turvo e esbranquiçado, mas também mais terreno e próximo do alívio para sua alma perturbada. Assim, Ismália anseia pela lua do céu, pela busca por uma solução via espiritualidade, mas também pela lua do mar, onde se encontra o indistinto, o turvo, o vazio mais tangível e, por que não, talvez, a solução mais eficiente para sua existência atormentada pela loucura. E no mar também há outra dualidade: a água que tudo purifica, também afoga, consome, destrói. Para , “A água é um nada substancial. Não se pode ir mais longe no desespero. Para certas almas, a água é matéria do desespero”. Seria Ismália uma dessas almas?
"Estava perto do céu, / estava longe do mar...", são dois versos paradoxais sob o ponto de vista da escolha de Ismália, embora ambos conduzam à dúvida existencial e à tomada de decisão da personagem para o mesmo lugar, o fim: "E como um anjo pendeu, As asas para voar...[...] / Sua alma subiu ao céu, / Seu corpo desceu ao mar". Há ainda referência ao sagrado quando o leitor se depara com "anjo", "asas", Deus ("As asas que Deus lhe deu /Ruflaram de par em par"). Apesar de ser para o alto que Ismália decide ir, apenas no sonho, na imaginação e na visão turva da possibilidade de alçar voo é que se encontra a decisão tomada. A realidade é anunciada e selada pelos versos finais "Sua alma subiu ao céu, / Seu corpo desceu ao mar...".
De antíteses a paradoxos, o leitor é conduzido por um ambiente de sandice, cuja decisão final sobre a vida é coerente com todo o percurso dual que o poema percorre. A solução para o drama existencial de Ismália só pode ser encontrada em outra esfera. Os próprios verbos, todos no pretérito, indicam a impotência já diante da vida, quando o futuro não pode ser mais vislumbrado. Nessa peleja existencial, a morte do corpo e a salvação da alma triunfam como paradoxo final: a alma de Ismália subindo ao céu e seu corpo repousando no mar. A busca pelo descanso eterno parece ter sido atingida.
Essa poesia é considerada, segundo estudiosos como Abdala Júnior (1995), uma das mais altas expressões do Simbolismo no Brasil, em especial, pela presença marcante da musicalidade em seus versos e proporcionada pelas rimas alternadas em todas as estrofes. O ritmo lento e derramado que a leitura delas imprime vai ao encontro da loucura que invade Ismália. As reticências presentes ao final de alguns versos precisam ser respeitadas porque contribuem para intensificar a dúvida existencial que o poeta atribui à personagem. Todo o ritmo parece pensado para contribuir com a atmosfera diáfana e translúcida que flui ao longo da leitura do poema, levando o leitor a participar da cena que ele parece presenciar. A poesia, assim, além de narrativa, torna-se performática. Para:
Quanto à presença, não somente a voz, mas o corpo inteiro está lá, na performance. O corpo, por sua própria materialidade, socializa a performance, de forma fundamental [...] A performance é uma realização poética plena: as palavras nela são tomadas num único conjunto gestual, sonoro, circunstancial tão coerente (em princípio) que, mesmo se distinguem mal palavras e frases, esse conjunto como tal sentido.
É nessa perspectiva de Zumthor que a obra de Guimaraens e Moraes, Ismália (2006/2014/2018), passa agora a ser analisada. A apresentação mais detalhada desse livro-objeto pretende sugerir um trabalho pedagógico com jovens leitores em virtude do projeto gráfico que pode contribuir, decisivamente, para a "ampliação dos sentidos sugeridos pelo texto literário" ().
Odilon Moraes é paulistano, nascido em 1966. Ainda pequeno mudou-se com os pais para o interior do estado. Voltou à capital para cursar Arquitetura. Acabou, por questões pessoais, se aproximando da ilustração e desde então acumula os mais diversos prêmios literários como o Jabuti. Completou, em 2021, trinta anos de carreira como ilustrador/escritor/fazedor de livro e, para comemorar, publicou uma obra apenas sobre ilustrações que ele produziu durante a pandemia que assolou o mundo em 2020/2021.
É importante recuperar aqui um pouco sobre o livro em questão. Não se parece, à primeira vista, com as obras que os leitores estariam comumente acostumados, já que ela vem inserida em uma luva como se fosse uma pequena caixa de presente. Na primeira edição da Cosac Naify, a luva e a capa se diferem, não só nas cores, como também no material usado. A capa da edição de 2006 é forrada em tecido, enquanto a de 2014 é cartonada sem qualquer referência ao título. O mesmo ocorre com a de 2018.
Ao ser retirado da luva, o exemplar literário não apresenta páginas tradicionais, mas sim 23 dobras, criando uma longa concertina. Na capa e quarta capa em tom bege das edições de 2014 e 2018, há elementos que remetem ao texto verbal, indiciando o estado emocional de Ismália, que deseja se libertar do cárcere dos sentimentos contraditórios. Na versão da Cosac Naify, tem-se a lua e a personagem em queda. Já na do Sesi-SP, uma flor, desenhada a bico de pena, que remete à lembrança de um lírio (talvez à palavra que aparecia na primeira versão da poesia: "Como um lírio pendeu, / a imagem para voar").
As capas reforçadas não são gratuitas, afinal, o próprio suporte, que aqui também é linguagem, precisa ser firme para resistir às várias manipulações que o leitor fará do livro toda vez que for lê-lo. Para contribuir com a resistência do material, a gramatura do papel do miolo também é diferenciada, por isso optou-se por offset 140g/m2 (2014) e 150g/m2 (2006 e 2018), informação que pode ser encontrada no verso da primeira dobra.
Ao retirar o livro do invólucro, o leitor é convidado a uma leitura atravessada pelo experimentar que começa na escolha de como ler esse livro-objeto: tanto simulando um "virar de páginas", como "soltando" o livro de modo que as 23 dobras "caíam" à moda de uma cascata. Isso sem considerar outras maneiras inventivas que o jogo lúdico pode oportunizar.
No manuseio do artefato literário, o jovem leitor pode vir a perceber que a musicalidade é reforçada pelo arranjo palavra-imagem-design, aguçando a curiosidade sobre a construção rítmica. Ao mediador, enquanto um provocador, cabe lançar perguntas que instiguem o olhar e o gesto de descoberta.
Dessa forma, o leitor já começa a tomar contato com a dualidade antitética e paradoxal que perpassa todo o poema simbolista (1923) e se faz materializada na obra de Guimaraens e Moraes (2006/2014/2018). Essa arquitetura textual, que seduz pelo inusitado formato do livro, convida o leitor a acompanhar de perto o devaneio de Ismália que vai se desvelando na alternância de estados psicoemocionais. Ao aceitar essa espécie de imersão no poema-narrativo que se (des)dobra, o leitor assume uma leitura performática em que o corpo é convocado a interagir.
Nessa experimentação dos elementos constituintes, as cores chamam a atenção do leitor, o que pode ser explorado pelo mediador em uma roda de conversa apreciativa: o que o branco e suas variantes, bem como o marrom em seus variados tons terrosos, podem significar? Como a escolha cromática se relaciona com o campo semântico do poema?
Nesse movimento de inferir e levantar hipóteses a partir do diálogo entre palavra e imagem, o jovem leitor pode perceber como a técnica da aquarela, utilizada na composição das ilustrações, valoriza o cenário soturno atravessado por uma lua cheia, onde se encontra Ismália, ao mesmo tempo em que reforça o ambiente sorumbático e envolvido pelos fantasmas da loucura, da morte e da dúvida existencial que habitam o interior da personagem.
Tais percepções afinadas alargam as possibilidades de significação, como é o caso da existência de "molduras" nas dobras, uma "não", outra "sim", até o final. Segundo :
Observando a primeira página dupla, verifica-se a presença de uma moldura em branco, a qual limita o campo visual e sugere que o leitor esteja assistindo à cena através de uma janela. Na segunda dupla, nota-se que a moldura é retirada, inserindo o leitor dentro da cena e ampliando, portanto, seu campo de visão. Esse movimento de inserção e retirada de molduras se repetirá ao longo de toda a obra, provocando a sensação no leitor de ser puxado para dentro e para fora do cenário.
Ao se debruçar sobre esses detalhes, outros conhecimentos de mundo acabam sendo mobilizados, como aqueles ligados ao universo cinematográfico. Quando comparam páginas com e sem molduras, por exemplo, os leitores podem notar que naquelas com molduras há sempre uma cena em "close", marcada por um verbo de ação, que é executado por Ismália: "pôs-se", "banhou-se", "pôs-se" (novamente), "pendeu", "ruflaram". Já naquelas sem a moldura, cada uma dessas cenas pode ser ampliada e refletida pelas ilustrações que representam as antíteses marcantes da poesia "céu x mar", "subir x descer"; "lua do céu x lua do mar"; "alma x corpo"; "subiu ao céu x desceu ao mar". Abaixo, um exemplo:
Observando as capas duras que abrem e fecham o poema/livro-sanfona, pode-se pensar nelas como as portas da prisão que sufocam a personagem Ismália no interior da torre, local de onde ela estaria “louca” para sair.
Há também a possibilidade de tecer diálogos com outras histórias, como O labirinto do fauno, película de 2006, dirigida por Guillermo Del Toro, que foi transformada em livro pelo diretor e roteirista mexicano com ajuda de Cornelia Funke. Nessa história, publicada no Brasil em 2019 pela Intrínseca, a personagem Ofélia transita por dois mundos: o da imaginação, onde ela quer estar, e o da realidade, onde padece terrivelmente por se encontrar no cruel cotidiano da Espanha fascista que se confunde com sua história pessoal de ausência paterna e padrasto general-fascista. O desfecho da obra sugere, ao mesmo tempo, na esfera do real, a morte de Ofélia bem como, no espaço do imaginário, sua coroação como princesa de um mundo subterrâneo, cujos súditos nela encontram a figura de sua princesa desaparecida. Ao espectador e ao leitor cabe fazer a escolha preferida.
É também possível buscar a música "Ismália", de Emicida (participação de Larissa Luz e Fernanda Montenegro), cuja letra o rapper associa às antíteses da poesia e a temas fraturantes como o preconceito e o racismo. Ao final dessa versão, que se apropria da poesia de Guimaraens, é possível se deparar com o excerto abaixo que provoca uma espécie de "choque" de realidade no leitor ao explicitar que Ismália "quis tocar o ceú, mas terminou no chão". A antítese entre céu, que sugere leveza e paz, e chão (não mais "mar"), que denota impacto com realidade e frieza, parece retirar o leitor do devaneio provocado pela poesia simbolista e atirá-lo à realidade da música que apresenta as consequências provocadas pelo preconceito e pelo racismo vivenciados, em especial, pelas mulheres pretas.
No fim das conta [sic] é tudo Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão
Ter pele escura é ser Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Ismália, Ismália
Quis tocar o céu, mas terminou no chão
(Terminou no chão)
As provocações, que nascem do diálogo da poesia com outras artes, aguçam processos cognitivos e sensório-perceptivo-corporais, intensificam a compreensão da dualidade presente nos versos e abrem para reflexões humanas: será que o suicídio é a melhor saída para lidar com as angústias existenciais? É possível uma fuga das dores que assolam o ser por meio da imaginação, do sonho e do devaneio? A literatura possibilita expurgo dos sentimentos ou refúgios, dando asas às inquietudes da vida? Quais outras Ismálias podem ser encontradas na contemporaneidade, como sugeriu Emicida na música?
A título de Considerações Finais
Levar textos literários clássicos para a sala de aula é sempre um desafio que precisa ser encarado pelo professor-mediador. A discussão que aqui se procurou desenvolver com a obra de Guimaraens e Moraes (2006/2014/2018) pretendeu mostrar que é possível, a partir de uma proposta de exploração das materialidades desse objeto livro e de conversas apreciativas, oportunizar o alargamento das camadas de significação da poesia simbolista de Alphonsus de Guimaraens.
A opção de Odilon Moraes por conceber a obra em formato sanfona, como apresentado, já convida o leitor a manusear o livro-objeto, transgredindo protocolos de leitura sacralizados. Ao experimentar formas de ler Ismália, em sala de aula, inicia-se um complexo processo de (re)significação a partir de um olhar e de um gesto de descoberta, os quais descerram as dobras, as cores, as molduras, entre outros elementos constituintes, como potencializadores da dualidade existencial da personagem, marcadas no texto verbal pelas escolhas lexicais (céu e mar, alto e baixo, loucura e sanidade), pelas figuras de linguagem (antíteses, paradoxos) etc.
Por meio de uma experiência estética, lúdica e performática, o leitor inter-ativo, como um coautor, explora sentidos (da leitura e do corpo), atualizando um poema com quase 100 anos. Isso, com certeza, diminui a resistência de se ler um texto clássico. No mais, como bem lembra o próprio Odilon Moraes:
O trabalho do escritor se finda no livro, mas é pelo objeto que o leitor colocará a obra em andamento, a completará a partir do outro lado. Assim, para a literatura, atentar ao espaço físico do objeto é sugerir ao leitor uma condução desejada para a leitura da obra. ()
Sendo assim, em tempos de multimodalidades, multisemioses e mídias digitais, encontrar alternativas para aproximar o leitor do século XXI de um clássico do início do século XX é sempre uma boa maneira de dar início a um processo de mediação de leitura.
Referências
2
Abreu, A. S. V. (2013). O texto potencial no sistema ecológico do livro ilustrado infantil: palavra-imagem-design [Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. https://sapientia.pucsp.br/handle/handle/14726
6
Ceia, C. (s.d.) E-Dicionário de Termos Literários. https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/pnarrativo
7
8
9
D'angelo, B. (2013). Entre materialidade e imaginário: atualidade do livro-objeto. IPOTESI, 17(2), 33-44. https://periodicos.ufjf.br/index.php/ipotesi/article/view/19446
13
Martins, D. M. e Silva, S. R. da. (2020). A evolução do livro-objeto: técnica e estética. FronteiraZ. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, 24, 87-103. https://doi.org/10.23925/1983-4373.2020i24p87-103
14
15
16
17
Navas, D. e Ramos, A. M. (2020). Ismália e o Arenque Fumado: a expansão de sentidos a partir da materialidade do livro. FronteiraZ. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em Literatura e crítica Literária da PUC-SP, 24, 40-56. https://doi.org/10.23925/1983-4373.2020i24p40-56
19
21
22
Silveira, P. (2008). As existências da narrativa no livro de artista [Tese de doutoramento]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/12111
Notas
[1] A primeira edição de A nova arte de fazer livros (1975), publicada em língua portuguesa, foi lançada em 2011 pela C/Arte. Com tradução e projeto gráfico de Amir Brito Cadôr, a obra incorpora elementos de outros livros de artista de Ulisses Carrión.
[2] Segundo Carlos Ceia, em E-Dicionário de Termos Literários, o poema narrativo caracteriza-se como a manifestação literária em verso na qual se realiza a narração ficcional de fatos ou de ações antropomorfizadas, com traços dramáticos, cômicos ou sérios e pode ser de alcance universal, regional ou local, dada a presença ou a ausência de grandiosidade. Disponível em https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/pnarrativo (acesso em 05/03/2022).
[3] Disponível em https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/ismalia/ (acessado em 14/09/2021).
[4] Na primeira edição da Cosac Naify, foram impressos 3.000 exemplares, sendo 50 numerados e assinados por Odilon Moraes
[5] A edição do Sesi-SP mantém as mesmas características da última da Cosac Naify. Neste artigo, utiliza-se a publicação de 2018 como referência.
[6] Disponível em https://www.letras.mus.br/emicida/ismalia-part-larissa-luz-e-fernanda-montenegro/ (acesso em 05/10/2021).