1. Considerações iniciais
Em entrevista concedida em 2014, Santiago Nazarian diz de seu personagem André, do romance Biofobia, o seguinte: “A vida em si já é um desafio que ele não se sente capaz de vencer” (). Essa sensação de incapacidade perante os desafios da vida, a que normalmente a sociedade atribui um sentido negativo, está na raiz tanto de grandes obras da literatura quanto de muitos casos de suicídio. Hamlet se pergunta no famoso monólogo do Terceiro Ato se a morte não poria fim a tanto sofrimento, pergunta repetida depois pelo personagem Werther, de Goethe. Nessas obras, como em muitas outras, há uma ideia de inadequação, de inconformidade, de deslocamento, que pode muito bem ser compreendida como a incapacidade dos personagens de se adequarem à realidade difícil. No século XX, com uma densidade filosófica muito maior, vimos o surgimento do existencialismo enquanto questionamento do absurdo da vida, numa postura que busca a transformação deste mundo. Santiago Nazarian não está nem para Shakespeare e Goethe nem para Sartre e Camus – sua obra, conceituada por ele mesmo como “existencialismo bizarro”, procura um outro caminho. E é disso de que trata este artigo – encontrar a chave de leitura da obra de Nazarian bem como localizar o autor dentro do panorama da ficção brasileira contemporânea.
Este artigo está estruturado em duas grandes seções: a tentativa de conceituação da obra de Santiago Nazarian a partir da indicação do próprio autor, que cunhou a expressão “existencialismo bizarro” ao se referir a sua obra; a apresentação de um breve painel biobibliográfico sobre Santiago Nazarian.
Para termos um maior conhecimento sobre a obra de Santiago Nazarian, realizamos uma leitura do livro Biofobia, que se destaca neste trabalho como foco principal de observação. Porém, ao longo da análise da citada obra, percebemos a necessidade de conhecer melhor a escrita de Santiago Nazarian, incluindo aspectos distintivos de seus estilo, preocupações formais, elementos recorrentes e recursos estilísticos que lhes são próprios. Para a consecução deste fim, foram analisados também os romances Mastigando humanos e Feriado de mim mesmo. Esses dois últimos romances foram escolhidos por se aproximarem mais da estética de Nazarian bem como por abordarem, assim como Biofobia, uma preocupação temática constante na obra do autor, que é justamente a construção de personagens solitários que estão no limite e que acabam nos dando, por contraste, uma imagem crítica da realidade.
Trata-se, sem dúvida, de uma obra um pouco indigesta, pois as ambiguidades, a sensação claustrofóbica e a ausência de um sentido claro do texto provocam no leitor um certo atordoamento, mas até nisso a obra de Santiago Nazarian é contemporânea, vindo a se identificar com as palavras de Sílvia Regina Pinto: “A narrativa ficcional contemporânea [...] sinaliza para as tentativas de demarcação de territórios ficcionais feitos de areias movediças, fronteiras deslizantes e sujeitos performáticos, que, muitas vezes, não passam de simulacros” (). E o que vemos na obra de Santiago Nazarian é justamente a performance de personagens solitários, presos num individualismo e em claro confronto com a realidade. Esse desajuste ou desconcerto, para lembrar uma ideia camoniana, é questão que perpassa boa parte da literatura ao longo do tempo. De certo modo o eu sempre está em confronto com o outro, definindo-se em oposição a este, assim como o Homem sempre enfrenta algum inimigo, mesmo que esse inimigo habite (e perturbe), como no caso da obra de Santiago Nazarian, a mente do personagem.
Encerrando esta breve introdução, destacamos que foram utilizados dois tipos de pesquisa para a construção deste artigo: a pesquisa bibliográfica e a documental. Durante a fase da pesquisa bibliográfica realizamos a análise da obra do autor e a leitura de textos teóricos que forneceram subsídios para uma melhor compreensão sobre o contexto da obra do escritor. Já na fase da pesquisa documental nos utilizamos de suas entrevistas e da coleta de dados da biografia de Santiago Nazarian. Dentre os autores que compõem nosso referencial teórico, destacamos os seguintes: , , e.
2. Sobre o autor e sua obra
Nesta seção apresentaremos, primeiramente, informações biobibliográficas sobre Santiago Nazarian, vindo, logo em seguida, a exposição de comentários gerais sobre marcas estético-formais de sua obra como o “existencialismo bizarro” e, finalmente, realizaremos uma breve apresentação do romance Biofobia de modo a preparar o leitor para a próxima seção deste artigo.
Santiago Nazarian, filho da também escritora Eliza Nazarian e do artista plástico Guilherme de Faria, é um dos mais representativos escritores brasileiros do século XXI, de acordo com o título concedido pelo júri do Hay Festival em Bogotá, o que é evidenciado em comentários como do escritor Marçal Aquino para o jornal Folha de São Paulo: “Uma das vozes mais interessantes entre os novíssimos escritores surgidos no século XXI” (Agência Riff, 2019).
Em seu livro de estreia, o romance Olívio (2003), conquistou o prêmio Fundação Conrado Wessel de literatura. Além de escritor e roteirista, tem direitos autorais vendidos para o cinema e atua como tradutor, e, além de participar de eventos literários pelo país, alimenta há 10 anos o seu blog pessoal Jardim Bizarro, onde trata de temas relacionados à produção literária, crítica e seu percurso enquanto escritor contemporâneo. É autor de outros títulos como: A Morte sem nome (2004), O prédio, o tédio e o menino cego (2009), Feriado de mim mesmo (2005), Mastigando humanos (2013), Garotos malditos (2012) e Neve negra (2017).
Sobre uma expressão que pudesse sintetizar o cerne de sua obra, ou seja, um aspecto particular e constante em seus romances, o próprio Nazarian estabeleceu o “existencialismo bizarro” como a marca distintiva e recorrente de seus textos. Curiosamente, a expressão joga com dois conceitos importantes nos estudos literários e sua junção é bastante incomum. Vejamos o que o autor tem a falar sobre o assunto:
O “existencialismo bizarro” foi um termo que usei para rotular minha obra como um todo, se é que ela precisa de um rótulo. Como as pessoas não entendem bem o que faço – se é terror, se é juvenil, se é pop – resolvi eu mesmo criar um rótulo, porque é assim que as coisas funcionam. O existencialismo bizarro abrange tanto as questões existenciais, profundas do ser humano, como as referências pop do terror, do suspense e do trash. Acho que é um guarda-chuva que engloba bem tudo o que fiz até hoje, por mais que meus romances sejam bem diferentes entre si. ()
Observem que o próprio autor confere especial importância às questões psicológicas existeciais em seus livros, o que é facilmente detectado em uma primeira leitura, pois em Nazarian encontramos uma galeria inteira de personagens solitários e deslocados que estão de algum modo em conflito com o mundo e consigo mesmos. Já a questão do bizarro é um traço também peculiar em seus textos. Sobre isso, segue a fala do autor: “Minha obra tem flerte com o terror, o suspense [...] mas com referências pop de terror e do trash” (). Esse “flerte” com o terror se liga diretamente à produção de autores como Edgar Allan Poe, que em contos como “O barril do amontillado” estabelece um terror psicológico. Aqui o terror não é visto como ligado ao sobrenatural, mas sim produzido por uma atmosfera que termina por perturbar ainda mais alguma mente já convulsa ou doente. Percebam que o sobrenatural é substituído pela convulsão mental, mas nos dois casos o resultado é sempre apavorante. Esse aspecto do terror psicológico pode ser rapidamente observado em Biofobia, obra que investe na imersão num eu convulso e atormentado.
Falando agora do Existencialismo, uma ida ao Dicionário Houaiss rapidamente revela ser a inclusão dos grandes temas relacionados à experiência advinda da realidade concreta do indivíduo nos debates filosóficos, um diferencial dessa corrente filosófica. Quais seriam esses temas? O medo da morte, a angústia, a frustração e a sensação do absurdo e da falta de sentido da vida são exemplos relevantes. Para Camus (1989) inquietações tais como, “Como deve viver o homem absurdo? Claramente, não se aplicam regras éticas, como todas elas são baseadas em poderes sobre justificação” e “"Tudo é permitido" não é uma explosão de alívio ou de alegria, mas sim, um amargo reconhecimento de um fato.” Já para Cortázar, o Existencialismo é um estado de consciência do homem de nosso tempo; é a prospecção do próprio homem imerso em sua solidão, embora o Existencialismo precise cultivar essa solidão para transcendê-la. A grande angústia de todos nós (a náusea) vem do fato de que o homem sabe que a vida deveria ser diferente, uma experiência muito mais profunda do que a que temos – o Homem sabe de seu verdadeiro reino, de suas possibilidades, mas vive amarrado em sua caverna. Por isso a solidão é fundamental para a apreensão da realidade para além dos simulacros, pois no recolhimento poderá o Homem, talvez, vislumbrar que uma outra realidade é possível e romper o pano que recobre as ilusões. Vejamos uma bela provocação em O jogo da Amarelinha:
Quem é que tinha a perfeita consciência de si, da solidão absoluta que significa nem sequer contar com a própria companhia, que significa ter de entrar num cinema ou num bordel, ou em casa de amigos ou numa profissão absorvente ou, ainda, no matrimônio para estar, pelo menos, só entre os demais? ()
A sensação de solidão e a busca por algum sentido na vida parecem ser recorrentes na obra de Santiago Nazarian, daí justificar-se o uso da palavra existencialista para defini-la. Já para falarmos do bizarro recorreremos a dois nomes mais conhecidos do que o de Nazarian – falaremos brevemente de Julio Cortázar e de David Lynch. Um aspecto perpassa toda a obra de Lynch e Cortázar: a recorrente utilização do bizarro para realçar dimensões estranhas ou incompreensíveis da alma humana. Nesse ponto, Cortázar e Lynch se comunicam, pois suas obras são povoadas de sonhos incompreensíveis, de suspense, de acontecimentos fantásticos, de estranhos personagens e de elementos que despertam a sensação de pavor ou de espanto face ao bizarro. Lembremos dos contos de Cortázar: o pavor dos irmãos em “Casa tomada”, o tigre que devora um personagem em “Bestiário”, a barata dentro do biscoito, em “Circe”, as estranhas criaturas (mancuspias) de “Cefaléia”, as pessoas descritas como bizarras em “As portas do céu”, as traças pousadas sobre o rosto em “As fases de Severo”, o apavorante comportamento do cavalo em “Verão”, etc. Poderíamos apontar dezenas de momentos em que a obra de Cortázar toca o tema.
Assim também é o caso de Lynch, que se utiliza, em quase todos os seus filmes, de imagens bizarras e de pesadelos que despertam estranhamento. Essas imagens são recorrentes na obra de Lynch, como se toda sua obra fosse constituída de intermináveis e cíclicos pesadelos, desde a criança monstruosa de Eraserhead (1977), passando pela atmosfera de terror de Império dos sonhos, pelo aterrador Mystery man de A estrada perdida, pela orelha no gramado de Veludo azul ou pelo Black lodge de Twin Peaks. Esses pesadelos de Lynch descortinam uma outra realidade e chamam a atenção do espectador para medos do inconsciente e para dimensões não mapeáveis da realidade. Muitas vezes, o absurdo (e até o bizarro) é trabalhado por ele com imagens repulsivas de certo cunho realista, mas tão exóticas que lançam suspeitas sobre si. Outras vezes as imagens desconcertantes são conseguidas por meio de artifícios com a câmera, como o ato de distorcer o foco. A utilização do bizarro, portanto, torna-se algo altamente produtivo por instaurar uma nova visão da realidade, uma transfiguração desta, o que termina por gerar uma ambiguidade que se torna central nas obras de Cortázar e de Lynch. A ambiguidade causada pela situação limítrofe de André, de Biofobia, personagem assolado pela sensação de fracasso e tendo que encarar a solidão e as desconcertantes memórias, resulta justamente do uso do questionamento existencialista da realidade e de elementos bizarros que criam o terror psicológico no romance.
A atmosfera para a criação do ambiente antropomórfico possibilita uma aproximação da ideia de “Perspectivismo ameríndio” que diz respeito à síntese conceitual operada por Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze Lima para tratar de uma importante matriz filosófica amazônica no que se refere à natureza relacional dos seres e da composição do mundo. O conceito sintetiza uma série de fenômenos e elaborações encontrados em etnografias anteriores sobre os povos ameríndios. De forma geral, a noção se refere a concepções indígenas que estabelecem que os seres providos de alma reconhecem a si mesmos e àqueles a quem são aparentados como humanos, mas são percebidos por outros seres na forma de animais, espíritos ou modalidades de não humanos. A construção dessa humanidade compartilhada se efetiva pela construção dos corpos. Quer dizer: a humanidade só se torna visível para quem compartilha um mesmo tipo de corpo ou para os xamãs, que são capazes de assumir a perspectiva de outros e vê-los como humanos. () Falemos agora dessa obra.
Em Biofobia (2014), foco primeiro deste estudo, trata também do conflito entre Homem e Natureza, mas uma natureza cheia de silêncios e terror. Curiosamente, aos poucos o texto vai deixando entrever que a questão central é o conflito existencialista, ou seja, do homem consigo mesmo – um conflito interno, portanto. Trata-se de um jogo com o leitor, pois os elementos externos que provocam terror advindos da natureza circundante apenas atiçam ainda mais as sensações e delírios da mente conturbada de André, verdadeiro território de conflito. Na verdade, os vários desafios ao leitor são por si só uma das tendências da atual prosa de ficção no país e que comparecem com força neste romance, já que em Biofobia é arriscado demais afirmar com certeza o limite entre realidade e imaginação. Observem o trecho da entrevista abaixo no qual o autor fala abertamente sobre a questão da ambiguidade:
Outra coisa sobre o André: ele é um pouco Brás Cubas que ainda não morreu. Não quer deixar descendência, só quer fazer bastante sexo com alternativas novinhas. Mas ele sente que a natureza, como força-fêmea, exige filhos dele – sob a forma do sentimento de falta de sentido na vida – e meio que a odeia por isso. O pica-pau (ou a garra da árvore) está sempre cutucando ele, e ele precisa buscar mais – não importa o quê. Durante a leitura, hesitei entre considerar a natureza um personagem que interage com o André e considerar tudo uma viagem solipsista do André (que teria usado a natureza, inclusive a que o compõe, como desculpa). Você escreveu pensando em uma dessas visões? E favorece alguma das interpretações ou prefere a ambiguidade mesmo?
Eu prefiro a ambiguidade. Ele vê a natureza como um personagem, claro, um inimigo, e pode ser tudo uma viagem da cabeça dele, que vai se intensificando pelos aditivos, a bebida, as drogas. Mas também deixo algumas perguntas em aberto, no final, para favorecer essa ambiguidade. A natureza é um conceito abstrato, materializado no livro pelo mato, que tudo consome. Não há animais nesse mato. Repare que o personagem ouve canto de pássaros, de grilos, zumbidos, mas nunca avista animal vivo nenhum. É como se o mato consumisse tudo o que se mistura a ele. ()
Nas entrelinhas da fala do autor, percebe-se a possibilidade de que os sons ouvidos pelo personagem André sejam produtos de sua imaginação doentia. Essa ambiguidade é crucial na narrativa por acentuar ainda mais o estado limite da consciência do personagem. Outro aspecto de destaque em Biofobia é a ironia contida nos diálogos e observações feitas por André.
É uma fábula e precisa ter um final feliz, de qualquer forma: ‘e todos viveram felizes para sempre. A morte de qualquer inseto não é um final feliz? Intrometeu-se ironicamente o amigo, de maneira perspicaz e passando a André mais uma obra a examinar, e queimar: Feriado de mim mesmo. (Nazarian, 2003, p. 79)
O que pode ser destacado neste trecho é, primeiramente, o diálogo. Aqui estão André e um casal de amigos conversando a respeito da fábula “A Cigarra e a Formiga”, onde o protagonista termina sua reflexão desdenhando da moral fabular ao que o amigo ironiza sugerindo que a felicidade se encontraria na verdade no momento em que tanto a cigarra quanto a formiga encontram-se livres das obrigações que o inverno (símbolo da dureza da vida) e a própria vida impõe, ou seja, a morte aparece aí como uma solução, como algo que poderia ser transportado para outro plano que não o das fábulas. Comentário este que pode ainda fazer alusão ao suicídio da mãe de André, que dentro dessa perspectiva teria atingido tal estado de felicidade, ao contrário deles que estariam confabulando tristemente sobre a vida.
Biofobia também trabalha bastante com as perspectivas sociais e psicológicas sobre sucesso e fracasso. Inclusive, podemos construir uma leitura do texto no qual grande parte dos acontecimentos do livro são francamente vistos como projeções da mente de André, personagem terrivelmente assolado pela sensação de fracasso. Vejamos uma fala de Santiago Nazarian sobre o tema.
O seu livro fala sobre um homem rodeado pelo próprio fracasso. O fracasso te dá medo?
É um livro muito masculino. E para o homem o sucesso e o fracasso têm pesos muito grandes. O homem precisa ser independente, tem de dar certo, a própria condição de Homem, de adulto, depende disso. Então claro que o fracasso me amedronta. Mas o personagem em si já está além dessa condição. Para ele não é nem mais questão de medo do fracasso, é a vida. A vida em si já é um desafio que ele não se sente capaz de vencer. Isso é BIOFOBIA. (Jornal do Comércio RS, 2014)
A ideia de fracasso foi construída no imaginário social como uma espécie de crime; uma imagem apavorante que perpassa o tecido social e reflete-se nas estruturas psicológicas do ser, de tal modo que não raro suicídios são cometidos por esse motivo, como nos inúmeros casos ocorridos durante a Grande depressão nos Estados Unidos. Na literatura e no cinema o tema é constantemente reprisado, mas citaremos apenas um exemplo: A cidade dos sonhos, de . Se começássemos a ver o filme do final, poderíamos entender o seguinte: Diana, frustrada com seu fracasso como atriz e com o desfecho de sua relação com Camilla (relação amorosa e de rivalidade profissional), resolve contratar um assassino para matar Camilla. Ao se consumar a morte, ela passa a sonhar com uma outra vida em que as duas seriam completamente diferentes e onde o desfecho seria feliz. Nessa história imaginária (sua projeção psicanalítica), ela se chamaria Betty e seria uma promissora aspirante a atriz. Quando resolve ajudar a desconhecida Rita, que acabara de escapar de uma tentativa de assassinato, percebe que está apaixonada por ela e as duas passam a viver um romance. O sonho, no entanto, desfaz-se no final e nesse instante de regresso à dura realidade, só lhe resta o suicídio como alternativa para acabar com a circularidade dos pesadelos. O filme é ambientado em Hollywood e tem como tema central o sonho de uma jovem em se tornar uma estrela de cinema. Tal sonho se transforma em pesadelo e o fracasso é tão aterrador que a personagem termina por cometer o suicídio. Se pensarmos em Biofobia, poderemos perceber que esse fracasso contribui para a construção da personalidade perturbada de André, como comenta o próprio Nazarian logo abaixo ao descrever André como Narcisista e psicótico:
A intenção foi usar os outros para definir a personalidade do protagonista, como eu já havia feito em “Olívio” (2003). Por isso os personagens não têm nome, apenas funções diante dele: a irmã, a ex-namorada, o amigo, etc. Tem a ver com a personalidade narcisista e quase psicótica dele, como ele enxerga (ou não enxerga) o outro. ()
Além dos traumas e psicoses ligados à ideia de fracasso, podemos observar pelo excerto acima que Santiago Nazarian confere primazia ao eu do personagem André em detrimento dos demais personagens, reduzidos a funções dentro da obra. É como se tudo gravitasse apenas em torno da mente de André, única fonte da narrativa, vetor de todas ações e local de onde emana o universo do livro. Isso, entretanto, não é original, pois se observarmos três dos maiores romances da literatura brasileira, encontraremos a mesma predominância total da experiência do narrador, como atestam Bentinho, de Dom Casmurro (), Paulo Honório, de São Bernardo () e Riobaldo, de Grande sertão: veredas () . Em todos esses romances, mais importante do que o que se pode encontrar de verdade nos fatos narrados, tem-se a versão de narradores profundamente problemáticos, de modo que o que lemos é de já suspeito por vir de quem vem e da forma como vem. Vamos, a partir de agora, analisar com mais atenção as obras Mastigando humanos, Feriado de mim mesmo e Biofobia.
3. A metaficção, o existencialismo bizarro e outros aspectos na obra de Santiago Nazarian
Objetiva-se nesta seção, a partir da análise e entrelaçamento das obras Biofobia, Mastigando Humanos e Feriado de Mim Mesmo, perceber aspectos que podem ser compreendidos como pertencentes à literatura contemporânea, em especial o uso da temática da Metaficção e do “Existencialismo Bizarro”, termo este cunhado pelo próprio autor para designar seu projeto literário.
Para compreender os aspectos relacionados ao existencialismo, aponta o seguinte:
Privilegia um trânsito mais livre entre o plano racional do discurso filosófico para o universo de liberdade subjetiva da ficção, é justamente o caráter irracionalista, assistemático e subjetivante da filosofia existencial, muito mais voltada para o drama da existência humana particular, em situação, do que para a criação de um sistema abstrato e totalizante de explicação objetiva do mundo do mundo do racionalismo clássico.
A partir do exposto acima, nota-se que o existencialismo pode ser apontado como característica viva dentro das narrativas do autor Santiago Nazarian, a exemplo de Biofobia, que através do conturbado imaginário de um personagem, perpassa questões como a noção de fracasso e a automatização das relações humanas no ambiente mais propício para refletir a vulnerabilidade que há em todos nós, que é o isolamento, este mesmo experianciado pelo protagonista de Feriado de Mim Mesmo no qual esse recurso atua de forma similar.
O início de Biofobia acontece com o suicídio da mãe de André, renomada escritora e vencedora do prêmio Jabuti, onde o deslocamento do mesmo para o velório em uma casa de campo isolada, na qual a mãe vivera, desperta os conflitos internos do personagem enquanto este passa alguns dias praticamente sozinho e imerso entre o ressentimento e o delírio que compõem grande parte da trama e de um dos maiores medos do ser humano, que é justamente a ideia do fracasso. O trauma pelo fracasso dá a tônica do livro.
Uma natureza personificada se apresenta ao leitor ao longo da história de Biofobia como elemento através do qual tomamos nota não só das experiências e atitudes as quais as personagens empregam certa dose de ressentimento e as considera, por vezes, decepcionantes e até traumáticas, e por onde percebemos de que forma o contexto do isolamento e outros fatos (como o uso de drogas e álcool) proporcionam a confusão que subsidia a ambiguidade em vários momentos da narrativa, pois:
A compreensão do trauma é inseparável da confusão entre o psíquico e o social, entre o exterior (o mundo) e o interior (o sujeito), o que cria uma esfera pública patologizada em que o sofrimento é coletivo, e a intimidade é conquistada por meio da sua exposição. (Selzer, 1998 citado em )
Daí verifica-se a importância do elemento natureza, não como antagonista em sua totalidade, mas como veículo principal para buscar vestígios que não só exploram, mas que visam explicar, ou ao menos tentam, a relação conflituosa de André e sua própria natureza íntima e social representada no ambiente externo da casa de campo de sua falecida mãe e na ambientação de suas memórias, nebulosas e cheias de fantasmagorias.
Outro ponto de igual relevância para a compreensão da obra – e também para a caracterização de elementos aos quais se podem apontar como contemporâneos e também presentes nas outras duas obras já mencionadas () é a incursão que o personagem faz às imagens do passado, no case de André a de sua mãe, materialmente representada nos bens e posses que deixa para amigos e familiares, nos quais o narrador se apropria para expor elementos de uma cultura múltipla (literária e cinematográfica) e para compor o que seria o universo pessoal desta personagem que se encontra também no cerne da incursão psicológica da trama, pois:
O mergulho no cotidiano e nos processos íntimos que envolvem afetos básicos de dor, medo, melancolia e desejo aparecem, assim, na literatura contemporânea, sem o peso do estigma que atingia a literatura existencialista ou psicológica das décadas de 1950 e 1960, pois agora a intimidade justifica-se na exploração dos caminhos do corpo e da vida pessoal, de seus recursos de presença e de afirmação criativa, de dispositivos privados, numa cultura massificada, inumana e alienante. Trata-se de uma hipóstase do comum e do banal por trás da qual se esconde uma ilusão da realidade verdadeira, ligada aos sentimentos íntimos que agora reivindicam pertinência pública, numa cultura em que o sentimentalismo virou matéria-prima dos processos simbólicos. ()
Portanto, ambos os elementos convergem para o entendimento das personagens tanto quanto daquilo que vem se tratando por temas que compõem a narrativa contemporânea como destacado por e como meio de investigação e entendimento da obra proposta no presente estudo.
A obra Biofobia também é recheada de metaficção e, segundo o próprio narrador, há o fato de um dos livros destinados à fogueira (alternativa que encontraram devido à escassez de lenha) ser um título do próprio autor Santiago Nazarian, Feriado de mim mesmo, que ressalta, além da intertextualidade, a ideia de descanso ou retiro que o personagem André inflige a si mesmo durante o período de isolamento na casa que, ao invés de ser um descanso, é, na verdade, o mergulho mais intenso que ele já fizera em sua própria consciência, num contraponto entre a ideia de feriado (além do fato de o livro se passar no espaço temporal de dois dias) e toda a perturbação psicológica do personagem nesse contexto.
De acordo com Hutcheon (1984 citado em )
A metaficção se definiria como “ficção sobre ficção” – isto é, ficção que inclui em si mesma um comentário sobre sua própria identidade narrativa e/ou lingüística. “Narcisista” – o adjetivo qualificativo escolhido aqui para designar essa autoconsciência textual – não tem sentido pejorativo, mas principalmente descritivo e sugestivo, como as leituras alegóricas do mito de Narciso...
Deste modo aquilo que a priori pode ser considerado apenas como inventivo dentro da extensão da narrativa é também um componente constitutivo da identidade do universo literário e um elemento correspondente e de recorrência em outras obras do autor. No caso da supracitada Feriado de Mim Mesmo, a ideia de que exista um invasor, argumento para percorrer a trama, tem início através de um telefonema e pode ser evidenciada no seguinte trecho:
De onde vinha? Não se lembrava de tê-la comprado, certamente se lembraria. Procurou a antiga azul e a avistou, logo ali, na pia. No lugar onde ele sempre a colocava. No lugar de onde ele deveria tê-la tirado. De onde ela deveria ter ido para sua mão, mas não estava. Em sua mão estava uma nova, vermelha, rígida, lisa. ()
Ainda sobre o caráter diegético autossuficiente da narrativa e o potencial auto reflexivo da expressão linguística do texto, relativos à metaficção, destaca Hutcheon (1984 citado em)
[...] realmente vem ao encontro de nosso usual humor infantil contemporâneo – nossa própria dúvida que se congratula, nosso alienado e positivístico pessimismo... E vem ao encontro também de uma qualidade mais nobre da vida contemporânea: nosso deslumbramento ao descobrir como as coisas funcionam, nosso prazer em ver objetos por si mesmos, apreciando suas cores e texturas.
A obra Biofobia (2014) tem seu principal foco narrativo, à primeira vista, situado no conflito entre Homem e Natureza. Natureza está caracterizada no imaginário do imaturo e decadente roqueiro André, personagem principal da narrativa (e talvez único), como hostil e aterrorizante. A ideia do romance, entretanto, é a de se apontar, no já citado conflito, a possibilidade do entrave ser na verdade entre o homem e a sua própria natureza.
A obra Mastigando Humanos (2006) evoca mais nitidamente a alegoria, nesse caso o antropomorfismo. Em primeiro plano temos um jacaré adolescente vivendo nos esgotos brasileiros narrando suas memórias, desde a saída do pantanal, seu habitat natural até chegar ao esgoto, que também é apenas o primeiro plano de ação dos acontecimentos da obra. Aqui também também vemos uma prosa do eu, do indivíduo solitário e em oposição ao mundo, confirmando a vocação de Santiago Nazarian em construir personagens deslocados e em contraposição à sociedade.
Por fim, a obra Feriado de Mim Mesmo (2005), que traz um narrador solitário que vive isolado do convívio social, uma vez que mesmo suas atividades profissionais são realizadas dentro do apartamento onde mora. Esse narrador sem nome até quase o fim da narrativa é um tradutor e pretenso escritor que no decorrer na narrativa após uma misteriosa ligação e diante de lapsos de memória repentinos e reincidentes alterações em seu apartamento acredita estar sendo perseguido dentro do próprio lar.
De todo modo, é este desvio que pressupõe uma alteração de percepção o que acaba por se mostrar uma armadilha para um leitor desatento. Na verdade, os vários desafios ao leitor são por si só uma das tendências da atual prosa de ficção no país e que comparece com força nestes romances, já que nas obras de Nazarian é arriscado demais afirmar com certeza o limite entre realidade e imaginação.
A personagem de Nazarian em Mastigando Humanos, apesar da ferocidade latente de sua condição animal, e apesar de interação mais ativa com as outras personagens difere em alguns pontos do que acontece em Biofobia, onde a maior parte da ação está centrada em um único personagem, mas tem pontos similares também, pois o jacaré, assim como o personagem André, o roqueiro decadente, tem seus conflitos não na interação com o outro, mas internamente, em sua própria consciência, de modo que em ambas as obras o que ocorre de fato é um mergulho no consciente e no inconsciente desses personagens e as impressões destes sobre o real possuem muito mais peso do que qualquer fato da realidade.
Observem que à medida que projeta o escopo de suas aspirações nutridas pelo conhecimento do mundo do homo sapiens no seu espaço cotidiano, nas figuras mais diversas e personificadas que a ele se apresentam, o jovem jacaré vai se percebendo assediado por dois conflitos: a contradição insurgente sobre o caráter de suas relações e a irremediável natureza do réptil com seu apetite.
A construção de uma subjetividade sólida, entretanto, talvez se encontre mais acentuada em Feriado de Mim Mesmo, todavia, a ideia de se particularizar o universo de determinada personagem onde o próprio jogo frasal dos pensamentos, observações e ambivalências passa a construir a caracterização dos narradores, acaba os aproximando de uma reconhecível familiaridade, presente na dualidade de seus conflitos como podemos flagrar no tradutor buscando traduzir a si próprio, no animal personificado no limiar do racional e o “humanesco” e no artista isolado no conflito entre o fracasso e o sucesso.
Pode-se evidenciar a natureza de tais conflitos em Mastigando Humanos nas reflexões “No meu habitat natural não havia crises, embora houvesse conflitos... [...] Aqui somos obrigados a confiar na visão, em palavras, contratos e apertos de mão. Lá bastava sentir o cheiro para saber se era to be or not to be” ().
Os conflitos de convivência entre o jacaré e os demais personagens atuam de forma similar ao desenvolvimento da biofobia de André em seu isolamento na casa da mãe. Esses seres externos à consciência do narrador servem para acentuar a contrariedade e como marcadores das alterações causadas pelo intemperismo das circunstâncias a que ambos os protagonistas se submetem, ainda que involuntariamente.
No caso do jacaré, são detectáveis três momentos de transição principal que afetam diretamente a natureza e a dualidade de seus sentimentos no decorrer da narrativa memorialista, afinal, o uso metaficcional de se escrever um livro de memórias onde o narrador é também o escritor detentor das mesmas é não só a premissa da obra, mas também o indicativo do deslocamento para outra abordagem de entendimento da mesma a partir dos ambientes do esgoto e a cada vez mais distante rememoração do pântano. E logo adiante o ambiente busca uma universidade que coloca à prova as especulações e próprio existencialismo do protagonista.
Destaca-se que a rápida análise das obras acima se deu através da observação da atmosfera psicológica das personagens e dos recursos textuais empregados pelo autor para o desenvolvimento e composição da mesma, apontando, desse modo, no corpo da trama, não só seus aspectos, mas também lançando-se um olhar para a própria narrativa contemporânea e a habilidade do escritor, algo destacado por : “Nazarian extrai excelentes observações das aspirações miúdas, e sua habilidade de narrar, a partir de banalidades, vem se aliando a uma potência criativa salutar”.
O comentário pode ser usado para justificar a razão de se ler o autor, chamando atenção ainda para observações pertinentes no tocante à ambiguidade, a qual, através de meios já citados, o autor nos induz ao final do romance. Não só ao final, pois dado o estado do narrador, consumido pelas drogas e por sentimentos perturbadores, não se sabe com certeza definir o limite entre a realidade e a imaginação doentia. Essa ambiguidade, que deixa a obra em aberto, é um dos elementos que permitem classificá-la como contemporânea.
Finalizando esta apresentação, reafirmamos a importância de conhecermos melhor a literatura brasileira contemporânea e suas principais vertentes bem como analisar os aspectos estético-formais que a caracterizam. Desse modo, o estudo dos romances de Santiago Nazarian torna-se vital para um maior conhecimento de nossa literatura e para uma abertura de percepção dos estudiosos da literatura que costuma destinar sempre uma maior atenção ao cânone literário brasileiro que chega até o Modernismo, não revelando a mesma atenção com a literatura produzida nos dias atuais, principalmente após a virada do milênio.
4. Considerações finais
Ao contemplar uma investigação acerca da produção literária de um dos escritores que alcançou reconhecido destaque dentre os contemporâneos de sua geração, é também reconhecida uma imagem de um dos referidos aspectos estético-formais que compõem o processo de territorialização da obra contemporânea objeto deste trabalho.
Assim, é verificável a existência de elementos que contemplam a caracterização de um aspecto de desenvolvimento que se associa a uma visão mais esclarecedora acerca dos elementos constituintes que podem ser encontrados dentro da obra literária contemporânea. Podemos sugerir a abertura de um leque de investigações sobre a possibilidade através do produto literário como meio de mapeamento do ambiente de sua produção e referência, considerando os limites existentes na obra e aliando tais discussões aos registros que vem sendo construídos com pesquisas relacionadas ao desenvolvimento do tema.
O apanhado das três obras de Santiago Nazarian aqui dispostas bem como das situações descritas no decorrer delas nos proporcionam um observatório de algumas práticas do fazer literário na atualidade, facilitando assim uma melhor compreensão das mesmas. Contudo a pesquisa não se encerra apenas em buscar promover essas relações existentes nesse modo de fazer literatura, encontrando também a possibilidade da abertura para diálogos e investigações acerca do assunto.
Referências bibliográficas
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