Resumo
O livro ilustrado contemporâneo tem apresentado cada vez mais características inovadoras na materialidade de seu texto. Os recursos gráficos, que promovem experiências tácteis para além do contato visual, estão seduzindo leitores de diversas faixas etárias. As fronteiras que delimitam o endereçamento de uma obra como o livro ilustrado podem ser muito tênues, principalmente, em se tratando de livros que abordam temas relacionados à sociabilidade humana. Desse modo, inscrevendo-se em uma perspectiva semiolinguística de análise (Charaudeau, 2008), que focaliza o contrato de comunicação instaurado pela literatura como uma troca interlocutiva postergada entre escritor e leitor, esse estudo pretende investigar as competências de leitura requeridas pelo livro ilustrado, que podem atuar como parâmetros de pré-validação (Emediato, 2007) para efetivar um contrato de leitura com o destinatário adulto. O corpus de análise desta investigação é composto por dois livros ilustrados brasileiros: Triste (Sica, 2019) e Inquérito policial: família Tobias (Lísias, 2016).
Palabras chave
Competências de leitura e o destinatário adulto em Livros Ilustrados Reading skills and adult readers in Picturebooks
Anabel Medeiros Azerêdo de Paula
Competências de leitura e o destinatário adulto em Livros Ilustrados Reading skills and adult readers in Picturebooks
Boletín Galego de Literatura, núm. 59, 2021
Universidade de Santiago de Compostela
Anabel Medeiros Azerêdo de Paula a
Universidade Federal Fluminense, Brasil
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Recepção: 14 Setembro 2021
Aprovação: 07 Novembro 2021
Resumo: O livro ilustrado contemporâneo tem apresentado cada vez mais características inovadoras na materialidade de seu texto. Os recursos gráficos que promovem experiências tácteis para além do contato visual estão seduzindo leitores de diversas faixas etárias. As fronteiras que delimitam o endereçamento de uma obra como o livro ilustrado podem ser muito tênues, principalmente, em se tratando de livros que abordam temas relacionados à sociabilidade humana. Desse modo, inscrevendo-se em uma perspectiva semiolinguística de análise (Charaudeau, 2008), que focaliza o contrato de comunicação instaurado pela literatura como uma troca interlocutiva postergada entre escritor e leitor, esse estudo pretende investigar as competências de leitura requeridas pelo livro ilustrado, que podem atuar como parâmetros de pré-validação (Emediato, 2007) para efetivar um contrato de leitura com o destinatário adulto. O corpus de análise desta investigação é composto por dois livros ilustrados brasileiros: Triste (Sica, 2019) e Inquérito policial: família Tobias (Lísias, 2016).
Palavras-chave: livro ilustrado; destinatário adulto; competências de leitura.
Abstract: The contemporary picturebook presents more and more innovative characteristics in the materiality of its text. The graphic resources which promote tactile experiences beyond visual contact are seducing readers of different age groups. The boundaries that delimit the address of work such as the picturebook can be very tenuous, especially when it comes to books that address issues related to human sociability. Thus, inscribed in a semiolinguistics analysis perspective (Charaudeau, 2008), which focuses on the communication contract established by literature as a delayed interlocutory exchange between writer and reader, this paper intends to investigate how reading skills required by picturebooks, which can act as pre-validation parameters (Emediato, 2007) to effect a reading contract with the adult recipient. The corpus of analysis of this investigation is composed of two Brazilian picturebooks: Triste (Sica, 2019) and Inquéritopolicial: família Tobias (Lísias, 2016).
Keywords: picturebook; adult recipient; reading skills.
Palavras Iniciais
As mudanças intelectuais e culturais iniciadas no século XX, impulsionadas não só pelo avanço tecnológico – que inaugurou novos meios de comunicação –, mas também pelo desenvolvimento do cinema e da publicidade, e pelo surgimento da globalização, como a entendemos hoje, marcaram o início da pós-modernidade e influenciaram também a produção de livros ilustrados. Nikolajeva (2008) chama atenção para o caráter lúdico que essas obras conheceram após 1990 e aponta o desenvolvimento de formatos híbridos, da multimodalidade da linguagem, da interatividade e da digitalização como características estéticas que passaram a constituí-los nessa nova era. Recursos usados amplamente na Literatura, como a intertextualidade, a ambiguidade e a metaficção, passaram a ser empregados também em livros ilustrados com vista à multiplicidade de sentidos.
Vale lembrar que o livro ilustrado nasceu, como um tipo editorial sui generis, a partir de um longo e exigente processo de evolução das técnicas de impressão e da criatividade artística dos ilustradores de livros infantis. Entretanto, atualmente, já se percebe um segmento editorial consistente voltado ao público adulto, que toma de empréstimo as muitas técnicas de expressão visual dos livros destinados às crianças.
De acordo com Beckett (2009), a prática de apropriação de obras por leitores divergentes ao público destinatário é uma prática antiga no domínio literário. Esse fenômeno ficou conhecido como literatura crossover e pode ser percebido em duas direções: do adulto para a criança, a mais tradicional; e da criança para o adulto, a mais recente. No entanto, a autora menciona que a publicação da série Harry Potter foi um evento de destaque na contramão do cruzamento de leituras que se deu do público infantojuvenil para o público adulto. De acordo com Beckett (2009), grandes clássicos mundiais, que necessariamente não tinham as crianças como público destinatário, foram por elas assumidos de tal modo que, com o tempo, passaram a ser reconhecidos como histórias infantis e alguns foram até desprezados pelos adultos. Os temas abordados por essas histórias foram considerados oportunos para a transmissão de valores religiosos, morais, patrióticos e psicológicos, com isso, surgiram inúmeras adaptações dessas grandes obras com finalidade didática, embora muitas crianças tivessem acesso aos textos integrais.
Como se vê, embora muitos escritores não pensem nas crianças como seu público alvo, há obras capazes de circular entre públicos de diferentes idades. Vale destacar, conforme Beckett (2009) afirma, que a criança não é sempre capaz de compreender todas as camadas de significados em determinadas obras, como muitos adultos também não o são, mas isso não parece impedir que o leitor adulto identifique-se com a obra, nem o leitor criança. Conforme Ommundsen (2014, p.19) destaca, “research has shown that the dividing line between competent and non-competent readers does not necessarily relate to age, but rather to literacy, experiences with different texts and means of communication, knowledge, and education.”
Entretanto, de acordo com Ommundsen (2014), desde os anos de 1990, há uma clara e forte tendência para a produção de livros ilustrados narrativos destinatários de adultos, liderada pelos países escandinavos. O objetivo desta pesquisa é contribuir para o debate acerca do endereçamento do livro ilustrado aos adultos. Diferentemente dos livros crossover, essas obras parecem apresentar peculiaridades determinantes e significativas que pouco despertam interesse da criança, mas, por outro lado, causam fascínio ao público leitor adulto. Para tanto, serão analisadas duas obras brasileiras publicadas pela editora Lote 42, a saber: Triste (Sica, 2019) e Inquérito policial: família Tobias (Lísias, 2016).
1. A composição do Livro Ilustrado e a sua leitura
O livro ilustrado, para Feres (2016), apresenta semiose verbo-visual e caráter estético, por isso, a transmissão da mensagem não se concentra, exclusivamente, na parcela verbal ou na parte visual do texto, mas é construída no encontro delas. Assim, percebe-se que, cada vez mais, a componente visual predomina sobre a parcela verbal do texto, a qual pode, inclusive, ser dispensada durante a narrativa. Além disso, pode-se também proceder à narrativa contada integralmente por meio de ilustrações, o que é designado, no Brasil, como livro de imagens.
No entanto, a definição do livro ilustrado contemporâneo já não pode só levar em conta as relações que ocorrem entre a parcela verbal e a parte visual do texto, uma vez que os elementos paratextuais presentes nesse tipo editorial têm sido explorados progressivamente, oferecendo contribuições significativas para a construção do sentido, destacando, assim, o suporte material como outro elemento constituinte do livro ilustrado. Desse modo, vale enfatizar, sob a influência de Linden (2013), que o livro ilustrado é composto pela parcela verbal do texto, pela parte visual e pelo suporte, conforme Ramos (2018) também destaca:
Habitualmente definido por elementos paratextuais, como podem ser a capa dura, as dimensões e o formato, a qualidade do papel e o tipo de impressão em quadricromia, para além do reduzido número de páginas (32) e da presença de muitas ilustrações, o livro ilustrado contemporâneo aposta cada vez mais no recurso à página dupla como unidade de leitura, na inclusão de um texto de reduzida extensão, apresentado com carateres de grande dimensão (e, às vezes, de tamanho variável, já o que lettering também é alvo de uma atenção cuidada no processo de criação do livro). Mas é, sobretudo, na conjugação das imagens com o texto linguístico e na criação de uma inter-relação – no sentido de interdependência – entre as linguagens presentes que reside a especificidade do livro ilustrado, uma vez que se trata de uma publicação que se distingue justamente pela sinergia ou simbiose entre texto, imagem e suporte (Linden, 2013), com a criação de uma linguagem híbrida. (Ramos, 2018, p. 5)
Como se pode inferir, os paratextos destacam-se na configuração do livro ilustrado contemporâneo potencialmente endereçado a crianças, o que nem sempre era possível constatar em obras destinadas a outros públicos. De acordo com Genette (2009, p. 9), “o paratexto é aquilo por meio de que um texto se torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público”, ou seja, esses elementos constituem a materialidade do texto e compõem a mise-en-scène material e discursiva do livro (Mattos, 2017). No livro destinado à criança, a exploração cuidadosa dos paratextos editoriais, reconhecidamente consolidada neste segmento editorial, quase sempre serve a uma estratégia de captação deste público leitor, pois, como afirma Mattos (2017), a possibilidade de manuseio e a apreciação de atributos estéticos e apelativos da obra funcionam como uma porta de entrada da criança no universo simbólico da obra. Portanto, o livro transforma-se em um objeto de desejo, para além do caráter simbólico e cultural que nele se inscrevem.
Entretanto, percebe-se que publicações destinadas a grupos variados de leitores, que não costumavam dispensar muita atenção aos paratextos, também têm se ocupado deles, semelhantemente ao modo como os livros infantis costumam apresentá-los. Essa tendência inovadora no projeto gráfico do livro não necessariamente destinado ao público infantil parece estar ligada a uma estratégia de captação para cativar um público cada vez mais amplo, tornando-o compatível ao destinatário de obras que, outrora, poderiam ser classificadas como pertencentes exclusivamente à Literatura Infantil. Fachadas (Sica, 2017), por exemplo, é um livro ilustrado crossover que apresenta um projeto gráfico altamente sedutor. O livro reúne ilustrações de fachadas de diversas casas antigas de uma rua indefinida, que ambientam cenas inusitadas, algumas cômicas, outras misteriosas, outras ainda insólitas. A ilustração monocromática apresenta traços simples, feitos à caneta preta, e preenchimento por hachuras.
A encadernação em sanfona, apesar de abrigar cada ilustração em uma página única, permite a integração de todas quando o livro é totalmente aberto, sugerindo a representação de um quarteirão em um bairro de alguma cidade. Além disso, a obra ainda propõe um roteiro de leitura excêntrico, pois, a cada fachada mostrada na narrativa, há um objeto, que complementa a composição do cenário, em destaque no verso da página. Portanto, presume-se que o leitor, antes de prosseguir para a página seguinte, volte ao verso da página atual para visualizar o objeto focalizado e, assim, expanda as possibilidades de interpretação da cena mostrada.
A ludicidade da obra ainda se aplica à capa e à contracapa, que podem ser apresentadas em cores diferentes, já que foram impressas em papelão colorido, por serigrafia – uma técnica de impressão que faz uso de uma espátula ou de um rolo para pressionar a tinta sobre uma superfície plana, semelhantemente ao estêncil. As ilustrações da capa e da contracapa não se repetem na narrativa. Na primeira, vê-se um homem, expressando certa insegurança, ao abrir uma porta, como se estivesse abrindo a porta de entrada da narrativa para o leitor. Na segunda, há uma menina, espiando sobre uma janela com algumas persianas quebradas, como se observasse o leitor que, acabada a leitura, vai-se embora.
Diferentes formatos de livros é também uma característica reconhecidamente atribuída aos chamados livros-objeto, um tipo editorial bastante conhecido pela Literatura Infantil, que começa a circular entre leitores adultos. De acordo com Ramos (2017, p.15), “enquanto objeto experimental, claramente destinado a explorar as possibilidades e os limites do livro, estas publicações contemplam a dimensão física, interativa, lúdica, experimental/laboratorial, tirando partido da materialidade do livro e da sua construção.” É o que ocorre em Fachadas (Sica, 2017), cujo modo de leitura pressuposto pelo formato sanfonado da encadernação amplia as possibilidades de interpretação e evidencia as potencialidades do livro-objeto.
2. Competências de leitura no contrato de comunicação instaurado pelo Livro Ilustrado
Desde os primórdios da humanidade, a imagem tem sido usada como meio de comunicação, precedendo, inclusive, a interação pela linguagem verbal. De acordo com Ommundsen (2014), a cultura ocidental, que deixou de ser dominada pela imagem para transformar-se em uma cultura grafocêntrica, parece submeter-se ao domínio da imagem novamente. Por isso, “a opinião mais comum sobre as características de nossa época, já repetida há mais de trinta anos, é que vivemos em uma civilização da imagem”, conforme afirma Joly (2007, p. 9). No entanto, no campo da Literatura, obras narrativas verbo-visuais, endereçadas a adultos, ainda podem ser consideradas como uma tendência recente, proveniente dos países ao norte da Europa, derivada da experiência da Literatura Infantil em livros ilustrados.
Diante da possibilidade de apropriação desse objeto por um público diverso ao destinatário preferencial, Ommundsen (2014) aposta no delineamento do leitor implícito da obra (Iser, 1978) para identificar o seu endereçamento prioritário. Além disso, a autora propõe que o livro ilustrado destinatário de adultos descreve o estado existencial da fase adulta, assim como o livro ilustrado infantil mostra como ser criança e o livro ilustrado crossover aponta como o ser humano deve ser (Ommundsen, 2014).
Semelhantemente ao que Iser (1978) postulou sobre o leitor implícito, no seio da Teoria da Recepção, Charaudeau (2008), fundador da Semiolinguística, no campo da Análise do Discurso, propõe que o sujeito enunciador idealiza uma imagem de seu destinatário. Para essa perspectiva, toda interação humana realiza-se por meio de contratos, pois, todas as vezes em que um indivíduo, munido de um projeto de fala, coloca-se em relação a outro deve obedecer a determinados princípios para que a comunicação seja estabelecida.
Os contratos de comunicação podem ser estabelecidos em situações muito variadas que vão desde uma conversa face a face, um telefonema, uma mensagem de texto instantânea, uma reportagem em um telejornal até um texto literário. Charaudeau (2005) propõe dois tipos básicos de situações comunicativas para abarcar toda essa variedade, levando em consideração a presença física dos interlocutores e a resposta imediata do interlocutor na situação de comunicação. A interação física que ocorre entre interlocutores sob um contrato de troca imediata é chamada de situação de interlocução. Por outro lado, chama-se situação de monolocução a situação de comunicação em que os interlocutores estabelecem um contrato de troca postergada, estando presentes ou não na situação de comunicação.
A Semiolinguística concebe o ato de linguagem como um fenômeno que combina o dizer e o fazer. O fazer constitui o circuito externo da situação de comunicação, abarca componentes situacionais e abriga os parceiros que dela participam: o sujeito comunicante e o sujeito interpretante. Já o dizer instaura o circuito interno da situação de comunicação, ou seja, é o lugar de fala onde ocorre a encenação entre os protagonistas: um sujeito enunciador e outro destinatário. O circuito instaurado pelo ato de linguagem põe em relação dois processos: o de produção e o de recepção. Na situação de comunicação mediada pela leitura, o processo de produção agrupa o escritor e todos os que participam da feitura da obra na figura do sujeito comunicante, e o narrador é admitido como sujeito enunciador. O processo de recepção, por sua vez, conforma o sujeito destinatário em uma imagem do leitor idealizada pelos sujeitos produtores da enunciação e o sujeito interpretante é identificado como o leitor real.
Todo sujeito enunciador espera que o sujeito interpretante identifique-se plenamente com o sujeito destinatário idealizado. Isso quer dizer que, no contrato de leitura, presume-se que o leitor real reúna um conjunto de saberes em seu imaginário sociodiscursivo compatível com aquele inscrito na obra. Charaudeau (2007) dividiu esses saberes em dois grandes grupos: os de conhecimento e os de crença. Os saberes de conhecimento constituem-se como uma verdade sobre um fenômeno do mundo e são concebidos como representação da realidade proveniente de uma razão científica, portanto, livres da subjetividade humana. Já os saberes de crença fundam-se em valores partilhados por um grupo e provêm de um processo avaliativo subjetivo, no qual o sujeito estabelece o seu julgamento sobre os fatos.
O livro ilustrado, cujas características fazem com que a decodificação do signo visual pareça um processo natural, imediatista, universalista e facilitador da leitura, por isso, destinado principalmente a crianças, permite a manipulação de leitores vulneráveis; pois, para atingir níveis mais profundos de leitura visual, é necessário desenvolver uma visão crítica sobre as imagens, visualizá-las como representações carregadas de saberes circulantes e não ingênuas. As imagens são concebidas não apenas para fornecer uma experiência estética, para entreter ou informar, mas também para persuadir com intenções nada desinteressadas.
A linguagem tem o poder de construir o mundo, conforme Charaudeau (2008) afirma, e o mundo é construído no livro ilustrado por meio da linguagem verbal e da linguagem visual, em um processo de semiotização que ocorre tanto por meio da palavra quanto por meio da imagem, ambos signos capazes de denotar e/ou conotar o mundo “real” (ou imaginado). A semiotização do mundo revela o ponto de vista do enunciador e os imaginários sociodiscursivos evocados para a produção do texto.
A (re)construção de sentidos realizada no ato de ler requer que o leitor detenha um conjunto de competências para tornar bem-sucedida a situação de comunicação instaurada pela leitura. Emediato (2007, p. 88-90) sistematizou algumas competências que atuam como parâmetros de pré-validação em situações de comunicação que se realizam por meio da leitura. Essas competências apontam o conjunto de saberes que uma obra requer de seu destinatário e, por isso, podem contribuir para a discussão acerca do endereçamento de uma obra, a saber:
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Competência linguística (semântica, sintática, lexical, socioletal) – reconhece o significado dos enunciados, a sua estruturação, o sentido das palavras e as variações linguísticas.
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Competência enciclopédica ou referencial – reconhece e infere saberes de conhecimento inscritos nos textos.
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Competência axiológica – reconhece e avalia representações de valores, posicionamentos sociais, saberes de crença que circulam na sociedade.
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Competência praxeológica ou situacional – reconhece os condicionamentos comunicativos e situacionais e responde adequadamente a formatos de textos e gêneros textuais e discursivos.
A efetivação de uma situação de comunicação significa a existência de uma relação contratual entre sujeitos. Assim, de acordo com Emediato (2007), o contrato estabelecido por meio da leitura torna uma situação de comunicação efetiva quando os parâmetros inscritos no texto são reconhecidos e validados pelo leitor, que, por sua vez, assume a atitude conivente programada para si. Esses parâmetros nada mais são que as competências de leitura supostas para a compreensão, que funcionam, inclusive, como a pré-validação do contrato, conforme veremos nas análises seguintes, procedentes de duas obras brasileiras.
3. O destinatário adulto em dois Livros Ilustrados brasileiros
Triste (Sica, 2019) é um livro de imagens, que retrata a tristeza individual e a solidão coletiva sentidas pelo único personagem humano da trama ao percorrer espaços sociais contemporâneos, sempre com olhar distante e semblante desanimado. Ambientado ora na cidade, ora no campo, ora na floresta, a obra apresenta algumas imagens bastante verossímeis e outras extremamente insólitas, exigindo principalmente competência axiológica para a compreensão da temática em tela, já que o leitor destinatário precisa reconhecer e avaliar como infelizes as situações descritas na obra.
O personagem taciturno de Triste (Sica, 2019) parece estar passando por uma crise existencial. Sua expressão corporal abatida contrasta com algumas imagens que descrevem a plenitude de vida à sua volta; como, por exemplo, a cena que mostra o personagem sentado na ponta de um iceberg e, debaixo d’água, uma infinidade de animais marinhos em movimento. A diagramação dessa página, inclusive, reserva mais da metade da mancha à ilustração do oceano, podendo apontar para a dimensão da sensação de solidão coletiva que o personagem experimenta, exigindo competência enciclopédica ou referencial do leitor para o reconhecimento dessa e de outras ilustrações como paráfrases referenciais.
Para compreender a cena em que o personagem está em um cemitério, em que se pode ver diversos objetos usados por uma pessoa ao longo de sua vida enterrados, como, por exemplo, roupas, móveis, eletrodomésticos, carro e até caixão; o leitor precisa acionar um saber de conhecimento (empírico), pressuposto pela competência enciclopédica ou referencial do leitor destinatário, que afirma que o ser humano é incapaz de continuar aproveitando objetos materiais depois de morto.
Em Triste (Sica, 2019), os paratextos presentes na capa foram aplicados à maneira como costumam compor os livros infantis. Impressa em serigrafia, a capa exibe a imagem de um personagem infeliz, sentado aos pés de uma árvore, cujos elementos visíveis são o tronco e as raízes. A ilustração na capa de Triste (Sica, 2019) pode ser complementada quando conjugada com a quarta capa aberta, pois a continuidade da imagem na contra capa do livro revela a copa da árvore repleta de animais, desde pássaros, macacos, bicho preguiça, iguanas, sapos, até serpentes, configurando uma relação flagrante de oposição entre a vida e o estado de espírito melancólico do personagem. Esse movimento de composição entre a capa e a quarta capa, tão comum nos livros ilustrados infantis, só é possível de ser realizado, nessa obra, por causa da encadernação em arame, que torna o formato do livro semelhante ao de um catálogo. Constituído de dimensões incomuns para um livro destinados a adultos, o tamanho do livro aproxima-se ao de uma folha ofício em orientação vertical.
Inquérito policial: família Tobias (Lísias, 2016) é um livro-objeto, cujo projeto gráfico reproduz, com bastante exatidão e fascínio, o formato e a estética de um inquérito policial, apresentando textos, imagens e documentos em formatos diferentes, anexados a uma pasta de arquivo, presos por um grampo metálico. A intriga concentra-se em uma investigação fictícia aos sócios da Editora que publicou o livro, a Lote 42. Na trama, a apuração é realizada pela Polícia Federal, a pedido do escritor, após descobrir que foram esses editores que o denunciaram em outro processo judicial, de que fora alvo, na vida real. Para compreender essa obra instigante, é preciso que o leitor destinatário tenha competência praxeológica para reagir adequadamente a esse formato de texto e ao gênero literário em que se inscreve. Vale ressaltar a importância desse saber para o processo de interpretação da obra, revelando um fato curioso que precedeu e originou a construção desse livro.
Os dois volumes da série de autoficção Delegado Tobias, escritos por Ricardo Lísias, publicados em formato e-book, pela editora e-galáxia, intitulados Delegado Tobias 1 – O Assassinato do Autor (Lísias, 2014a) e Delegado Tobias 2 – Delegado Tobias e Delegado Jeremias (Lísias, 2014b) estiveram no centro de uma apuração policial, resultante de uma denúncia feita ao Ministério Público brasileiro, que acusava o escritor por falsificação de documentos. O equívoco parece ter ocorrido depois que Lísias, para divulgar a publicação do segundo volume da saga, publicou um documento fictício em suas redes sociais, que teria sido expedido por uma autoridade policial, censurando as obras e exigindo o recolhimento dos livros que já tinham sido comercializados. Foi aberto um inquérito policial de verdade para investigar o caso, e o escritor respondeu a um processo criminal que acabou sendo arquivado, depois de comprovado que tudo não passava de ficção literária. Como pode ser percebido, o limite entre ficção e realidade pode ser muito tênue diante da falta de competência praxeológica para reconhecer uma obra de autoficção – característica recorrente na literatura de Lísias e de outros escritores contemporâneos – , mesmo entre pessoas com alto nível de escolaridade, como os investigadores da polícia federal brasileira.
Considerações Finais
O livro ilustrado consolidou um modo híbrido de contar histórias e adaptou-se ao contexto midático, tornando-se um objeto de leitura interativa e dinâmica, principalmente em razão do tratamento dado aos paratextos editoriais, que receberam cada vez mais investimento estético, contribuindo para a ampliação da significação narrativa. De modo surpreendente, livros ilustrados que fizeram uso de tal estratégia, explorando a experiência táctil do seu destinatário – por isso, também classificados como livros-objeto – foram capazes de cativar também os leitores adultos.
Ao classificar um livro ilustrado como endereçado a leitores adultos, presume-se que o leitor destinatário da obra detenha os saberes acionados pelas representações da palavra e da imagem para ser capaz de (re)construir a significação da obra; reconhecendo os efeitos de sentido produzidos pela instância de produção e construindo outros sentidos. Esse aspecto está para além da temática, pois não se trata somente de reconhecer o assunto em pauta e posicionar-se diante da proposição que se faz a respeito dele, mas se trata também de considerar a importância de competências que levam o leitor a responder devidamente ao modo como a obra se apresenta: reconhecendo o gênero literário em que o texto se manifesta, compreendendo as estruturas sintáticas e semânticas de ambas linguagens do livro ilustrado, além dos efeitos de sentido que emanam dessa inter-relação verbo-visual. Portanto, observar o conjunto das competências que a leitura da obra exige de seu destinatário para validar o contrato de comunicação pode ser um contributo relevante para a identificação do endereçamento do livro ilustrado ao leitor adulto.
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Autor notes
aanabel.azeredo@gmail.com
Informação adicional
Citar
:
Azerêdo de Paula, A. M. (2021). Competências de leitura e o destinatário adulto em Livros Ilustrados. Boletín Galego de Literatura, 59, “Notas”, 1-10. DOI http://dx.doi.org/10.15304/bgl.59.7932
ISSN: 0214-9117
Vol.
Num. 59
Año. 2021
Competências de leitura e o destinatário adulto em Livros Ilustrados Reading skills and adult readers in Picturebooks
Anabel Medeiros Azerêdo de Paula
Universidade Federal Fluminense,Brasil
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