Pobres animais entorpecidos sem memória das suas meias-vidas como humanos.
Joan D. Vinge, Lady Hawke
1. As perspetivas de Walter Benjamin sobre a história da cultura encontram-se resumidas, entre outros, no artigo “Eduard Fuchs, colecionador e historiador” (1937), sendo de destacar neste texto a conhecida afirmação “Não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie.” (). O filósofo alemão repetia-a pouco depois na célebre Tese VII sobre o conceito de história (1940) no contexto do confronto entre a visão historicista do vencedor como objeto exclusivo de empatia e o olhar distanciado do materialista dialético sobre a História, que, ao procurar encará-la multidisciplinarmente, não deixava de observar sem horror a subjugação pelos vencedores da massa anónima dos contemporâneos (). A existir uma missão específica para o historiador materialista, ela consistiria no distanciamento de uma narrativa enviesada de transmissão da tradição, registada na metáfora do final do trecho na expressão “escovar a história a contrapelo”; a tese de Benjamin supõe, nesta imagem em particular, a torção desabrida do olhar crítico para um passado arrolado como história dos triunfadores (as classes dominantes), a qual, por sua vez, não logra contornar uma certa conotação violenta nos termos linguísticos usados na representação da tarefa do historiador materialista cujo fundamento deveria assentar na rutura com a tradição exegética exposta. A expressão retoma o ideário nietzschiano da dominação, por sua vez devedor das conceções de Hegel sobre a dialética do senhor e do escravo exposta na Fenomenologia do Espírito; em Benjamin, porém, cultura e barbárie são colocadas no mesmo plano, assistindo-se ao abandono da oposição tradicional entre “bárbaro” e “civilizado” para acentuar as relações entre uma e outra do ponto de vista da relação violenta que ambas veiculam. Por outro lado, ainda a propósito da afirmação de Walter Benjamin, por “documento” é possível entender os sinais culturais visíveis e passíveis de reflexão, entre as quais a literatura, os testemunhos históricos e artísticos, os monumentos, entre outros, numa abrangência que também inclui manifestações menos consideradas pelo historicismo (a caricatura é disso exemplo) e de que o trabalho nas fronteiras do colecionador Fuchs é modelar (ver). Encarar os documentos de cultura supõe, por conseguinte, na perspetiva do filósofo, adotar uma postura mais humanizante ao tomar em consideração não apenas os artefactos da denominada “alta cultura” (que não pretendeu excluir) mas ainda as produções das classes ditas “subjugadas”, nas quais julga ser possível descobrir um “potencial secreto”. De acordo com , “escovar a história a contrapelo” implica assim “redescobrir os momentos utópicos escondidos na «herança» cultural, quer sejam os contos fantásticos de Hoffmann, os escritos esotéricos de Franz von Baader, os ensaios de Bachofen sobre o matriarcado ou as narrações de Leskow.”. Na diversidade documental torna-se exequível reencontrar formas subversivas e críticas de cultura cuja importância contribui para a contestação de discursos oficiais e a variação dos pontos de vista sobre o passado. Do ponto de vista exegético, a perenidade do tema da violência, como veremos, confirma-a como tópico de especial relevância em diferentes domínios.
Ainda nos momentos preliminares deste estudo, é essencial destacar a importância da figura no âmbito de uma teoria da cultura nos termos enunciados por José Bragança de Miranda em trabalho homónimo ao tema: “Tudo se joga em torno de um permanente trabalho sobre o imaginário (que se confunde com o arquivo geral da experiência), que tende a ser polarizado em torno de certas figuras, concreta e materialmente dadas. Tudo pode constituir figura” (). Se a cultura, nesta perspetiva, se define como forma de reconstituição da unidade da experiência, tal é possível pela intervenção da figura na produção de sentido com o necessário impacto no trabalho sobre o imaginário. José Bragança de Miranda considera a lógica da cultura mais figural do que simbólica, subentendendo-se na figura uma materialidade plena de sentido presente nesse “arquivo geral” composto pelo mito e pelo real. Importa esclarecer que esta conceção não implica a desvalorização do papel do símbolo, sobretudo se pensado no âmbito da literatura, domínio de que nos ocuparemos, e na expressão ficcional de um tópico complexo como o da violência.
2. A novela O frío azul, do escritor galego Ramón Caride Ogando (n. 1957), publicada em 2007, ano em que obteve o Premio Lueiro Rey, constitui um exemplo significativo da tendência da narrativa histórica dita pós-moderna para recuperar do arquivo figuras cuja materialidade dispõe o leitor para a reflexão sobre o esbatimento de fronteiras face a pressupostos como o da autonomia de domínios do conhecimento, caso da história e da literatura. De facto, se o enquadramento histórico proposto sobressai pelo rigor informativo, visível na reiteração cronológica (1517, ano da ação principal, mas recorrendo a outras datas em analepse), na enumeração de espaços reais (o mosteiro beneditino de Santa Maria de Oseira, de fundação medieval, a cidade de Toledo ou o vale do Xálima) e de eventos históricos (caso dos litígios armados em torno dos partidários de Isabel, a Católica, contra os da Beltraneja, a Excelente Senhora), o processo de ficcionalização vai-se compondo segundo regras exteriores à verosimilhança ao introduzir, em vários momentos decisivos, elementos fantásticos, entre as quais a metamorfose de Xálima e Ildara em cervo branco ou o regresso além-túmulo de Servando de Noreña. A notável habilidade de Ramón Caride no urdimento das diferentes ações em torno da vida do abade de Oseira Don Lourenzo de Navascués, anteriormente conde do Nalón e da Mesa, verifica-se no recurso a um vasto arquivo de referências, no qual recolhe figuras e símbolos que abalizam, dada a diversidade de domínios donde provêm, a importância que assume a interdiscursividade na narração. No âmago deste tópico está a constatação, no contexto da produção ficcional dita “histórica”, do primado do texto no sentido que a investigadora Linda Hutcheon lhe atribui ao caracterizar o romance pós-moderno, a saber, o de trazer ao leitor a sensação de inelutabilidade do conhecimento textual do passado, a que acresce “o valor e a limitação da forma inevitavelmente discursiva desse conhecimento” (). A história, que Aristóteles distinguira da epopeia por “relatar o que aconteceu”, ao contrário da segunda que se concentrava “no que poderia acontecer”(Poética, 1451b), é, de facto, conhecida (pelo menos uma parte substancial) através dos textos que a divulgam, como explicita na alusão a Marco Polo, personalidade cujo conhecimento histórico é também proporcionado por Il Milione, a narração das suas aventuras; a esse constrangimento virtual responde a ação colecionadora do autor que, como Eduard Fuchs, recorre ao arquivo disponível para a recriação ficcional de acontecimentos, aspeto que Ramón Caride expõe nos documentos apensos à edição em estudo, nomeadamente na “Nota do autor” () e na secção “Addenda et Documenta”, em particular o texto de uma comunicação lida em 2010 (). Neste último, depois de assegurar que “todo nunha novela é ficción”, passa a desenvolver a sua perspetiva acerca da narrativa histórica: “Agora ben que a materia prima dunha novela histórica é sempre a documentación, aínda que sexa para traizoala. Como ben di X. L. Méndes Ferrín, o escritor é un pirata con patente de corso para saquear ao seu antollo.” (). Curiosamente, “piratas” e “corsários” (alusão na expressão “patente de corso”) são designações que se situam no interior do campo nocional da violência como figuras que impõem a atividade pícara a um mundo ordenado que, no caso, é o da “documentação”. A atividade subversiva do escritor faz-se no interior e nas extremidades da herança cultural numa atitude paródica bem conhecida na pós-modernidade, a mesma que Linda Hutcheon encara como consequência da interdiscursividade dominante e bem patente na diversidade de campos que atravessa; daí a constatação da perda e a dispersão do centro da narrativa histórica e fictícia em detrimento das margens, atitude “ex-cêntrica” que passa a receber maior consideração ().
Os metatextos de Ramón Caride sugerem-nos o olhar do autor na tarefa de leitor sobre o arquivo disponível e a sua variedade, nos termos em que Umberto Eco considerara próprios da obra aberta, descrita como “centro ativo de uma rede de relações inesgotáveis, entre as quais ele instaura sua própria forma, sem ser determinado por uma necessidade que lhe prescreva os modos definitivos de organização da obra fruída” (). A consciência das suas inúmeras possibilidades interpretativas sem que a sua singularidade seja afetada (ver ) diz respeito tanto ao autor como ao leitor, dado que cada um promove a leitura infinita dos textos e, deste modo, a sua consequente vitalidade. Na qualidade de leitor, Ramón Caride localiza no arquivo disponível variadas fontes textuais, entre ensaios e documentos históricos, obras literárias (poemas, lendas como a da Dona Cerva dos Ancares) e ainda as que colheu da experiência direta da paisagem retratada, caso do mosteiro de Oseira ou o vale de Xálima na serra de Gata (Cáceres). Se esta diversidade se desvela na voz figural do autor enquanto produtor de sentidos, é necessário relembrar que, enquanto referências ao serviço de estratégias de leitura próprias, elas passam a fazer parte dessa constelação textual que, em conjunto com a mundividência e arquivo de todos os outros leitores (onde nos incluímos), capacita o texto para o desafio permanente à univocidade centralizada do significado. O texto passa ao estatuto “ex-cêntrico” num sistema onde não consta somente um único astro-sentido a orientar o movimento translacional. Os movimentos gerados são antes potencialmente incertos e submetem-se à contingência do inesperado quando a reflexão do leitor liberta, a partir das figuras disponíveis, outros sentidos que fazem crescer o “trabalho sobre o imaginário” enunciado por José Bragança de Miranda, contando nesse processo com a experiência do texto enquanto facto literário para a sua descoberta e disseminação. Citamos, a esse propósito, Silvina Rodrigues Lopes:
É assim que a literatura, que só existe a partir da materialidade de uma composição rigorosa, nem por isso supõe a existência do sujeito como entidade anterior que põe e dispõe de uma matéria. Como inscrição das circunstâncias numa «ficção suprema», a literatura resulta de uma imensa passibilidade, a capacidade de se deixar afetar por todas as coisas vivas do mundo e de lhes responder. É nesse sentido que podemos dizer que ela é experiência. Não um acontecimento vivido no presente da presença, mas algo que, sem se eximir ao perigo da experiência, a transporta para as palavras como significância, no sentido ausente, uma inquietação, além de todo o cálculo. ()
O que nos oferece o texto literário enquanto «ficção suprema» encontra-se no transporte das palavras através do tempo e na inquietação pressentida nas figuras representadas, em si mesmas sujeitas às deslocações de sentido que as tornam resistentes à interpretação. Na obra de Ramón Caride, essa resistência revela-se, entre outros aspetos, no olhar diverso sobre a representação da violência, de que nos ocuparemos em seguida a partir de três dimensões intercomunicantes, o espaço, a soberania e o maravilhoso.
3. O tema da violência merece em O frío azul uma atenção que, não exibindo a centralidade de outros tópicos, com eles mantém relações próximas. A sua presença é, em diversas circunstâncias, surpreendida nos interstícios dessas conexões, como as que passaremos a desenvolver ao abordar a representação dos espaços.
, ainda a propósito do pensamento de Walter Benjamin, recordava o contributo significativo da arquitetura na expressão do discurso dos vencedores, visível em monumentos triunfalistas da cultura dos “bárbaros da civilização” com raízes nas grandes obras celebrativas das vitórias romanas (arcos de triunfo, colunas comemorativas, entre outros exemplos). Numa época crítica de consolidação do totalitarismo na Europa, a obra de Benjamin propunha interrogar as ligações entre a estética e a política com o intuito de determinar imagens de relações desiguais de poder e o modo como estas foram prosseguindo desde o passado, num processo contínuo que se foi matizando em distintos contextos. Efetivamente, a expressão da vontade totalitária de poder manifestara-se na grandiosidade das obras públicas, de que os grandes projetos de Albert Speer para Berlim, capital do Terceiro Reich, são um exemplo. Por seu lado, no século XIX, as obras do Barão Haussman em Paris, no esforço de ordenamento e de monumentalização à custa de destruição de quarteirões inteiros, encontram réplica (não obstante as evidentes diferenças contextuais) na estética do “fascismo de pedra” italiano e na “conquista monumental” do espaço urbano, tomado à custa da violência sobre as populações residentes e as construções anteriores (ver ). A forma e a dimensão figuram a violência na expressão ideológica da subjugação das massas a um poder simbólico e amplo que, conforme Theodor W. Adorno sublinhou na Teoria Estética, se tende a reduzir “a uma cópia lamentável e autoritária da realidade” ().
Em O frío azul, são incontornáveis as sequências descritivas do mosteiro de Oseira, cercado por muralhas (fa I, p. 14), desde o início concebido como espaço cuja ambiguidade alcança a sua origem toponímica, perscrutada algures entre “Óso” (osso) e “osso” (urso). A primeira referência adequa-se à paisagem agreste onde o conjunto se insere – “e como un óso da terra, macizo e teso, pelado e irto, penedo espido, érguese ante o viaxeiro o mosteiro vello” (fa I, p. 13) - e com o qual estabelece uma relação complementar, estando a segunda simbolicamente vinculada à imagem do selo anel abacial (ver fa I, p. 19). O conjunto edificado, imponente, encerrado sobre si mesmo, vai exercendo paulatinamente sobre o cavaleiro Egas de Doncos o sentimento de impotência face à inacessibilidade à presença do Abade, apresentada de forma expressiva pelo narrador omnisciente no início do segundo capítulo:
O entusiasmo vingador de Egas amortece contra o tempo detido, rebenta contra o muro inflexíbel da indiferenza dos fratres. [...] Mais el só vive para agardar. Morta a súa vida, soterrado en pedra, consome o seu tempo entre as paredes do cuarto e os paseos pola longa galería da biblioteca, sobre o claustro rectangular onde unha fonte repetida lle semella tan apreixada coma el mesmo.
Tras o espanto da revelación que lle fixo emprender o camiño, logo da rabia que forzou o seu ingreso neste inmenso sartego de pedra gris, o seu pulo tocou fondo e, por veces, matina abandonar a partida, ou, pola contra, tirar armas e forzar as explicacións. E el non é home de agardas longas. Pero, contra todo prognóstico, a inmensidade de Oseira pódelle. O inimigo de pedra é grande de máis, chumbo enriba súa. (fa II, pp. 21-22)
A violência exerce-se passivamente na relação estabelecida com a circularidade obsidiante do tempo, um pouco à maneira kafkiana (pensamos no agrimensor K. de O Castelo e a sua tarefa sempre adiada), num espaço sepulcral e cinzento, cuja imensidão intima Egas tanto à inação como à reação violenta (a disposição de resolver a sua situação pela força das armas). O processo de tumulação progressiva da personagem, compatível com o seu destino no final da novela, faz-se pelo conflito com uma atmosfera que considera hostil aos seus hábitos de homem livre e que, em dado momento, associa ao topos clássico do labirinto:
Pero o labirinto do mosteiro soborda as súas leas de cazador. El é home de espazos abertos, de aire, lume e sangue visto, ferro e cans ao sol das devesas, paisaxe perdida; e non loitador desta paisaxe estraña: a pedra labrada, o mofo, este balor de humidade e séculos que se mete nos ósos e nos miolos. El non coñece sequera o abade, o amo do labirinto que o agarda, como a araña que tece o urdido e espera a presa, con todo o seu tempo diante, con todo o tempo do mundo por seu. [...] Aínda peor, sumiríao para sempre na ignorancia, condenaríao à incerteza, que é unha forma, outra mais, de morte en vida. (fa II, p. 22)
A violência aguarda no labirinto, conforme se reconhece no mito do Minotauro, monstro a quem a cada nove anos eram destinados nove rapazes e nove raparigas atenienses. O texto vem recuperar o tópico no isomorfismo dos corredores antigos do mosteiro, cuja paisagem estranha feita de “humidade e séculos” de domínio expõe o sujeito à contingência. Nessa leitura mítica, o labirinto infernal, semelhante à teia traiçoeira da aranha, inverte certa conceção positiva do centro que o tende a apreender como ponto de convergência da trajetória da vida humana a partir do qual irradiará, em sentido inverso, o seu renascimento (ver Freitas, 1975, p. 134). No labirinto de Oseira, exclui-se a esperança da redenção: o Abade, mestre infernal, preside expectante ao mundo das sombras e das insídias e aguarda a chegada do cavaleiro para desenredar os segredos do seu pathos : referido
Escuro é o mosteiro. Noitebro, espeso na súa penumbra fondal, como un navío sen luces no fondo dos abismos. Boca de lobo, cova da serpe. [...]
Tras do guía, calado como un morto, as sombras dos homes, fuxidas do lume do caveco, alónganse gabeando polas paredes. Andan moito tempo, tanto que o cabaleiro perde a noción. Deixan atrás os claustros sumidos na penumbra, só alumeados polo luar que escintila na neve que cobre aínda os tellados; e baixan esqueiras como se profundasen no máis fondo do mosteiro, nas entrañas da oseira, na medula do óso descarnado.
Todo é escuro e incerto. (fa II, pp. 24-25)
A violência ontológica constrói-se na espera e na incerteza que a descida ao labirinto suscita, prosseguindo o efeito inicial motivado pela afirmação de poder que a grandeza do edifício, assentando a morte (o ossário/ Oseira) no afloramento primitivo dos instintos, produz na personagem. As semelhanças com o Mosteiro de San Lorenzo de El Escorial (sendo de registar a correspondência entre o nome do santo mártir o e do Abade), mole labiríntica de pedra e símbolo do poder político e religioso dos Áustrias onde se recolhem, nas suas entranhas, os ossos dos monarcas da dinastia, parecem pertinentes, de que não deveremos excluir a mais moderna assimilação de Oseira ao estatuto de “Escorial da Galiza”. Para Egas, o labirinto das profundezas do edifício sugere a experiência da angústia provocada pela repetição de espaços e rituais, avançando indícios ominosos quanto ao seu próprio desfecho catastrófico:
Atravesan, agora, un corredor angosto, de paredes labradas no penedo. Egas sente o peso enorme do mosteiro gravitando sobre as súas cabezas e non pode, malia todo e os velenos da morte e os da espera, deixar de sentir a opresión do nicho alongado polo que transitan. Outra porta, idéntica en todo á primeira. Todo se repite, a cerimonia das chaves, o xiro silente da folla metálica sobre as bisagras aceitadas, a entrada. (fa II, p. 25)
A sensação de enclausuramento ressurge na novela em outras alusões, como a das celas da Inquisição - “[...] aqueles cubículos fedentos, onde a grea xudía se amoreaba” (fa V, p. 54) –, adequada a outra das representações da violência a desenvolver.
Quanto a outros espaços físicos de poder, reencontraremos igualmente o labirinto na descrição da cidade de Toledo – “círculos concéntricos, círculos concéntricos arredor dun mesmo fulcro...” (fa III, p. 34) – evocando não apenas a sede da velha monarquia visigótica e da futura monarquia hispânica e imperial, emaranhado de ruas e de construções sob pesadas nuvens que El Greco viria a imortalizar, mas ainda a tradição do ensino ocultista (na novela, Lourenzo e Servando – nome homónimo do castelo que se ergue junto a Toledo - frequentam as bibliotecas da urbe e aprendem as artes nigromantes), muitas vezes ministrado em covas secretas como a de São Gil (frade português que fizera um pacto com o demónio) ou a que é representada em El Conde Lucanor no conto XI sobre o mago D. Illan e o Deão de Santiago, sendo de notar a semelhança entre a descrição do compartimento onde o nigromante dá as suas lições e o salão onde o Abade aguarda Egas. O mundo ctónico das sombras e os seus poderes infernais abriga-se sob as ruas desse dédalo urbano que, entre outras interpretações possíveis, representa a perda da visão global de um percurso racional (ver ). Este aspeto surge atestado na violência de Lourenzo nas ruas da cidade após a morte de Servando (ver fa IV, p. 44) e a morte do Inquisidor “a puñaladas nunha calella” (fa VII, p. 71), a mando do protagonista, ações decorrentes de impulsos negativos que vêm desvelar a fragilidade do labirinto na contenção da irracionalidade. Isabel, Católica, a soberana do labirinto toledano, exila Lourenzo da cidade (ver fa IV, p. 44) e envia-o para o seu destino, procurando restaurar um certo princípio de ordem sem retirar a força às entidades infernais que, em espelho invertido, praticam outras formas de poder.
4. Ao serviço da rainha Isabel, o nobre Lourenzo de Navascués exercera a violência em circunstâncias de estado de exceção. Entre as mais eloquentes, deparamo-nos com a descrição das “cabeças cortadas” nos encontros bélicos:
Tanto coas espadas ergueitas, canto nas ciencias máis agachadas, andamos sempre xuntos. Segamos cabezas nas colleitas dos campos de Marte para a raíña de Castela que nós aceptamos. Cabezas de infieis andalusís e tamén cabezas de cristiáns coma nós. Porque Servando e eu collemos o bando da Raíña Sabela, a que chaman «A Católica» contra «A Beltranexa» Xohana, contra os portugueses e mesmo contra os nosos eidos nativos, os de norte, sempre na súa lei. E ofertamos as cabezas cortadas ao Deus que todo o pode. (fa IV, p. 40)
A transcrição suscita-nos algumas observações. Lourenzo participa ativamente no processo de legitimação do poder soberano de Isabel face a Joana, a Beltraneja, apoiada por D. Afonso V de Portugal, e nas lutas contra o Reino da Granada, validando as suas ações violentas no estado de exceção vigente e no compromisso assumido com o partido vencedor. Do ponto de vista político, o guerreiro incarna ficcionalmente a evolução dos poderes desarticulados dos potentados medievais para a conceção centralizada do Estado soberano moderno, de acordo com o qual, nas palavras de , se estabelece “um sistema hierarquizado e em cascata, uma pirâmide ao longo da qual o poder circula, do vértice até à base, sem jamais encontrar obstáculo ou resistência”. Isabel, a Católica, antecede e prepara o poder centralizador da dinastia dos Habsburgos na Península Ibérica e compreende, do ponto de vista político, a sobrevivência na pessoa do soberano do chamado “estado de natureza” onde a violência se alia ao Direito; de acordo com , “a soberania apresenta-se, assim, como uma incorporação do estado de natureza na sociedade ou, se quisermos, como um limiar de indiferença entre natureza e cultura, entre violência e lei, e esta indistinção constitui precisamente a especificidade da violência soberana.”. Por outro lado, a instituição desta conceção soberana tende no excerto citado a identificar-se com o sagrado na oferta das “cabeças” a Deus, imagem que emerge diretamente do reservatório religioso primitivo e do âmbito das representações clássicas do horror de certos povos tidos como “bárbaros”, como é o caso dos Celtas na literatura clássica. O sacrifício das vítimas é a imagem que introduz a ambiguidade do elemento sagrado da violência, o que nos remete para a etimologia latina de sacer e a combinação, no seu significado, tanto do elemento benéfico como do maldito (ver ). Apesar de poder ser lida com a ironia própria da personagem, o que de algum modo complementa a inerência irónica que tantas vezes lhe é característica, o excerto vem antecipar a condição de Lourenzo de Navascués enquanto sacerdos, o que implica dispô-lo, desde logo, no interior do círculo do homo sacer. A soberania do futuro Abade de Oseira, como a soberania da rainha, impõe-no na interseção entre os planos do sagrado e do profano, situando-o, segundo as palavras de , na circunstância paradoxal “em que se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sagrada, isto é, exposta à morte e insacrificável”. Como figura de poder num sistema ordenado e hierarquizado no qual o direito e a justiça sufragam o uso da violência, começará por exercer no vale do Xálima, de que é senhor natural, a missão de braço secular do Santo Ofício:
Pola miña condición de señor natural daquelas terras e de home douto en Teoloxía, defensor coa espada da Santa Relixión, tiña a obriga de facer volver ao rego a aqueles descarreirados dos que nunca antes escoitara falar. Tan axiña como rematara a Inquisición do Santo Oficio, que estaba facendo no val o seu labor indagatorio entre a xudiada. A miña función ía ser, como amo do poder secular, pasar a lume e ferro os convictos de apostasia.
Cheguei para restaurar a ortodoxia sen considerar ren. Nada me puña medo. Así tivese que queimar a encomenda enteira, se os valegos non abominasen dos seus desvaríos e se viñesen, submisos, ás boas. Nunca discutira as ordes reais, e menos o fixen entón, investido brazo armado da Santa Fe. (fa IV, pp. 44-45)
A atividade executiva de Lourenzo aparece como consequência natural do seu estatuto e de uma missão para a qual não existe discussão ou antagonismo dada a origem soberana do poder policiário que exerce. No ensaio “Sobre a crítica do poder como violência”, Walter Benjamin considerava esse poder menos repugnante nas monarquias absolutas do que nas democracias, atendendo a que o polícia “representa a figura do soberano que concentra em si todo o poder legislativo e executivo” (); não obstante, as diretrizes a seguir não deixam de refletir o totalitarismo da soberania na indistinção entre o sagrado e o profano, entre a religião e as instituições políticas. A violência de Lourenzo torna-se de novo instrumento e é nesse sentido que se adequa à célebre definição de Hannah Arendt segundo a qual esta se distingue de outras categorias como a força ou a autoridade pelo seu caráter instrumental, estando próxima do vigor, “posto que os implementos da violência, como todas as outras ferramentas, são planejadas e usados com o propósito de multiplicar o vigor natural até que, em seu último estágio de desenvolvimento, possam substituí-lo” (). Apesar da paixão por Xálima e de ter pactuado com a sua fuga, Lourenzo não se furta à missão inicial e encontra-se presente no auto de fé na praça de Valverde, pese embora o espetáculo grotesco o tenha incomodado:
Arderon aquel día as piras, e seguiron fumegando de noite. O fedorento cheiro da manteiga humana, derretida nos lumes, mesturouse coa calor do día, e cos berros e salaios dos sacrificados. Moitos espectadores non resistiron o fedor e trousaron, mesmo no escano da autoridade. Eu aínda andei a piques. Só o alivio de saber a Xálima libre me axudou a manter a compostura. [...] Contáronme, aínda non hai moito, que as pedras da praza gardan para sempre as pegadas do sangue e do lume que correron nelas aqueles días. Non é de estrañar, se cadra, os homes ás veces somos feras tan brutais que non hai auga no mundo que abonde para lavar a nosa infamia. (fa VII, pp. 73-74)
Se a descrição das fogueiras da Inquisição poderá evocar o horror dos fornos crematórios nazis, imagem representativa da barbárie na contemporaneidade, o último excerto transcrito desvela a clássica caraterização da natureza humana vertida na expressão homo hominis lupus, a qual, de Plauto a Thomas Hobbes, tem vindo a atestar a condição de ferocidade que séculos de cultura e civilização não lograram condicionar de forma eficaz. O protagonista mantém ao longo da narrativa esse estatuto: a primeira impressão de Egas de Doncos quando observa o Abade é a de que, embora velho, “transmite forza animal, algo de fera asasina” (fa II, p. 26); já no final da novela, ao desvendar o plano de matar Egas, admite que “privado de Xálima e da súa descendencia, son un lobo acurralado. Non sei facer outra cousa senón trabar cos dentes. Morderei até o óso, até o fondo das vosas entrañas.” (fa XI, pp. 101-102); por último, na dignidade de Abade de Santa Maria de Oseira, antecedendo a sua própria morte, é visto pela população como “un home outo e rexo, barba cumprida e branca, ollos de lobo.” (fa XII, p. 107). A bestialidade simbólica lê-se na perspetiva do devir-animal da figura soberana, definitivamente concretizada na dignidade abacial (atestada no selo do anel), o que nos coloca perante as conclusões de sobre as semelhanças perturbantes entre o soberano, o criminoso e a besta; por se encontrarem fora da lei, ao lado ou acima das leis; entre a besta e o soberano ergue-se o espetáculo da espectralidade no sentido permutável em que um habita o outro:
Na cobertura metamórfica das duas figuras, a besta e o soberano, pressente-se então que nela opera uma profunda e essencial cópula ontológica que trabalha este par; é assim como que um acasalamento, uma copulação ontológica, onto-zoo-antropo-teológico-política: a besta torna-se o soberano que se torna a besta; há a besta e o soberano (conjunção), mas a besta é (é) também o soberano, o soberano é a besta. ()
O percurso textual de Lourenzo encaminha-o, por conseguinte, para a sua ascensão progressiva a homo sacer, o que implica a sua exposição permanente à violência e à morte, conforme referimos anteriormente. A morte violenta do Inquisidor em Toledo, outra figura de soberania, já o anunciara, estando reservado para o final da novela o seu aniquilamento:
Érguense os estadullos e baten con saña, arreo, como se non fosen parar nunca. Como se fosen eixadas, picarañas abrindo unha roza, morteiros. É agora, o que foi abade, entre os homes e mulleres que pingan suor, tinguidos de sangue e lixaduras, só unha polpa desfeita, rastro de home, amasadela. Enterraron os despoxos baixo da eira do pan, mesmo alí. (fa XII, pp. 109-110)
Ramón Caride fornece-nos a referência ao acontecimento real da morte do abade Ochoa de Espinosa em Vila Enfesta às mãos dos lavradores como modelo textual para a de Lourenzo, citando para tal, como fonte, as informações de Frei Damián de Neira (ver ); trata-se de um evento que, de acordo com o mesmo, se repetira na mesma época em outras partes da Península. No entanto, a descrição apresentada, ainda que retirando da tradição histórica elementos comuns (como é o caso da referência à agressão com os “estadullos”, paus que se erguem nos lados dos carros dos bois), investe decididamente na imagem irracional da horda dos trabalhadores na punição violenta do soberano. Como pai (abbas) da comunidade onde se incluem todos os cristãos, a morte cruel de Lourenzo reveste-se de um significado religioso mais profundo que concorre com a interpretação possível de um episódio revelador das dissensões históricas entre vassalos e suseranos, comuns em todas as épocas; de facto, o que sucede após o aniquilamento do abade é o regresso ao equilíbrio anterior da organização hierárquica de poderes: “Algúns pagaron co tormento, outros coa vida. Pasaron os anos. Destinxiu o sangue na acordanza dos estadullos. Pouca cousa mudou. Ao cabo veu outro abade, e outro despois. Pasaron aínda os séculos, e case nin os séculos foron quen de gardar memoria.” (fa XII, p. 110). Neste contexto, a coerência entre o corpo do homo sacer e a sua íntima simbiose com a morte torna-se evidente: para , o homo sacer é “insacrificável e pode, todavia, ser morto por quem quer que seja.”
A dimensão da vida nua, que constitui o referente da violência soberana, é mais original do que a oposição sacrificável/insacrificável e aponta para uma ideia de sacralidade que não é absolutamente definível através do par (que, nas sociedades que conheciam o sacrifício, nada tem de obscuro) aptidão para o sacrifício/imolação nas formas prescritas pelo ritual. ()
De facto, a descrição da morte do Abade não denota o heroísmo sacrificial da imolação patética do mártir cristão mas não se coíbe de exprimir a sua dimensão sagrada se atendermos à referência eucarística ao sangue (abundantemente derramado) e ao corpo, reconhecível na menção à “eira do pan” debaixo da qual são sepultados os despojos de Lourenzo, ironicamente o lugar da malha do cereal que dará corpo à hóstia consagrada. Já a atitude violenta dos homens e mulheres no seu afã destrutivo sugere de perto as considerações de Freud em Moisés e a Religião Monoteísta acerca do caráter subterrâneo do parricídio cometido pela horda primitiva, seguido da sua ingestão num banquete ritual (ver). Devidamente sublimada na organização social que implicou a renúncia dos instintos, Freud considerava-a na origem dos tabus e do totemismo, chegando mesmo a aproximar o banquete totémico à comunhão eucarística cristã (). No caso concreto do excerto, essa leitura equivale a uma extrapolação pela falta de referentes mais conclusivos, não deixando de ser possível, porém, a leitura da morte totémica do lobo-abade como representação da busca do sentido da ordem num mundo sujeito à contingência e à morte. Mais do que a vingança da horda pela morte de um dos seus filhos (ver fa XII, p. 109), a espetacularização da violência reserva aos assassinos (os lavradores, o Abade) a oportunidade de retoma do sagrado como experiência da continuidade. De acordo com Georges Bataille,
O sagrado é exatamente a continuidade do ser revelada àqueles que, num rito solene, fixam a sua atenção na morte de um ser descontínuo. Devido à morte violenta, surge a rutura na descontinuidade do ser: o que subsiste no silêncio que se desprende e experimentam os espíritos ansioso, é a continuidade do ser à qual a vítima é restituída. ()
5. O lobo como chefe de guerra e como símbolo do devir-animal conduz-nos a outra das representações da violência em O frío azul, a que se enquadra na interferência do fantástico no desenrolar das ações. No âmbito do simbolismo animal estudado por , ele insere-se numa orientação teriomorfa da imaginação (a transformação do homem em besta), podendo assimilar-se, do ponto de vista simbólico, aos deuses da morte e aos génios infernais. Vimos anteriormente como essa representação encontra na figura de Lourenzo vários pontos em comum. Procuraremos doravante concentrar as nossas observações finais nas duas figuras femininas, Xálima e Ildara, cuja representação nos encaminha para um regime de imaginário complementar.
Em si mesmo, o processo de metamorfose comporta a violência por acentuar, pela descontinuidade do ser que a protagoniza, a própria contingência das coisas nas mudanças inesperadas que propicia. O caso mais conhecido na literatura contemporânea é o de Gregor Samsa, que na obra de Franz Kafka é surpreendido com a sua súbita transformação em inseto e virá a conformar-se, impotente, à nova forma inumana até ao momento da sua morte. A metamorfose converge no desvio do real, conforme a teorizouao localizar a intervenção do elemento sobrenatural como centro da rutura de regras pré-estabelecidas, encontrando precisamente nesse corte a sua autojustificação. O ser monstruoso (recordemos o Minotauro e o labirinto) é fruto de um devir-outro, o que não significa, ao contrário de Samsa ou do filho de Pasífae, que se perpetue a conservação da nova forma (pensemos em O Asno de Ouro de Apuleio e na reversão final da metamorfose em burro do protagonista Lucius por intermédio da deusa Ísis). Em qualquer dos casos, o ser que se metamorfoseia converte-se em monstro quando se situa na fronteira entre humano e não humano, suscitando, de acordo com a síntese de José Gil, uma irreprimível duplicidade:
Situando-se numa zona de indiscernibilidade entre o devir-outro e o caos, ele pode aparecer – à maneira dessas figuras culturais aberrantes que são a «mestiçagem», a «dupla (ou tripla) cultura», a «dupla identidade» - como um foco atractor de saúde e de vida, rodeado por regiões mórbidas ou mortíferas. Qualquer coisa nele se confunde e confunde a imaginação: não será a monstruosidade capaz de suscitar um autêntico devir-outro (para além de mim próprio? ()
A permanência do devir-outro numa forma contínua (mas, como referimos, não necessariamente eterna), para Kai Mikkonen, não deve causar surpresa, uma vez que a metamorfose é, sobretudo, uma metáfora capaz “de dramatizar a ordem metafórica do discurso e tematizar a relação entre o mesmo (ou o próprio) e o outro” (). Esse compromisso surge desde cedo no discurso literário com motivações concretas.
Alguns relatos lendários medievais descrevem o encontro de cavaleiros com mulheres sobrenaturais que, a troco de um compromisso enquadrado num interdito, se sujeitam a viver com eles, de que são exemplo os contos organizados em torno do ciclo de Melusina (metade mulher, metade serpente ou peixe) ou da célebre Dama Pé de Cabra, figuras que protagonizariam obras literárias de Manuel Mujica Lainez e Alexandre Herculano, respetivamente. Irene Freire Nunes, ao dissertar sobre a importância destas mulheres na origem de linhagens ilustres medievais, apresenta o esquema narrativo comum: “uma mulher sobrenatural ama um humano e segue-o ao mundo dos mortais impondo-lhe um interdito. A quebra do pacto provoca o desaparecimento daquela que deixa, no entanto, no mundo humano uma progenitura ilustre. A prosperidade do casal é ligada ao respeito desse interdito.” (). Estas lendas atestavam o prestígio de uma linhagem através do recurso ao mito fundacional, herança de um vasto repositório de referências entre fantásticas e clássicas. Nestas, a metamorfose é descoberta de forma inesperada, fruto da transgressão da promessa feita pelo homem, propositada ou inadvertidamente.
Na novela de Ramón Caride, a orientação concedida é diversa, na medida em que o desvelar da metamorfose de Xálima à luz da lua não resultou da transgressão de um tabu previamente combinado e identificação de Ildara com a cerva morta por Egas é a consequência de um ato acidental, não premeditado. O autor cita a lenda que serve de modelo às personagens femininas, a de Dona Cerva dos Ancares, recolhida por Xosé M. González Reboredo em Lendas galegas de tradición oral (editorial Galaxia, 2002). Nesta, na versão consultada (https://galiciaencantada.com/lenda.asp?cat=7&id=1877), surgem Egas e Ildara (Aldara) como irmãos; Aldara, apaixonada por um cavaleiro de um castelo vizinho, desaparece, para, anos depois, ser morta na forma de uma cerva branca. Tal como na novela, a pata da cerva possibilita o reconhecimento da verdadeira natureza da rapariga ao assumir a forma de mão humana com um anel diante do pai de ambos, confirmada em seguida pela descoberta do cadáver sem a mão. Na lenda, não se esclarece o motivo do encantamento, ao contrário da novela, onde Ildara prossegue a linhagem maravilhosa da mãe, Xálima, que faz coincidir o seu devir-animal a partir do conhecimento travado com a Serpela ou a Malvana, bruxa ou moura dos penedos, e ainda com a primeira menstruação (ver fa VII, p. 66). No mesmo capítulo, Xálima refere ter recebido da mãe Amanda, em sonhos, o incitamento à fuga com o objetivo da conservação da linhagem – “o seu sangue vai morrer con nós as dúas se non fuxo. Debo vivir por ti, contigo, para que a miña estirpe non se esvaeza na néboa para sempre.” (fa VII, p. 68) -, revelando em seguida a pouca confiança nos homens: “Non fales por falar; ti es home, carne sen consistencia que cobres de grinaldas e ferro para agachar a súa febleza. Os homes sodes criaturas do aire, paxaros sen asento, fume. Eu son como a serpe, arrastro o meu ventre pola terra e tomo alento da terra con todo o meu ser.” (fa VII, pp. 68-69). O desenvolvimento feminino da linhagem fundamenta-se na hereditariedade do sangue e da metamorfose, identificando-se simbolicamente com a terra e com a serpente, figura ctónica e sagrada, mas ainda com cerva branca e a lua. Recordemos a relação tradicional do ponto de vista do imaginário entre os fluxos menstruais e a lua, correspondendo os primeiros, de acordo com a análise de Gilbert , a um dos isomorfismos da água no regime nictomorfo (da noite); o sangue menstrual como água nefasta é temível “porque é senhor da vida e da morte e porque na sua feminidade é o primeiro relógio humano, o primeiro sinal humano correlativo do drama lunar” (). A transgressão, de facto, prossegue na novela do lado do homem tal como nas lendas das linhagens, mas com modificações significativas: no caso de Lourenzo de modo consciente, ao decidir escutar a admoestação de Servando e a ameaça do Inferno; em relação a Egas, inconscientemente. Xálima confessa-se “ferida de morte” (fa IX, p. 85) quando o amante a descreve como “parte de criatura da noite” (fa IX, p. 84), reforçando as características nictomorfas e a sua natureza teratológica (com alguma ironia, a essência simbólica de Lourenzo); posteriormente, Xálima morre ao dar à luz Ildara, que, numa noite de luar, metamorfoseada em cerva branca, é morta por Egas de Doncos num momento repentino de decisão:
A cerva virou, o dedo apertou o resorte da bésta antes de eu mesmo decatarme. A frecha partiu contra o animal. Dereitiña. Seguiu o golpe do dardo contra o corazón, nin tempo dun salaio. A cerva afociñou, dobrou os xeonllos de diante e bateu na neve, tan longa como era. (fa X, p. 95)
Non daba soltado o cinto, nin separado o enganche, Collín o coitelo, que aínda tiña comigo, e cortei a pata da cerva. Separeina do corpo con coidado, á altura da cintura de diante, sen dar corte de máis nin de menos, para non cortar óso até o artello do ombreiro. (fa X, p. 96)
- Xa sabedes, don Lourenzo, o que había onde eu deixara, horas antes, a pata arrincada da cerva: o brazo cortado, branco e fino, dunha doncela, dunha moza fidalga, de pel limpa, o mesmo que vos carrexei a Oseira. Recoñecín deseguida o obxecto que enganchara no meu cinto. Era o seu anel, o que lucía no dedo do medio, manchado de sangre. (fa X, p. 99)
A violência da morte é acentuada pela violência da imagem do corte do membro (na lenda, a mão, na novela o braço, que ficara preso ao cinto de Egas), o qual sugere a descontinuidade do corpo que, exilado da sua dimensão maravilhosa, regressa ao seu estado orgânico comum. A quebra do sagrado no sentido do mistério que envolve o ser monstruoso resulta na devolução do corpo à forma comum a troco da amputação (a mão como símbolo da totalidade); assim, o corte manifesta-se ritualisticamente como um gesto purificador do ser e, por conseguinte, do regresso a uma ideia de ordenação cósmica que desde a Antiguidade recebera conotações religiosas importantes. Na taxonomia tradicional dos ritos de passagem estabelecida por Arnold van , o corte situa-se entre os de separação como meio de diferenciação definitiva e de modificação da personalidade do indivíduo. Já entre os gregos, a narrativa mítica da brutalidade do desmembramento (o sparagmos) do corpo do jovem deus Dionísio por vingança era recordada na comemoração dos seus mistérios (oficiados pelas bacantes) e assimilada à renovação da Natureza. Na Poética (1449a), Aristóteles associara a origem da tragédia aos autores de ditirambos, cantos dedicados a Dionísio, estabelecendo no domínio crítico uma relação entre os alvores do drama e a religião mistérica. Em O frío azul, essa relação não se encontra ausente, se atendermos à dimensão trágica desempenhada pela personagem Egas na inconsciência da hybris cometida (a morte da cerva branca, animal que na Antiguidade estava associado a Ártemis, deusa da lua) numa situação de hamartía (erro), aspeto que Aristóteles teorizou ao referir que, na tragédia, a mudança se deve verificar no sentido “da prosperidade para a desgraça, e não por efeito da perversidade, mas do erro grave” (Poética, 1453a).
Ainda neste esquema poiético, o anel faculta o momento de reconhecimento (anagnorisis) e de mudança súbita nos acontecimentos (peripeteia), conduzindo ao sofrimento (pathos) da personagem antecedendo a catástrofe final, com a morte causada pelo envenenamento lento a mando do Abade. O percurso trágico de Egas, ausente na lenda, assume uma dimensão expiatória e catártica que o desfecho fatal vem confirmar e que influi, por seu lado, na destruição anunciada de Lourenzo, o qual, desafiando as leis divinas, decide viver de acordo com os seus instintos: “A inconsistencia de Deus, facendo morrer a inocente Ildara, liberoume das miñas promesas.” (fa XI, p. 104). Na precipitação dos acontecimentos e na definitiva metamorfose em fera-homem, há, todavia, a disposição circular do sofrimento de que o anel abacial, desde o início da narração, vem lançando nos eventos enquanto objeto mágico e ominoso: símbolo da dignidade eclesiástica mas também da continuidade e da totalidade (ver ), de características teriomórficas – “Nel campan dous osos ergueitos” (fa I, p.19) –, apelando ao imaginário de um animal que, tal como o lobo, é assimilado simbolicamente à lua (ver ), produzido em Toledo pelo melhor ourives da futura cidade imperial (ver fa VIII, p. 77), o anel duplo (são criados dois iguais) torna-se sinal ambivalente do poder do homo sacer e do seu compromisso inelutável com a permanência do sofrimento no mundo, quer enquanto agente quer enquanto vítima, mantendo-se ainda como marca visível do domínio espiritual e material. Para esta multiplicidade contribui a sua simbologia dialética, que Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (2001, p. 53) confirmam no facto de, em simultâneo, o anel unir e isolar e assim recordando a relação dialética amo-escravo. Tal como o cinto, um dos seus correlatos, também ele símbolo ambivalente por em simultâneo religar (exprimindo conforto e poder) e por ligar (prender) (), crucial no enredo quando Egas de Doncos se viu preso à cerva que o arrastaria para o abismo (ver fa X, p. 96), o anel anima a perspetiva eterna dos movimentos construtivos e destrutivos do mundo que as personagens de O frío azul, nas relações que mantêm entre si, vão desvelando. Duplicidade, de resto, assinalada desde o início nos interstícios do relato ficcional na referência aos dois ursos (osos/ósos) do selo (apocalíptico) abacial, cujo significado simbólico sublinhou na obra já citada: “no animal lunar, como no ritual sacrificial, a confusão do passivo e do ativo acontece constantemente: o animal lunar pode ser o monstro sacrificador tal como a vítima sacrificada”.
6. As linhas de leitura propostas neste ensaio procuraram testemunhar a complexidade de uma obra que, por si só, merece sucessivas releituras e questionamentos. A interdiscursividade surge na novela de Ramón Caride como processo contínuo de aproximação e de distanciamento, do qual resulta uma perspetiva de discurso ficcional assente na conjugação de situações e figuras cuja produção de sentido influi decisivamente no trabalho sobre o imaginário. Realidade e mito, no âmbito da representação literária, interligam-se habilmente no texto, fazendo dele, tal como o autor refere na nota final da obra a propósito de Oseira, um desses “lugares que son encrucilladas polas que pasan todos os camiños do mundo” ().
A nossa opção pela indagação sobre o modo como se desenvolve em O frío azul o tópico da violência partiu da ideia de inquietação no sentido conferido por Silvina Rodrigues Lopes a propósito da relação entre a literatura e a experiência, o da possibilidade de responder através das palavras a todas as coisas vivas do mundo (ver). Nas encruzilhadas do texto, a perscrutação do tempo histórico e mítico acompanha os trajetos de imagens e figuras variadas, entre as que, do ponto de vista ontológico e coletivo, expressam o labirinto opressivo dos poderes simbólicos, a ambivalência do elemento sagrado e soberano da violência e ainda a sua circularidade transformativa, convergindo nas três dimensões intercomunicantes em estudo, a do espaço, a da soberania e a do maravilhoso. Ramón Caride, ficcionista e colecionador de histórias, logrou compatibilizar a complexidade do tema da violência com o arquivo global de referências disponíveis, harmonizando-se mas também distinguindo-se nos momentos de originalidade pelo seu posicionamento criativo face aos problemas e inquietações de antanho que são também os do seu (do nosso) tempo.
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Notas
[1] Michael Löwy interpretou-a nesse sentido nos termos que a seguir transcrevemos: “Para Benjamin, a tarefa do teórico do materialismo histórico é a de «quebrar», de fazer explodir, de destruir o fio conformista da continuidade histórica e cultural” ().
[2] Ao longo deste trabalho, citaremos o texto na língua original galega a partir da reedição de 2015 pela editora Urco, referida na bibliografia, identificando os trechos selecionados com a sigla fa, seguida do capítulo e do número da página. O livro de Ramón Caride foi traduzido e publicado em castelhano em 2011 na editora Anaya, recebendo o Prémio Templis para a melhor novela espanhola independente de fantasia publicada nesse ano. Este prémio é atribuído pela revista online de literatura juvenil El Templo de las Mil Puertas.
[3] Passamos a resumir as ações principais do enredo da novela. Após dias de espera, o cavaleiro Egas de Doncos consegue, por fim, conversar com o abade de Oseira, outrora o bravo guerreiro Lourenzo de Navascués. Antes de apresentar as razões para o encontro, Egas escuta a história do nobre ao serviço de Isabel, a Católica, que, além das artes da guerra, se dedicara em Toledo aos estudos de nigromancia com Servando de Noreña. A morte do amigo, que lhe prometera regressar do mundo dos mortos para lhe descrever o Além, causa-lhe grande desgosto e leva-o a cometer diversos desacatos. Lourenzo é então intimado pela rainha a exilar-se em terras da Extremadura para auxiliar a Inquisição. Em Valverde de Freixo, conhece a jovem judia Inés, acusada de heresia, e a sua irmã de quinze anos, Maria do Xálima, por quem se apaixona. Xálima tem como segredo transformar-se em cerva à luz da lua e é nessa forma que consegue fugir, com a ajuda de Lourenzo, da prisão da Inquisição. Depois de presidir ao auto inquisitorial, o nobre guerreiro regressa a Toledo onde manda fazer dois anéis com o selo de Oseira, de que, entretanto, obtivera a comenda. Após o reencontro com Xálima, vivem felizes. Lourenzo recebe a prometida visita do falecido Servando, que o admoesta por conviver com um ser maligno. Como sinal das penas que o aguardam, queima-lhe uma das mãos. Lourenzo, atemorizado, recrimina Xálima, entretanto grávida, pela sua danação. Desgostosa, acaba por morrer ao dar à luz Ildara. Em sofrimento, Lourenzo toma a decisão de se tornar monge, chegando a Abade de Oseira, tendo deixado a filha à guarda de vassalos que vivem longe. Egas confessa ao Abade Lourenzo ter-se apaixonado por Ildara, prometendo-lhe casamento; no entanto, numa noite de luar, julgando caçar uma cerva branca, o cavaleiro mata Ildara, que, entretanto, se transformara no animal. A descoberta da sua identidade fora possível através do anel com o sinal de Oseira encontrado na mão decepada. A busca de respostas levara-o ao mosteiro; ao perceber o que sucedera à filha, o Abade revela que vinha envenenando Egas de Doncos durante o tempo de espera por aquela conversa. O cavaleiro morre. Mais tarde, o arrogante Abade é assassinado pelos lavradores dos seus domínios, depois de o seu cavalo ter matado uma criança.
[4] O modelo do compartimento, onde prateleiras de velhos livros enquadram “unha cadeira, escura e luída como un trono infernal, con brazos e respaldo tallados en filigranas de estrañas criaturas” (fa II, p. 26), parece coincidir, em alguns pormenores importantes, com um dos espaços referidos no conto “The Festival”, de H. P. Lovecraft, a par de outros elementos como a descrição labiríntica da cidade – “Nos internamos en el laberinto enmarañado y tenebroso de aquella ciudad increíblemente antigua” (), evocada na descrição de Toledo. Também nas bibliotecas dessa cidade encontraremos o Necronomicon de Abdul Al-Hazred (ver fa III, p. 35), presente em algumas passagens do texto citado do escritor americano (ver).
[5] A esse propósito, citamos ambos os trechos: “Dicho esto, llamó al deán y se entró con él por una escalera de piedra, muy bien labrada, y bajaron tanto que le pareció que el Tajo tenía que pasar por encima de ellos. Llegados al fondo de la escalera, le enseñó el maestro unas habitaciones muy espaciosas y un salón muy bien alhajado y con muchos libros, donde darían clase.” (); “É un salón amplo, cunha altura impensada para o soterrado da súa estrutura, coas paredes baleiras de todo adobío (...) Repara na decoración, ou por mellor dicir, na súa ausencia, excepto unha libraria, con pergameos e libros encadernados en coiro, que semellan tan antigos como a pedra das paredes labradas” (fa II, p. 25-26). Na nota anterior, procurámos destacar a possível intertextualidade com a descrição do espaço no conto “The Festival” de H. P. Lovecraft.