Resumo
A persistência de uma pronúncia não nativa é um facto reconhecido no âmbito da investigação em aquisição / aprendizagem de língua não materna. Entre os fatores que o explicam, e independentemente dos diferentes quadros teóricos, o conhecimento linguístico prévio ocupa um lugar de destaque. Em causa estão não só os condicionamentos relacionados com as habilidades articulatórias já treinadas, mas também, e sobretudo, a capacidade de reconhecer/definir (novos) alvos com exatidão. Neste trabalho pretende contribuir-se para uma descrição da interfonologia de três grupos de aprendentes que têm como língua materna o espanhol, o italiano e o francês. Mais especificamente, em causa está uma área do sistema fonológico consonântico em que estas três línguas se distinguem entre si e se diferenciam do português: os róticos. Os dados foram recolhidos num corpus de produções orais, tendo sido analisados os níveis de convergência e de desvios. Os resultados mostram padrões diferenciados para os três grupos de informantes e comportamentos distintos também em função do contexto sintagmático em que surge a consoante.
Palabras chave
Competência fonológica em português língua não materna: os róticos
Isabel A. Santos
Competência fonológica em português língua não materna: os róticos
Estudos de Lingüística Galega, vol. 14, 2022
Universidade de Santiago de Compostela
Phonological competence in Portuguese as a non-native language: rhotics
Isabel A. Santos a
Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada (CELGA-ILTEC), Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Portugal
Copyright © Universidade de Santiago de Compostela
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución-NoComercial-SinDerivar 4.0 Internacional.
Recepção: 08/07/2021
Aprovação: 27/10/2021
Resumo: A persistência de uma pronúncia não nativa é um facto reconhecido no âmbito da investigação em aquisição / aprendizagem de língua não materna. Entre os fatores que o explicam, e independentemente dos diferentes quadros teóricos, o conhecimento linguístico prévio ocupa um lugar de destaque. Em causa estão não só os condicionamentos relacionados com as habilidades articulatórias já treinadas, mas também, e sobretudo, a capacidade de reconhecer/definir (novos) alvos com exatidão. Neste trabalho pretende contribuir-se para uma descrição da interfonologia de três grupos de aprendentes que têm como língua materna o espanhol, o italiano e o francês. Mais especificamente, em causa está uma área do sistema fonológico consonântico em que estas três línguas se distinguem entre si e se diferenciam do português: os róticos. Os dados foram recolhidos num corpus de produções orais, tendo sido analisados os níveis de convergência e de desvios. Os resultados mostram padrões diferenciados para os três grupos de informantes e comportamentos distintos também em função do contexto sintagmático em que surge a consoante.
Palavras-chave: Língua não materna; desenvolvimento fonológico; róticos; desvios fónicos.
Abstract: The persistence of a non-native pronunciation is a recognized fact in second language acquisition research. Among the factors that explain this, regardless of different theoretical frameworks, prior linguistic knowledge occupies a prominent place. Not only the conditioning related to the already trained articulation skills is at issue, but also, and above all, the ability to recognise/define (new) targets accurately. This work intends to add to the description of the interphonology of three groups of learners whose native languages are Spanish, Italian and French. More specifically, the issue concerns an area of the consonant phonological system in which these three languages are completely unlike one another and differ from Portuguese: rhotics. Data were collected in a corpus of oral productions, and the levels of convergence and deviations were analysed. The results show different patterns related to the native language and to the syntagmatic context in which the consonant appears.
Keywords: Non-native language; phonological development; rhotics; phonic errors.
Sumário
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1. Introdução.
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2. Algumas questões teóricas.
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2.1. Aquisição da fonologia de LNM e seu estudo.
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2.2. As consoantes róticas.
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2.3. As unidades vibrantes do português europeu (PE).
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2.4. Unidades vibrantes nas LM dos aprendentes.
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2.4.1. Unidades vibrantes no espanhol.
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2.4.2. Unidades vibrantes no italiano.
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2.4.3. Rótico(s) em francês.
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2.5. Hipóteses.
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3. Metodologia. Organização e tratamento dos dados.
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3.1. Natureza dos dados e amostra.
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3.2. Tratamento dos dados.
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4. Resultados e análise.
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5. Conclusões.
1. INTRODUÇÃO
É sabido que, particularmente junto de aprendentes tardios, a aquisição / aprendizagem de uma língua não materna (LNM) dificilmente se traduzirá na convergência total com a língua-alvo (LA). Tal “insucesso” é particularmente evidente no plano fonológico, domínio onde o aprendente tem de adquirir e dominar não apenas um inventário de sons, mais ou menos semelhantes ao da sua língua materna (LM)1, mas igualmente um novo sistema de contrastes sonoros, um conjunto de novas restrições fonotáticas e um novo sistema prosódico (Broselow & Kang 2013: 529). Por outro lado, este é um domínio onde não estão disponíveis estratégias de evitação, que permitiriam ao falante aprendente não exibir as suas “falhas”. Por tudo isto, é comum a conservação de um “sotaque” estrangeiro, mesmo em aprendentes com elevados graus de proficiência.
Entre os fatores que condicionam a aquisição / aprendizagem de uma LNM2, e em complexa interação com outros (como a qualidade e a quantidade do input e a atuação de princípios universais), encontra-se o conhecimento linguístico prévio. A mobilização deste traduz-se em fenómenos de transferência, positiva ou negativa, que explicarão determinadas características da(s) interlíngua(s). Tendo em consideração este facto, pretende-se, neste estudo, avaliar até que ponto o desempenho de falantes não nativos de português europeu (PE) no domínio fonológico segmental (mais especificamente na produção de róticos) se pode atribuir a transferência, particularmente a transferência da sua LM. Para tal, analisam-se dados orais de aprendentes com LM espanhola, francesa e italiana, línguas românicas cujos sistemas fónicos se distinguem, no que a este grupo de consoantes diz respeito, do português e entre si3.
2. ALGUMAS QUESTÕES TEÓRICAS
2.1. Aquisição da fonologia de LNM e seu estudo
No âmbito dos estudos sobre a aquisição / aprendizagem de língua não materna, a constituição (e persistência) de uma pronúncia não nativa tem sido explicada de modo diverso, o que, aliás, atesta a complexidade do processo. Na literatura é equacionada a relevância de fatores de natureza linguística (conhecimento linguístico prévio e relações de afinidade / distanciamento entre as línguas envolvidas), mas são também convocados fatores de ordem cognitiva e psicossocial: para alguns estudiosos, a maturação, conduzindo à perda de elasticidade neurológica e de aptidões motoras, precocemente orientadas para a produção das unidades fónicas da LM, compromete a capacidade de acrescentar ou transformar programas sensoriais e motores necessários à produção de sons em L2; para outros, a produção fica comprometida por uma perceção deficiente dos sons da L2, sendo a acuidade percetiva fortemente determinada pelas relações que se estabelecem entre a L1 e a L2; há ainda quem coloque o destaque na qualidade (deficiente) do input ou em aspetos de natureza social ou pessoal, como os motivacionais ou identitários (Flege 1995: 233-234 e ss.).
A investigação em fonologia de L2 começa por se desenvolver no âmbito da Hipótese da Análise Contrastiva, decisivamente impulsionada pelo trabalho de Lado, em 1957. A premissa é a de que as diferenças (ao contrário das semelhanças) entre os idiomas se traduzem em dificuldades para o aprendente, pelo que, quanto mais próximas estiverem as línguas, mais positivo será o efeito da transferência. Assim, por um lado, a pronúncia não nativa é, fundamentalmente, um produto do conhecimento linguístico prévio e, por outro, torna-se possível antecipar as áreas problemáticas na aprendizagem de uma determinada LNM. No âmbito da Análise Contrastiva, o trabalho desenvolve-se, então, em quatro etapas: descrição da língua de origem (LO) e da LA, seleção das estruturas a analisar, comparação dos sistemas linguísticos em causa no(s) domínio(s) em observação e identificação das áreas previsivelmente mais complexas para o não nativo (Archibald 1998: 51).
À medida que os trabalhos se desenvolvem, torna-se, no entanto, evidente que algumas dificuldades e desvios dos aprendentes não são previsíveis nem diretamente explicáveis pelas diferenças entre a LA e a LO: por um lado, constata-se que algumas estruturas da LA não presentes na LO são aprendidas mais facilmente do que outras, sem que tal se possa atribuir às particularidades dos idiomas envolvidos; por outro lado, estudos evidenciam que a fala dos aprendentes de L2 exibe muitas vezes padrões que, sendo coerentes e sistemáticos, não coincidem nem com os da LA nem com as da L1 (Broselow & Kang 2013: 529).
É neste contexto de reflexão que se desenvolvem versões “moderadas” da Análise Contrastiva, admitindo-se que padrões minimamente distintos podem resultar em “confusão” para o a"rendente (Major & Kim 1996: 154). A teoria da Análise Contrastiva é então revista de modo a considerar, no domínio fonológico, a relevância quer das semelhanças quer das diferenças entre os sistemas em contacto, atribuindo-se um papel crucial à saliência percetiva (Major & Kim 1996: 154; Pickering 2012: 338): os aprendentes perceberão (e aprenderão) com facilidade as diferenças mais profundas entre L1 e L2, mas serão menos bem-sucedidos na apreensão de pequenas diferenças. Tal explicar-se-á, em parte, pelo facto de, num caso, existirem aspetos “transferíveis” enquanto no outro, isto é, quando as duas unidades ou estruturas são muito diferentes, dificilmente o aprendente poder recorrer à transferência (Major & Kim 1996: 154-155; Major 2001: 37). Por esse facto, a convergência ou conformidade com o alvo fonológico é mais provável se este for dificilmente substituível por uma estrutura ou unidade similar em L1 (Pickering 2012: 338).
Não obstante o reconhecimento da transferência como um fator muito relevante na aquisição / aprendizagem de LNM, assume-se, então, que a influência da L1 não explica por si só os padrões de pronúncia em L2 (Eckman 2012: 94). Assim, as limitações explicativas da Análise Contrastiva vêm a ser colmatadas por via da integração de princípios linguísticos universais, como o de marcação (Broselow & Kang 2013: 529). A este conceito subjaz a ideia de que as oposições binárias entre certas representações linguísticas não são simples oposições polares; na verdade, um dos seus membros (o “não marcado”) corresponde a uma entidade mais comum, quer no sistema linguístico em estudo, quer nas diferentes línguas do mundo, apresentando-se como mais básico e mais natural do que o outro termo da oposição (Eckman 2012: 93-94). A integração deste princípio conduz à hipótese geral de que as estruturas não marcadas, mais básicas e tipologicamente mais comuns, são mais facilmente aprendidas do que as estruturas marcadas.
Deste modo, a Markedness Differential Hypothesis (MDH), formulada por Eckman na década de 1970, ajuda a explicar por que razão algumas diferenças entre L1 e L2 conduzem a desvios, enquanto outras não impedem o sucesso do aprendente. No âmbito desta teoria, postula-se que as estruturas marcadas de L2 serão mais dificilmente dominadas do que estruturas igualmente novas, mas menos marcadas, isto é, uma determinada estrutura da LA colocará mais dificuldades ao aprendente se, não coincidindo com a estrutura correspondente na LA, for, simultaneamente, mais marcada. O grau de dificuldade corresponderá, por outro lado, ao grau de marcação (Eckman 1991: 32; 2012: 94; Broselow & Kang 2003: 529-530).
O investigador confronta-se, então, com a difícil tarefa de distinguir os efeitos da transferência de L1 e os resultados de tendências universais, na explicação de determinados factos linguísticos (Broselow & Kang 2013: 530). A questão complexifica-se quando, no âmbito de outros modelos, se elaboram hipóteses já equacionadas e se considera que as semelhanças entre a LO e a LA podem ter um impacto negativo, condicionando a acuidade percetiva do aprendente e dificultando o domínio de alguns aspetos da estrutura fonológica da língua-alvo, particularmente a aprendizagem de novos contrastes fonémicos. Admite-se, no contexto deste conjunto de hipóteses, uma tendência para interpretar os sons de L2 em função da estrutura fónica de L1, levando a que sons da LNM sejam associados a unidades fónicas similares, mas não necessariamente idênticas, na LM. Deste modo, dois sons que contrastam na L2 podem ser associados a uma única categoria da L1, daí resultando um comportamento desviante (Broselow & Kang 2013: 530).
Assenta em premissas deste tipo o Speech Learning Model (SLM), desenvolvido por Flege. De acordo com este modelo, os erros de produção cometidos pelos aprendentes resultam frequentemente da ausência de alvos percetivos exatos. Tal acontece quando os não nativos não reconhecem as diferenças que existem entre sons da L2 e / ou não se apercebem daquelas que existem entre as unidades fónicas da L2 e as que lhe são próximas, na L1 (Flege 1986: 15; 1995: 238; 2007: 367; Pickering 2012: 336).
Assume-se então que será criada uma nova categoria fonética para um som de L2 que difira foneticamente do som de L1 mais próximo, se os aprendentes captarem pelo menos algumas das diferenças fonéticas entre os sons de L1 e L2 e que, quanto maior é a distância percebida entre o som de L2 e a unidade mais próxima de L1, mais provável é que as diferenças fonéticas sejam percebidas (Flege 1995: 264). O corolário deste conjunto de premissas é que os sons de L2 que não se encontram no inventário da L1 (unidades fónicas novas – diferentes ou dissemelhantes) podem ser produzidos com maior acurácia do que aqueles que têm uma unidade equivalente no inventário de L1 (unidades fónicas similares ou equivalentes), uma vez que um mecanismo cognitivo de equivalence classification bloqueia a criação de novas categorias fonéticas para os sons de L2, impedindo o aprendente de ser totalmente bem-sucedido no idioma não nativo. Admite-se, no entanto, que as mudanças na perceção conduzirão a mudanças na produção e que os sistemas fonéticos usados na perceção e na produção permanecem adaptative over the life span4 (Flege 1986: 15; 1995: 233, 238 e 264; 2007: 367; Major & Kim 1996: 155; Pickering 2012: 336).
O Perceptual Assimilation Model (desenvolvido por Best) assenta igualmente na premissa de que os segmentos cujos “gestural elements or intergestural phasing do not match precise any native constellations” (Best 1995: 193) tendem a ser percebidos em função das suas semelhanças e diferenças relativamente às “constelações” segmentais mais próximas no espaço fonológico nativo (Eckman 2012: 93). Prevê-se, então, que a semelhança entre os segmentos não nativos e as configurações articulatórias (gestural constellations) nativas leve o ouvinte a assimilar percetivamente os fones de L2 a categorias nativas, isto é, espera-se que o ouvinte detete afinidades articulatórias com os fonemas nativos ao mesmo tempo que se apercebe das discrepâncias, sobretudo se estas são expressivas (Best 1995: 193)5. A acurácia na discriminação de sons não nativos depende, em suma, do modo como essas unidades são assimiladas a unidades de L1; se duas unidades fónicas não nativas são assimiladas a duas unidades diferentes de L1, a discriminação será excelente; se são assimiladas a uma única categoria nativa, a discriminação será pobre (Escudero 2007: 120).
A introdução do conceito de interlíngua (IL) (Selinker 1972), expressão que designa o sistema linguístico que os aprendentes de LNM desenvolvem e que lhes permite produzir e compreender enunciados na LA, leva à constituição de novas perguntas de investigação: depois do foco na explicação das dificuldades registadas na aquisição em L2, a atenção volta-se para a estrutura da IL que se define, ela própria, como objeto de estudo. Assim, coloca-se a questão, basilar, de saber se as interlínguas constituem ou não sistemas linguísticos similares às gramáticas da L1, vindo a defender-se e a recolher-se evidências de que as interfonologias estão sujeitas aos mesmos princípios, generalizações e constrangimentos que as fonologias de línguas adquiridas como nativas (Eckman 2012: 94-97). As abordagens vão diferir em função dos princípios linguísticos considerados na explicação das fonologias da IL e em função da importância atribuída à interação entre esses princípios e o conhecimento linguístico prévio do aprendente (Eckman 2012: 94-97)6.
Desenvolvem-se então abordagens que evocam princípios universais para explicar factos da fonologia de L2. É o caso da Structural Conformity Hypothesis (SCH), formulada por Eckman. Historicamente ancorada na Markedness Differential Hypothesis e apoiando-se na constatação de que existem padrões não nativos em que as estruturas seguem princípios que são universais, mas não diretamente imputáveis nem à língua-alvo nem à língua de origem, a SCH desenvolve previsões sobre estruturas da IL com base na marcação tipológica (Eckman 1991: 33; 2012: 98).
Outra proposta que integra, na análise da fonologia de L2, o princípio da marcação é a Similarity Differential Rate Hypothesis (SDRH) (Major & Kim 1996). Partindo da hipótese geral já anteriormente formulada de que os sons similares são de aquisição mais difícil (mais lenta) do que os dissemelhantes, Major & Kim (1996: 160-161) distinguem três possibilidades de especificação da premissa fundamental. Numa versão lata, considera-se que, independentemente dos fenómenos, níveis de exposição, experiência e fase de aprendizagem, os aprendentes demonstram mais proficiência na produção de sons dissemelhantes do que na produção de sons similares. Outra possibilidade de interpretar o princípio geral é considerar que, devido à transferência, os aprendentes iniciais têm um melhor desempenho na produção de sons similares, mas baixa proficiência no domínio dos sons dissemelhantes, acústica e percetivamente muito diferentes dos equivalentes em L1; por outro lado, os aprendentes avançados captam as diferenças e concentram-se nos sons dissemelhantes, ao mesmo tempo que ignoram as diferenças menos evidentes entre os sons semelhantes. Finalmente, no âmbito da SDRH, considera-se que um fenómeno de L2 diferente de um fenómeno de L1 é adquirido mais rapidamente do que um fenómeno de L2 que seja semelhante; assim, embora sons de L2 diferentes das unidades de L1 sejam inicialmente difíceis, o desempenho dos não nativos melhora rapidamente. Ao contrário, o grau de sucesso dos aprendentes no caso dos sons semelhantes aos de L1 permanece semelhante ou diminui progressivamente (Broselow & Kang 2013: 530-531), refletindo estados de fossilização. No âmbito da SDRH, a marcação constituirá um fator mediador com impacto neste processo, determinando o ritmo de aquisição (Major & Kim 1996: 151, 162; Major 2001: 39; Pickering 2012: 338)7.
2.2. As consoantes róticas
Rótico (r-sounds) é a designação tradicionalmente dada às consoantes representadas por <r> ou <rr>. Trata-se, no entanto, de uma classe muito heterogénea, “camaleónica”, na expressão de Van Hout & Van de Velde (2001: 1), tornando-se difícil identificar características articulatórias ou acústicas partilhadas por todas as unidades. No núcleo deste grupo encontramos vibrantes múltiplas (trills), vibrantes simples (taps / flaps8) apicais e uvulares, mas a estas consoantes associam-se tipos fricativos e aproximantes, surdos e sonoros, acústica e articulatoriamente semelhantes ou historicamente relacionados (Lindau-Webb 1980, de acordo com Maddieson 1984: 73)9. Assim, e não obstante as evidências fonéticas da sua heterogeneidade, as relações de variação sincrónica que diferentes unidades estabelecem entre si, a sua vulnerabilidade a processos históricos de mudança nas diferentes línguas do mundo e, ainda, a existência de afinidades de natureza fonotática mostram que os róticos tendem a comportar-se, do ponto de vista fonológico, como uma classe natural (Lindau 1985: 157; Wiese 2011: 750-751; Howson & Monahan 2019: 15-16)10.
Os róticos constituem um tipo de unidade muito comum nas línguas do mundo, já que cerca de 76% dos idiomas representados na base de dados UCLA Phonological Segment Inventory Database (UPSID) possuem sons desse tipo; no entanto, só cerca de 19% registam mais do que uma unidade rótica (Maddieson 1984: 73 e 82-83).
Dos r-sounds analisados por Maddieson (1984: 79-80), a maior parte corresponde a trills e os dados mostram que o tipo mais comum é o alveolar ou dento-alveolar. Já a articulação uvular (ou, mais latamente, a produção de r-sounds recuados) é pouco comum (Lindau 1985: 158; Wiese 2011: 749) e atribui-se a um processo histórico de mudança, cujas motivações se discutem na literatura.
É sabido que a pronúncia anterior (que terá correspondido ao r do latim, do grego e do indo-europeu [Malmberg 1954: 82-83]) precede, historicamente e em diversas línguas do mundo, as variantes recuadas. Na origem destas encontra-se, portanto, um processo de mudança linguística (posteriorização). O aparecimento das variantes fricativas contemporâneas resultará, por seu turno, do enfraquecimento da articulação uvular, pela perda do contacto entre os articuladores (Rennicke & Martins 2013: 515). Com esta alteração, que afeta o modo de articulação, o rótico perde propriedades características das unidades soantes e converge com a classe das obstruintes (Pereira 2020: 32); os dados da aquisição de L1 em PE confirmam-no11.
A difusão da variante recuada é normalmente explicada pelo prestígio da pronúncia inovadora, cuja origem se atribui aos espaços urbanos (Malmberg 1954: 84; Maddiesson 1984: 80-81). Segundo Chambers & Trudgill (1980), foi no francês parisiense que, provavelmente no século XVII, tal processo se desencadeou; do ambiente da corte e dos meios urbanos, a realização uvular ter-se-á progressivamente expandido para os meios rurais e entre as classes privilegiadas do ocidente europeu (Martinet 1962; Maddiesson 1984; Van Hout &Van de Velde 2001; Galazzi & Boulakia 2012).
Mais focadas na explicação (psico) linguística (e com menos interesse pelo processo de difusão), hipóteses de outro tipo são colocadas para explicar a origem do fenómeno de recuo de [r], vibrante múltipla ainda existente na maioria das línguas românicas (cf. síntese em Pereira 2020: 145-146). Assim, Kostakis (2007) integra o conceito de marcação e defende que a posteriorização representa um processo de mudança para um segmento não marcado e articulatoriamente mais simples, como indiciam os dados relativos à aquisição dessas consoantes quer em L1 quer em L212.
2.3. As unidades vibrantes do português europeu (PE)
A observação dos dados do português mostra que, em posição intervocálica, se estabelecem contrastes fonémicos entre dois róticos (ou dois tipos de rótico), a que tradicionalmente se chama vibrante simples e vibrante múltipla. Nessa posição, o aparecimento de um ou outro tipo de unidade não é previsível e da sua escolha resultam oposições significativas (cf. caro / carro, vara / varra, pera / perra). Nos outros contextos, a vibrante simples, por um lado, e a vibrante múltipla, por outro13, preenchem espaços sintagmáticos exclusivos, numa relação de variação complementar. Assim, a vibrante simples surge em coda silábica (partir) e em ataque ramificado (preto); a vibrante múltipla surge em início absoluto de palavra (rapaz) e em início de sílaba interior precedida de elemento lateral (palra), sibilante (Israel) ou nasal (tenro)14.
Apoiados nestes dados, alguns estudiosos consideram que o sistema consonântico do português integra duas unidades fonológicas vibrantes, uma simples (/ɾ/) e uma “múltipla”, variando, no entanto, a identificação desta.
Essa vem a ser a posição de Mattoso Câmara (1977; 1982), que distingue um /r’/ brando de um /r/ forte, unidades resultantes de segmentos latinos distintos e com localização anterior (consoante simples, /r/, e consoante geminada, /rr/, respetivamente). Em posição intervocálica, um processo fonológico de lenição conduziu /r/ latino a /ɾ/ enquanto, e não obstante o processo generalizado de simplificação das consoantes geminadas, /rr/ manteve uma articulação “forte”, de “vibração múltipla” (Mattoso Câmara 1985: 48-50). Já Mateus (2005), assumindo [ʀ] como a manifestação fonética da unidade fonológica múltipla, considera que esta se opõe à outra vibrante não pela estridência (traço decorrente do modo de articulação, simples ou múltiplo), mas pela localização. Deste modo, /ɾ/ e /ʀ/ distinguem-se pelo facto de o primeiro elemento ser [+ant] e o segundo [+rec].
Com base no que parece ser uma especialização das variantes fonéticas por contexto e argumentando com a simplicidade e economia dessa descrição, outras hipóteses defendem que, em estrutura subjacente, existe em português uma única vibrante fonológica, /ɾ/ (Mateus & d’Andrade 2000; Rodrigues 2020). Em determinados contextos, esta unidade desencadeia processos fonológicos específicos, dando, então, lugar a manifestações fonéticas diversas. A unidade múltipla que ocorre em posição intervocálica (por exemplo, em varra) resultará da existência, em estrutura subjacente, de /ɾ/ em coda silábica seguido da mesma unidade no ataque da sílaba seguinte. Esta sequência faz com que a 2.ª unidade se realize como múltipla, tal como quando a coda é preenchida por outras consoantes; uma regra de supressão leva ao apagamento da unidade em coda (Mateus & d’Andrade 2000: 16)15.
Independentemente da posição descritiva que se assuma, são várias as unidades fonéticas que pertencem à categoria dos róticos no PE. Por um lado, nos contextos em que ocorre a vibrante simples, encontra-se um tap alveolar ([ɾ]), realização comum com a qual coexistem, no entanto, segundo alguns estudos, outras variantes16. Nos restantes contextos deparamo-nos com um conjunto diversificado de formas, para além das tradicionalmente referidas vibrante múltipla alveolar ([r]) e vibrante múltipla uvular ([ʀ]): na verdade, coexistindo com estas consoantes na atual sincronia do português, são ainda inventariadas uma fricativa velar surda [x] e variantes uvulares de tipo fricativo (a surda [χ] e a sonora [ʁ]) (Mateus & d’Andrade 2000; Jesus & Shadle 2005; Rennicke & Martins 2013; Rodrigues 2015; Rodrigues 2020).
No português europeu, o processo de recuo da vibrante está registado, pelo menos, desde o momento em que Viana (1883) apresenta o tipo uvular como uma variante individual atestada em Lisboa; em 1902, este mesmo autor precisa que tal pronúncia, “viciosa”, se expandia pelas cidades de Portugal. Décadas mais tarde, Barbosa (1962: 212-216) confirma que a variante alveolar perde terreno, tendo desaparecido da fala dos mais jovens na capital; assim, a vibrante uvular, “normal”, será a consoante a considerar, por exemplo, no ensino de português a estrangeiros.
Embora a descrição da situação de variação do séc. XIX sugira, segundo Veloso (2015: 324), um processo de mudança em curso determinado por variáveis sociolinguísticas, Barbosa (1962: 218), considerando a tese da influência francesa dificilmente compatível com o caráter recente da mudança e com a avaliação negativa das variantes posteriores expressa por Viana17, argumenta que só explicações de outro tipo (como as fisiológicas, avançadas no domínio da fonética geral) permitirão compreender o facto de fenómenos de posteriorização ocorrerem igualmente noutras línguas. Coloca, a este propósito, a hipótese de o recuo decorrer de velarização da consoante alveolar (à semelhança do que se regista com a lateral alveolar) que terá desembocado na deslocação do ponto de articulação deste rótico.
Não obstante a relação geográfica que parece existir entre a variante uvular e o português padrão identificado com o dialeto de Lisboa, também Pereira (2020: 146), depois de analisado um conjunto de dados dialetais, defende que o aparecimento de variantes posteriores nas ilhas, em zonas fronteiriças e em falantes conservadores de pontos isolados coloca em causa o caráter inovador dessas realizações e a tese da importação direta a partir da norma padrão.
Pode ainda considerar-se, nesta reflexão, o facto de a mudança de [r] para [ʀ] poder “ter sido uma forma de aumentar a distinção entre dois segmentos próximos articulatória e acusticamente – o [r] e o [ɾ]”, assim potenciando uma distinção pouco produtiva (Pereira 2020: 145). Do mesmo modo, poderá considerar-se, como Veloso (2015), que o fenómeno de recuo da vibrante múltipla se desenvolve num contexto mais amplo de mudança da classe dos róticos no PE, já que há igualmente evidências de alteração de /ɾ/.
Finalmente, na explicação da mudança, também questões percetivas podem ser convocadas: [ʀ] pode ter tido origem, num momento da história do português, “na fase de aquisição, devido a uma articulação deficitária de [r] com uma substituição de base percetiva” (Pereira 2020: 146)18.
Embora a pronúncia alveolar, mais antiga, mantenha vitalidade no espaço do português continental, é à variante posterior (muitas vezes desconsiderando a variabilidade que nesta zona articulatória se regista) que trabalhos de descrição fonológica e obras reguladoras atualmente atribuem o estatuto de pronúncia não marcada no PE. Essa é a avaliação que, como vimos atrás, já Barbosa faz em 1962 e que Teyssier (1989: 49), num manual com objetivos didáticos, igualmente defende:
[para] o [R] intenso existem várias pronúncias […]. Mas aquela que se generaliza […] e que portanto convém adoptar de preferência, consiste em fazer vibrar várias vezes a parte posterior do véu palatino ao nível da parte posterior da língua.
É idêntica a opção tomada também, por exemplo, na transcrição fonética disponibilizada no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa, e em recursos online como Infopédia-Dicionários Porto Editora19 ou o Dicionário Fonético, no Portal da Língua Portuguesa20. A mesma opção é tomada também por Emiliano (2009) que, numa obra onde a pronunciação culta de Lisboa é explicitamente tomada como referência, classifica como dorso-uvular a vibrante múltipla do PE21.
Não surpreende, assim, que também material instrucional concebido para o ensino de português a não nativos inclua na lista das consoantes do português a unidade recuada (transcrita por [ʀ]) e não a alveolar, [r], por vezes apresentada como dialetal (cf., por exemplo, Castelo 2018: 66).
O estatuto de padrão que este tipo de material habitualmente atribui à variante recuada é validado por estudos empíricos (cf., por exemplo, Jesus & Schadle 2005; Rennicke & Martins 2013; Brissos 201522), que confirmam a associação de variantes recuadas à pronúncia de referência, correspondente ao dialeto de Lisboa. No entanto, e embora deem conta da expansão do tipo articulatório posterior, estes estudos permitem igualmente observar uma considerável vitalidade de [r]. Dos dados dialetais que analisa (recolhidos no MADISON –Mapa Dialectal Sonoro–, no ALEPG –Atlas Linguístico e Etnográfico de Portugal e da Galiza– e no ALE –Atlas Linguarum Europae–), Pereira (2020: 157) conclui mesmo que [r] é a variante que predomina no território nacional, encontrando-se as variantes posteriores “com elevada frequência apenas nas regiões insulares, no distrito de Lisboa, e em pontos isolados no centro e norte do país”. Assim, um não nativo (e sobretudo em contexto de imersão) é previsivelmente exposto a um input diverso, no que à articulação desta consoante diz respeito.
No domínio da sua representação escrita (e embora as soluções gráficas sejam contextualmente determinadas) não são totalmente transparentes as relações entre as unidades fónicas e as unidades que as representam no PE: <r> constitui um grafema polivalente, podendo representar, consoante o contexto em que ocorra, a unidade simples (prato) ou a unidade múltipla (rato); por outro lado, a vibrante múltipla é representada diversamente na escrita: por <r>, em início de palavra ou de sílaba interior precedida de elemento consonântico (rato / honra / melro / disrupção); pelo dígrafo <rr>, representação gráfica monovalente, em posição intervocálica (morro).
2.4. Unidades vibrantes nas LM dos aprendentes
O espanhol, o italiano e o francês são, como o português, idiomas neolatinos. No entanto, estas línguas apresentam sistemas de róticos que não só se distinguem do português como se distinguem entre si.
2.4.1. Unidades vibrantes no espanhol
O espanhol é, neste conjunto, o idioma que mais afinidades apresenta com o português, quando considerado o funcionamento das unidades resultantes das vibrantes latinas. Assim, e à semelhança do que acontece na língua portuguesa, estabelece-se, em posição intervocálica interior, um contraste fonémico (cf., por exemplo, pero / perro) que leva alguns fonólogos a considerar a existência de dois fonemas vibrantes, um simples e um múltiplo (Alarcos Llorach 1968: 165; Hualde 2010: 80; Muñoz-Basols et al. 2017: 76, 92). Também nos dois casos, em princípio de palavra e depois de consoante heterossilábica, a vibrante é múltipla. Nas restantes posições (em final de sílaba e em grupo consonântico), o mais comum em espanhol, em pronúncia não enfática, é a vibrante simples, novamente à semelhança do que acontece em português (Hualde 2010: 80-81)23.
Considerando a variedade não marcada do espanhol europeu, não há normalmente referência, no domínio dos róticos, a variação: a cada unidade fonológica corresponde um único alofone, de articulação alveolar ([ɾ] e [r], respetivamente) (Muñoz-Basols et al. 2017: 93). No entanto, dialetalmente e em pontos do espaço não europeu de língua espanhola, registam-se outros tipos articulatórios (surdos ou não apicoalveolares). Do inventário de fones para o fonema simples constam, por exemplo, uma variante ensurdecida e uma variante fricativa alveolar (representada por [ř] nos estudos dialetais); para o segmento fonológico múltiplo encontram-se articulações dorsais (dorsovelares ou uvulares), que podem ser surdas ou sonoras. Esta realização, que se aproxima da de /x/ do norte de Espanha, encontra-se em Porto Rico, mas, como fenómeno idioletal, regista-se também entre falantes de Espanha e de outras áreas. Na República Dominicana e outras regiões do Caribe regista-se ainda uma vibrante apical com pré-aspiração sonora ([ɦr]), correspondendo igualmente a /r/ (Hualde 2010: 81-82).
Deste conjunto de dados, o relevante para nós é o facto de, no caso da unidade vibrante múltipla, as realizações concorrentes não alveolares terem, pelo menos no que se refere ao espanhol peninsular, vitalidade reduzida, não se podendo falar de uma mudança em direção à posteriorização da consoante.
No plano da representação gráfica, a relação entre os grafemas e as unidades fónicas coincide com a do português, estando disponíveis e apresentando o mesmo tipo de distribuição, o grafema <r> e o dígrafo <rr>.
2.4.2. Unidades vibrantes no italiano
O italiano, designação reservada para o idioma baseado na variedade de Florença, é uma das línguas românicas mais conservadoras, sobretudo no plano fónico; já nas variedades regionais faladas no Norte e no Sul de Itália são notórias as tendências inovadoras (Bertinetto & Loporcaro 2005: 132).
No que diz respeito aos róticos, as descrições fonológicas tendem a considerar a existência de uma única unidade, alveolar, segmento que é realizado habitualmente como tap quando breve e como trill quando longo (Krämer 2009: 50)24. Para alguns autores, essa unidade fonológica é /r/ (Canepari 1999: 97; Bertinetto & Loporcaro 2005: 132; Canepari 2005: 131); para outros, é /ɾ/ (Krämer 2009: 50). Como em português e em espanhol, existe uma oposição entre os dois tipos articulatórios em posição intervocálica (cf. caro ['ka:ɾo] e carro ['karo]), sendo então distintivo, e à semelhança do que acontece com várias outras consoantes em posição interior pós-vocálica, o parâmetro da duração (Canepari 2005: 137).
As realizações apicais e alveolares correspondem à pronúncia não marcada da unidade rótica (Canepari 1999: 97-98; Bertinetto & Loporcaro 2005: 133). Tal não impede, no entanto, a coexistência de variantes individuais ou dialetais (nomeadamente uma aproximante uvular, alveolar ou labiodental e um trill uvular, variante mais comum no Norte de Itália) (Canepari 1999: 98; Bertinetto & Loporcaro 2005: 133)25.
A análise da distribuição dos róticos no italiano mostra que a vibrante simples pode surgir em qualquer contexto onde uma unidade consonantal é possível em italiano: em início de palavra, em posição intervocálica (ou entre glide e vogal), em grupo consonântico, em final de sílaba interior, em final absoluto. Já a vibrante múltipla surge unicamente em posição intervocálica, embora uma realização desse tipo possa ocorrer em limite de palavra quando a seguinte se inicia por vibrante ou em início de palavra nos casos em que a palavra anterior termina em vogal26 (Fulgêncio & Bastianetto 1998: 170). Bertinetto & Loporcaro (2005: 133) referem ainda outra situação de variação, observando que, em posição intervocálica, o trill não geminado se reduz habitualmente a um único contacto entre os articuladores, mas que, depois de pausa ou antes de consoante, há normalmente um contacto duplo.
No âmbito deste estudo tem particular interesse o facto de os tipos róticos do italiano apresentarem, em contextos como o de início absoluto, uma distribuição distinta da que é característica do português.
Também no italiano o dígrafo <rr>, que surge unicamente em posição intervocálica, corresponde de modo sistemático à vibrante múltipla (ou, integrando na descrição o parâmetro, relevante no italiano, da duração, à consoante geminada); no entanto, a <r> pode corresponder a vibrante simples em todos os contextos em que esse grafema ocorre.
2.4.3. Rótico(s) em francês
Na língua francesa, e ao contrário do espanhol e do italiano, não se regista contraste fonémico entre unidades róticas. Assim, no sistema fonológico francês existe um único segmento deste tipo, mas a essa unidade corresponde um conjunto complexo de variantes pertencentes ao grupo das vibrantes, das fricativas e das aproximantes; essas consoantes são produzidas nas zonas velar e uvular, com ou sem vozeamento. Nalguns casos, a distribuição dos alofones é determinada pelas posições contextuais, mas aspetos de natureza pragmática (como a ênfase) parecem ter aí também algum impacto (Little 2012)27. No plano gráfico, e não obstante a simplificação do sistema, a vibrante é representada tanto por <r> como por <rr>. Como no português, no espanhol e no italiano, estas opções gráficas são contextualmente distribuídas e o dígrafo <rr>, à semelhança do que acontece nos sistemas ortográficos daquelas línguas, ocorre unicamente entre vogais.
Tradicionalmente, apontam-se como próprias do francês standard (parisiense) as realizações [ʁ], fricativa uvular, e [ʀ], trill uvular (r grasseyé). Dados de produção mostram, no entanto, que a realidade é mais complexa, registando-se uma maior dispersão no plano da atualização entre os falantes parisienses e observando-se, mesmo, que, ao contrário do que alguns estudos indicam, a realização fricativa [ʁ] não é a mais frequente (Little 2012).
Independentemente de outros pormenores articulatórios, as consoantes róticas são unidades [+rec] na variedade francesa de referência, não havendo igualmente registo de uma consoante vibrante simples (tap). No entanto, sobrevivem evidências do processo de posteriorização que afetou esta área do sistema fonológico, coexistindo regionalmente, com as variantes recuadas, uma vibrante múltipla (trill) alveolar (front rolled) ([r]). Não obstante o seu caráter não padrão, esta é uma consoante atualizada por falantes de diferentes províncias28 (Chisse, Filliolet & Maingueneau 2001: 87-88; Price 2005: 34-35; Galazzi & Boulakia 2012: 141-142).
2.5. Hipóteses
A análise contrastiva dos sistemas fonológicos do português (LA) e do espanhol, italiano e francês (LO), no que ao conjunto dos róticos diz respeito, permite colocar algumas hipóteses relativas ao desenvolvimento da competência fonológica destes aprendentes de PLNM. Admitindo que os hábitos articulatórios adquiridos e amadurecidos na LM condicionam o domínio de novos tipos fónicos e que a acuidade percetiva do aprendente não nativo seja também ela afetada pelo conhecimento linguístico prévio, podemos antecipar os seguintes comportamentos:
-
(i) os aprendentes de LM espanhola não terão dificuldades na distinção dos dois grupos de róticos (correspondendo a vibrante simples e vibrante múltipla), mas tenderão a usar o tipo alveolar na realização deste último;
-
(ii) os italianos terão dificuldade na distribuição contextual dos dois tipos de vibrante, não se prevendo dificuldades em posição intervocálica;
-
(iii) os informantes de LM francesa tenderão a não considerar / dominar a diferença entre vibrante simples e vibrante múltipla, privilegiando, nas suas produções, uma variante recuada.
3. METODOLOGIA. ORGANIZAÇÃO E TRATAMENTO DOS DADOS
3.1. Natureza dos dados e amostra
Os dados analisados neste trabalho foram recolhidos no Corpus Oral de Português L2-Coimbra (COral-CO)29. Nesse acervo, encontra-se um conjunto de produções orais de aprendentes adultos de PLNM inseridos em contexto instrucional, bem como as respetivas transcrições.
As produções orais disponibilizadas resultaram da aplicação de um protocolo de recolha através do qual se obtiveram dados relevantes para a descrição das interlínguas dos aprendentes. Para tal, foram apresentados ao informante estímulos diversos, de modo a obter (i) momentos de produção oral (mais ou menos condicionada) e (ii) momentos de leitura oral. Resultam das tarefas de leitura os dados a apresentar neste estudo.
Nas atividades de leitura, o aprendente foi confrontado com duas listas de palavras (uma com 24 e a outra com 49 itens) e um texto, formal e lexicalmente simples, onde se descrevem alguns aspetos da personalidade e rotina de uma figura ficcionada. As listas são constituídas maioritariamente por nomes de uso frequente (sobre a estrutura do protocolo e os critérios de seleção do léxico utilizado nas atividades de leitura, cf. Santos et al., 2015).
Não obstante as suas limitações, o total controlo do instrumento de recolha (por via do recurso a exercícios de leitura) permitiu elicitar um conjunto de estruturas fonológicas (segmentais e/ou prosódicas) previamente definidas; por outro lado, não sendo possível ao informante selecionar o léxico e não havendo outras variáveis (como a situação discursiva) a considerar, torna-se comparável o comportamento dos aprendentes envolvidos no estudo. Há que salientar, no entanto, que, no caso concreto do COral-CO, a transcrição das restantes tarefas, nomeadamente do momento inicial de conversação com o entrevistador (“Entrevista semiestruturada”), permitirá extrair as palavras relevantes e confrontar desse modo o desempenho oral dos aprendentes em situações discursivas distintas.
No que diz respeito às unidades vibrantes, o aprendente foi instado a ler palavras onde a consoante ocorre em início de palavra, em coda silábica (posição interior ou final), em ataque ramificado (grupo consonântico com elemento oclusivo ou fricativo) e em posição intervocálica. No seu conjunto, motivaram-se 95 ocorrências (cf. Quadro 1, onde se assume o português europeu como variedade-alvo).
UNIDADE ALVO | TIPO DE ESTÍMULO | CONTEXTO DE OCORRÊNCIA DO SEGMENTO VIBRANTE | |||
INÍCIO ABSOLUTO | CODA | ATAQUE RAMIFICADO | INTERVOCÁLICO | ||
[ |
Texto | 29 | 13 | 27 | |
Lista | 8 | 0 | 6 | ||
[ |
Texto | 7 | 2 | ||
Lista | 1 | 2 | |||
Total de ocorrências | 8 | 37 | 13 | 37 |
Deste conjunto de ocorrências consideraram-se, na sua totalidade, as correspondentes às palavras listadas. No entanto, e uma vez que assim se obtinha um número reduzido de ocorrências da vibrante múltipla e não se dispunha de palavras com ataques ramificados, associaram-se todos os lexemas do texto que integravam vibrante múltipla e, no parágrafo mais extenso do texto (94 palavras), o conjunto de ocorrências de vibrante em grupo consonântico. Para ilustrar ocorrências de ataque ramificado com elemento fricativo acrescentaram-se as palavras franceses e francesinha e, para avaliar, também na leitura do texto, o desempenho dos aprendentes quando expostos ao par mínimo caro / carro, considerou-se ainda o adjetivo caro.
O corpus para análise ficou então constituído por um total de 35 ocorrências de unidades vibrantes na LA relativas à produção de 28 itens lexicais30; a distribuição dos vocábulos selecionados pelos diferentes contextos fonológicos apresenta-se no Quadro 2 (a cinzento assinalam-se os contextos onde as unidades fónicas em causa não podem ocorrer na língua/variedade-alvo).
UNIDADE-ALVO | TIPO DE ENUNCIADO | CONTEXTO DE OCORRÊNCIA DO SEGMENTO VIBRANTE | |||
INÍCIO ABSOLUTO | CODA | ATAQUE RAMIFICADO | INTERVOCÁLICO | ||
[ |
Texto |
|
|
||
Lista |
|
|
|||
[ |
Texto |
|
|
||
Lista |
|
|
|||
Total de ocorrências | [ |
8 | 8 | 7 | |
[ |
8 | 4 |
Para o estudo, e em função dos dados disponíveis, selecionaram-se 10 informantes de LM espanhola (6 espanhóis, 2 porto-riquenhos, 1 venezuelano e 1 mexicano) e 10 informantes de LM italiana. No caso dos aprendentes com LM francesa, só foi possível analisar dados de 8 informantes, sendo um de nacionalidade mauriciana. Sempre que possível, excluíram-se indivíduos de nível A1 e aqueles que se apresentaram como bilingues. Os 28 aprendentes produziram, no seu conjunto, 97931 formas para estudo.
3.2. Tratamento dos dados
As produções dos informantes não nativos foram organizadas em três “classes”, tendo-se prescindido da identificação de variantes que a literatura, como vimos atrás, assinala: uma dessas “classes” corresponde às articulações simples (representadas por [ɾ]), outra regista as variantes anteriores de vibrante múltipla (correspondendo ao símbolo fonético [r]) e a última, representada por [ʀ], agrupa as realizações recuadas. Cada ocorrência da consoante rótica foi registada como (realização) convergente (RC) ou como divergente (RD) (neste caso, pela troca do tipo de vibrante) com a forma-alvo, considerando os diferentes contextos fonotáticos envolvidos. Nos casos em que a forma-alvo contém uma unidade múltipla, consideraram-se convergentes quer a realização anterior, quer a realização posterior.
Os dados foram, então, registados e quantificados considerando as variáveis referidas (cf. exemplo apresentado no Quadro 3).
INFORMANTE | CONTEXTO DE OCORRÊNCIA DA UNIDADE VIBRANTE | ||||||||||||||||
N.º | LM | Nível | Início absoluto | Coda | Ataque ramificado | Intervocálico | Intervocálico | ||||||||||
RC [r] | RC [ |
FD [ |
RC [ |
RD [ |
RD [r] | RC [ |
RD [ |
RD [r] | RC [ |
RD [ |
RD [r] | RC [r] | RC [ |
RD [ |
|||
107 | It. | A2 |
|
|
|
Com a análise dos dados assim obtidos pretendemos: (i) observar o grau de convergência dos aprendentes no momento de selecionar a vibrante simples ou a vibrante múltipla nos diferentes contextos; (ii) observar o domínio do contraste fonológico que se estabelece entre as duas consoantes em posição intervocálica; (iii) identificar a localização articulatória (anterior ou posterior) com que é produzida a unidade múltipla.
4. RESULTADOS
Uma análise quantitativa do conjunto dos dados mostra-nos que em todos os grupos de aprendentes há, globalmente, mais realizações convergentes do que realizações desviantes (Gráfico 1).
No entanto, destacam-se, pelo muito elevado grau de convergência em todos os contextos considerados, os informantes com LM espanhola; entre estes informantes registam-se valores de produções corretas superiores a 90% e nalguns contextos não há, mesmo, ocorrência de desvios (Gráfico 1). Em contraste com o comportamento bem-sucedido destes aprendentes, encontramos níveis relevantes de desvios quer entre aprendentes com LM italiana, quer entre aprendentes com LM francesa; é no entanto, distinto, como veremos, o comportamento destes dois grupos.
Gráfico 1.
Ainda considerando os resultados globais, observa-se que o contexto que mais promove a convergência com a consoante alvo é o de ataque ramificado: o nível de acerto é de 100% nos aprendentes com LM espanhola, de 98.7% entre os aprendentes com LM italiana e de 85.9% nas produções dos aprendentes com LM francesa. Daí resulta uma média de acerto de 94.9%. Ao contrário, é em início absoluto que se regista um número mais elevado de desvios, correspondendo a um valor médio de 68% as realizações convergentes (Gráfico 2).
Gráfico 2.
5. ANÁLISE
O grupo de aprendentes com LM espanhola revelou-se, então, como aquele cujo comportamento mais convergiu com as formas-alvo, no domínio fonológico em estudo. Na verdade, entre este setor da amostra são residuais os casos de uso de vibrante simples quando a forma-alvo apresenta uma vibrante múltipla e os casos de uso de vibrante múltipla quando a forma-alvo apresenta uma vibrante simples (Gráfico 3).
Gráfico 3.
Os desvios, dos dois tipos e em diferentes contextos, foram cometidos por apenas 4 informantes, 3 deles de nível A2 e um de nível B2. Os lexemas afetados são: rapariga (o único vocábulo ao qual não corresponde nenhum cognato em espanhol), forte, tarte, mar, corar e caro.
Com os aprendentes de LM espanhola contrastam tanto os aprendentes com LM italiana como os aprendentes com LM francesa, já que em ambos os grupos encontramos, como referimos, níveis relevantes de desvios. O padrão observado nos dois grupos não é, no entanto, coincidente.
Os informantes com LM italiana destacam-se do conjunto, antes de mais, pelas dificuldades reveladas em início absoluto (52.5% de ocorrências desviantes). Esse é, aliás, o único caso em que as produções divergentes superam as convergentes (cf. Gráficos 1 e 4). Também em coda silábica é expressivo o número de produções não convergentes com a forma-alvo (41.2%) (Gráfico 4).
Gráfico 4.
É de notar, no entanto, que em início absoluto se obtêm com assinalável frequência consoantes cujo modo de articulação se encontra, na zona alveolar, entre o típico da vibrante simples ou tap e o típico da vibrante múltipla ou trill: trata-se, em todo o caso, de um tipo sonoro facilmente percebido como desviante, pelo nativo. Por outro lado, também em muitas das realizações registadas como convergentes, pela ocorrência de [r], são percebidas variantes enfraquecidas dessa consoante. Tal situação relacionar-se-á com o facto assinalado atrás de, em italiano, o caráter simples ou múltiplo do rótico alveolar poder ser determinado, em início de palavra, pelo elemento que o antecede; na verdade, encontrando-se precedida de vogal (contexto de todas as ocorrências de vibrante em início absoluto no texto lido pelos nossos informantes32), a vibrante italiana fica vulnerável a um processo de raddoppiamento sintattico, que explica a sua realização como múltipla. É igualmente relevante, neste contexto, o facto de as condições segmentais referidas não desencadearem sistematicamente o raddoppiamento sintattico (Canepari, 1986, referido por Fulgêncio & Bastianetto 1998: 170), gerando-se, portanto, situações de variação alofónica no modo de realização da unidade vibrante em ataque inicial.
Entre estes informantes, em coda silábica, contexto ilustrado unicamente pelos vocábulos das listas apresentadas, os desvios traduzem-se tanto na ocorrência de vibrante múltipla alveolar (dominante, nestes casos, mas, por vezes, enfraquecida) como na ocorrência de vibrante recuada (registada em 3 informantes, sendo que num deles esse é o tipo articulatório que ocorre de forma sistemática).
Assinale-se ainda que, em posição intervocálica, é distinto o comportamento dos aprendentes italianos, consoante a forma alvo inclui uma vibrante simples ou uma vibrante múltipla: registam-se desvios (15.7 das ocorrências) nos casos em que a consoante alvo é a vibrante simples (representada por <r>), mas, quando a consoante alvo é a vibrante múltipla (grafada <rr>), o comportamento deste grupo de informantes é totalmente convergente. De realçar ainda que a ocorrência desviante de vibrante múltipla ocorre apenas em 3 dos 7 lexemas analisados: caro (7 ocorrências), corar (3 ocorrências) e altura (1 ocorrência); só num dos casos (uma das ocorrências de caro), essa realização foi obtida na leitura de texto, tendo todos os outros desvios sido registados na leitura das listas de palavras.
No que toca aos aprendentes com LM francesa, destaca-se igualmente o valor de desvios em início absoluto (cerca de 42%). Embora, do conjunto de 27 desvios, 7 tenham sido cometidos pelo aprendente mauriciano, outros 4 informantes, franceses, registam realizações do mesmo tipo, em 3 casos com idêntica expressividade (7 e 6 ocorrências). Como entre os informantes de LM italiana, embora de forma menos frequente, também entre estes se registam ocorrências de [ɾ] que são percebidas como consoantes mais intensas do que o típico tap.
Por outro lado, e embora o valor de ocorrências convergentes seja alto, é entre estes informantes que encontramos o valor mais significativo de desvios em grupo consonântico (14.1%); em todos os casos, é recuada a consoante produzida neste contexto. Há que ter em consideração, no entanto, que só 2 dos 8 informantes exibem este tipo de desvio em ataque ramificado.
São também relevantes os dados relativos à ocorrência de vibrante em posição intervocálica, já que, e ao contrário do que observamos junto dos italianos, é mais significativo o valor das não convergências quando a unidade alvo é a vibrante múltipla (37.5%) do que quando a unidade alvo é a vibrante simples (23.2%) (Gráfico 5)33.
Gráfico 5.
No que toca ao ponto de articulação da vibrante múltipla, aspeto avaliado a partir das realizações convergentes, observa-se, em todos os grupos (e, nalguns casos, na produção de um mesmo indivíduo), uma situação de variação entre realizações anteriores (coronais) e realizações recuadas (dorsais). É, no entanto, distinta a relação que os dois tipos de variante estabelecem em cada caso (Gráfico 6).
Assim, os aprendentes de LM italiana destacam-se dos dois outros grupos, na medida em que mostram uma clara preferência pela variante que coincide com a da sua LM, isto é, com a variante anterior (49 ocorrências de [r] por oposição a 29 produções recuadas). Também nos aprendentes de LM espanhola é a variante anterior (coronal) que regista o maior número de ocorrências; no entanto, diferentemente do que se observa entre os italianos, é muito semelhante o número de realizações posteriores (58 registos vs. 61 ocorrências de [r]). Embora os 2 informantes porto-riquenhos claramente privilegiem a variante recuada, realizações do mesmo tipo são observadas e, em 2 casos, com expressividade, na produção de outros 5 aprendentes de LM espanhola. A observação individual dos dados mostra-nos ainda que o comportamento é tendencialmente consistente, isto é, que a opção por um tipo de variante mostra, na maior parte dos casos, sinais de estabilização.
À semelhança do que se observa nas produções dos informantes de LM espanhola, encontramos valores relativamente equilibrados (35 e 22 casos), junto dos informantes de LM francesa; no entanto, ao contrário do que se observa naquele grupo, são agora predominantes as realizações posteriores.
Gráfico 6.
Finalmente, quando centramos a atenção na leitura das formas caro e carro, itens apresentados tanto no texto como na lista de palavras, observamos que:
-
são 13 os informantes que registam pelo menos uma realização desviante: 7 de LM francesa, 5 de LM italiana e 1 de LM espanhola;
-
o maior número de desvios regista-se na produção do adjetivo, isto é, quando a unidade-alvo é a vibrante simples;
-
na leitura de listas de palavras (situação de produção oral altamente condicionada, mas na qual o aprendente é exposto a formas descontextualizadas) registam-se mais ocorrências divergentes do que na leitura do texto;
-
embora formas divergentes sejam produzidas por um conjunto de 13 informantes, só 6 revelam comportamento desviante na leitura de texto, o que sugere que o uso contextualizado dos lexemas, aliás utilizados na mesma frase (Como não tem carro, conhece bem o metro portuense, pois é um meio de transporte pouco caro), promove a consciência do contraste e, portanto, facilita a correta distinção;
-
são franceses 5 dos 6 aprendentes mal-sucedidos na leitura de texto, no que a este pormenor diz respeito, o que indicia maiores dificuldades no domínio da oposição fonológica entre róticos por parte deste grupo de aprendentes.
6. CONCLUSÕES
Os dados confirmaram a hipótese colocada de que os aprendentes com LM espanhola teriam bons desempenhos na distinção dos dois grupos de róticos (correspondendo a vibrante simples e vibrante múltipla). A semelhança dos sistemas lexical e fonológico das duas línguas, bem como as afinidades na representação gráfica das consoantes róticas, explicarão o altíssimo nível de convergência registado junto destes aprendentes. Fenómenos de transferência positiva explicarão, portanto, o seu desempenho.
Por outro lado, o número expressivo de ocorrência de uma variante posterior só parcialmente confirma a hipótese colocada de que os aprendentes deste grupo tenderiam a usar o tipo alveolar na realização da vibrante múltipla. O recurso, quantitativamente relevante, a variantes posteriores indiciará a maior exposição a esse fone e poderá relacionar-se com o caráter tipicamente urbano (associado aos falantes jovens) que os estudos lhe atribuem. Tratando-se, no caso dos espanhóis, de aprendentes de PLNM cuja variedade nativa padrão contém a vibrante coronal, a maior facilidade articulatória e o caráter menos marcado de [ʀ] não explicarão, por si só, os valores altos de ocorrência de variantes posteriores.
Também no caso dos italianos, os resultados obtidos vão ao encontro da previsão de dificuldades, por parte destes aprendentes, na distribuição contextual dos dois tipos de vibrante. Temos, então, indícios de que também as características da LM explicarão o desempenho divergente e, particularmente, os resultados obtidos em início absoluto, contexto em que a LO e a LA não convergem. Por outro lado, a opacidade da ortografia do português, colocando o leitor perante a dificuldade de identificar o valor fónico que o grafema <r> assume em cada contexto ([r] / [ʀ] ou [ɾ]), colaborará igualmente para estes resultados.
Já em posição intervocálica, o contraste entre o registo de 100% de acertos nos casos em que o alvo era a vibrante múltipla e a ocorrência de algumas realizações desviantes em vocábulos em que o alvo era a vibrante simples leva-nos à modalização da hipótese de que a diferenciação dos dois tipos de róticos neste contexto não deveria constituir um problema para aprendentes com LM italiana.
Nos resultados relativos aos informantes com LM francesa, chama a atenção a ocorrência de desvios em início absoluto. Na verdade, a transferência a partir da LM (sistema fonológico onde o rótico não corresponde a um tap em nenhum contexto de ocorrência) favoreceria uma realização convergente com a forma da língua-alvo nesse contexto. Pode aqui colocar-se a hipótese de a consciência, por parte dos aprendentes, de um sistema fonológico distinto do da LM no domínio dos róticos, isto é, a consciência de uma unidade inexistente na LM, levar a fenómenos de sobregeneralização que favorecem a unidade que o sistema fonológico da LM não integra. Parece confirmar-se, assim, a hipótese colocada de que os aprendentes com LM francesa tenderiam a não considerar / dominar a diferença entre vibrante simples e vibrante múltipla. Os dados relativos ao modo de realização da vibrante múltipla mostram, também, como se previa, que este grupo privilegia, nas suas produções, uma variante recuada, não deixando de ser digno de nota o facto de, com a variante maioritária, coexistir a variante anterior.
A análise de um maior volume de dados permitirá ampliar a investigação sobre este tema, observando, por exemplo, o efeito do processo de instrução formal, em interação com o grau de exposição à variedade europeia do português, no desenvolvimento da competência fonológica dos aprendentes. Poderemos assumir ainda que o diferente nível de constrição a que está sujeito o leitor quando confrontado com listas de palavras ou com textos poderá condicionar a sua produção, daí resultando uma limitação do corpus analisado. Tratando-se, de qualquer modo, de dados resultantes de atividades de leitura, assegura-se coerência interna; fica, no entanto, em aberto a possibilidade de considerar com mais detalhe, em investigações futuras, o impacto relacionado com o tipo de estímulo escrito.
Por outro lado, o confronto com dados do mesmo corpus obtidos noutros momentos da interação com o entrevistador (nomeadamente na entrevista semiestruturada) permitirá avaliar até que ponto não só o condicionamento da produção oral, mas também a competência no domínio da leitura, determinam o formato fónico dos segmentos.
Finalmente, e dado o continuum de variantes atestadas em Portugal, uma análise mais detalhada das produções dos não nativos deverá passar pela análise acústica de espécimenes representativos.
Referências bibliográficas
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Notas
1
Esta pode também ser referida como L1, correspondendo, prototipicamente a uma língua adquirida em fase precoce.
2
Esta pode ser também referida como L2, não considerando a ordem de aquisição / aprendizagem nos casos que envolvem mais do que uma LNM.
3
No domínio da produção e/ou perceção das consoantes líquidas por parte de aprendentes de português como língua não materna, a investigação recente tem-se centrado nos aprendentes chineses e na dificuldade, tradicionalmente associada a estes aprendentes, de distinção das unidades /l/ e /ɾ/ (cf., por exemplo, Vale 2020; Zhou 2017; Zhou 2021). O escopo do presente trabalho é, portanto, distinto.
4
“[Equivalence] classification does not prevent L2 learners from auditorily detecting cross-language phonetic diferences. The SLM predicts that, when L2 category formation is blocked, production of an L2 sound will be modified slowly over time if the L2 sound differs audibly from the L1 sound which it has been equated. The modification will be limited, however” (Flege 2007: 367-368).
5
Este modelo, baseado fundamentalmente no comportamento de indivíduos expostos a input não nativo, mas não experientes, isto é, não envolvidos em processos de aprendizagem de LNM, é transposto para o plano da aquisição / aprendizagem de LNM em Best & Tyler, 2007.
6
“Major’s Ontogeny Model (OM) (1987) for example, proposed a three-part structure underlying IL comprising influences from L1, L2 and universal processes. The OM further stated that these influences would be more salient during different phases of learner development in phonology with L1 transfer initially frequent in the IL and then decreasing as developmental processes increased” (Pickering 2012: 335).
7
“Previous studies investigating the role of markedness, similarities, and differences in L2 acquisition have produced various claims and results. We have attempted to reconcile these conflicting hypotheses and disparate results by confining these notions to rate, rather than to ultimate achievement. We hypothesized that dissimilar phenomena are acquired faster than similar ones and, ceteris paribus, that markedness is merely a mediating factor affecting rate” (Major & Kim 1996: 179).
8
Seguindo Maddieson (1984: 89), usam-se estes dois termos como equivalentes.
9
Considerando apenas as unidades cuja transcrição está prevista no sistema de notação do IPA, Wiese (2011: 748) escreve: “rhotics may be characterized by an alveolar, retroflex, or uvular place of articulation, and by one of five manners ot articulation (trill, tap/flap, fricative, approximant, lateral flap)”. Também Van Hout &Van de Velde (2001: 1) dão conta da dispersão das realizações: “/r/ apears to cover an impressive range of sounds between trills, taps, fricatives and vocalic realisations, ranging in place of articulation from labial to uvular”. A sensibilidade a pequenas variações articulatórias e, consequentemente, aerodinâmicas explicará essa variabilidade dos róticos (Rodrigues 2015: 75).
10
Os resultados de Howson & Monahan (2019), que estudaram a capacidade discriminatória de falantes de inglês expostos a róticos não nativos ([r ɻ ʀ]), sugerem ainda que esta classe apresenta um correlato acústico-percetual.
11
Os dados tratados por Rodrigues (2015) mostram que as crianças tendem a substituir o alvo /ʀ/ por unidades [-soant] (nomeadamente oclusivas), nunca se registando semivocalizações, estratégia muito frequente quando o alvo é /ɾ/. Assim, Rodrigues (2015: 333) conclui que “o rótico é tratado, de modo preferencial, como um segmento [-soante]” (para uma revisão de literatura sobre o processo aquisitivo dos róticos em português L1, cf. Pereira 2020: 41-46).
12
“[r] presents both the first and second language learner with highly significant difficulties. Such acquisitional difficulties, however, are readily explained: 1.) from a markedness perspective, [r] is a highly-marked segment; and 2.) articulatorily, the production of [r] requires considerable articulatory effort which involves both extreme muscular tension and a large quantity and expiratory speed of expelled air across the apex of the tongue” (Hammond 2000, apud Kostakis 2007: 2).
13
Abstraímos, nesta formulação, da diversidade fonética associada à unidade fonológica: a expressão vibrante / unidade “múltipla” referirá tanto as consoantes efetivamente vibrantes (alveolar e uvular) como as diferentes variantes recuadas recenseadas na literatura.
14
Encontram-se ainda referências ao aparecimento de uma vibrante múltipla alveolar em coda silábica antes de elemento nasal ([m] – cf. arma - [n] – cf. carne) ou alveolar ([l] – cf. Carlos). Viana (1892: 81) regista, nestes casos, uma consoante [
15
Um argumento a favor desta interpretação é o facto de nenhuma proparoxítona apresentar uma vibrante múltipla em sílaba final. Na verdade, o padrão proparoxítono não é compatível com a existência de coda (neste caso, preenchida por /ɾ/) na sílaba medial (Mateus & d’Andrade 2000: 16).
16
É referida a existência de uma variante desvozeada, de unidades aproximantes e, geograficamente circunscrita, de uma consoante retroflexa (Jesus & Shadle 2005; Rodrigues 2015; Veloso 2015).
17
A avaliação negativa de Viana não é incompatível com uma outra valoração da variante, que terá motivado os falantes inovadores. Na verdade, são muitos os exemplos de condenação, no contexto de reflexões metalinguísticas, de variantes que acabam por se generalizar na comunidade (Santos 2008).
18
A partir daqui o autor coloca duas hipóteses: i) essa posteriorização ter-se-á sedimentado em alguns lugares, tendo-se depois difundido graças ao português padrão; ii) as duas consoantes são variantes em quase todo o território nacional, há muito tempo em competição (variação estável) (Pereira 2020: 146).
19
Cf. https://www.infopedia.pt/.
20
Cf. http://www.portaldalinguaportuguesa.org/?action=fonetica&page=present.
21
Emiliano (2009: 255) observa também que a vibrante alveolar múltipla [r] “ocorre ainda no português de Lisboa, sendo no entanto notória a predominância absoluta extensional da múltipla uvular, que se encontra aliás muito difundida no território nacional”.
22
Cf. síntese de outros trabalhos em Pereira (2020: 49 e ss.).
23
Uma análise acústica da fala espontânea permite, no entanto, observar uma situação de grande complexidade fonética, sendo identificadas, além da vibrante simples e da vibrante múltipla, variantes de tipo aproximante e fricativo (Ortiz 2012).
24
Canepari (2005: 131) relaciona o aparecimento dos dois fones alveolares com a posição do acento, escrevendo que “in stressed syllables, before or after the syllabic nucleus we find a trill, [r] (…) whereas in unstressed (or half-stressed) syllables, we have a tap. (…) even for /rr/, the choice between [r, ɾ], depends on the position of the stress”.
25
Canepari (2005: 131) refere, mesmo, a existência de “various types of accents with a <French r>”.
26
Este processo fonético, não sistemático, é designado de raddoppiamento sintattico.
27
Nalguma literatura, associa-se a realização vibrante ([ʀ]), registada como pouco comum, ao discurso enfático e ao canto (Little 2012: 8, 20).
28
Tendo em consideração a diversidade do idioma, Fagyal, Kybbee & Jenkins (2006: 46) referem que, além da consoante /ʁ/, fone típico dos grupos consonânticos (“e.g train /tʁε˜/ (…), après ` /apʁε/”), no conjunto das variedades do francês se encontram ainda, mas menos frequentemente, a aproximante velar (/ɰ/) e a fricativa uvular sonora (/χ/), que frequentemente substitui o trill uvular em posição intervocálica. “The trilled [r], which prevailed until the seventeenth century when it began to be replaced by the uvular [ʀ] of today's Standard French, is still heard in many rural areas, namely Burgundy, Jura, Vosges, the Midi (as well as outside France, for example in Quebec)” (Battye, Hintze & Rowlett 2000: 266). Sobre a distribuição geográfica e social das variantes de R no espaço de língua francesa, cf. também Fagyal, Kybbee & Jenkins (2006: 46).
29
Este recurso encontra-se disponível em: http://teitok2.iltec.pt/coralco/pt/index.php?action=home.
30
Altura, arma, caro, carro, corar, (correr) corre, desempregado, diretor, emprego, (francês) franceses, francesinha, forte, fortíssimo, mar, metro, padeiro, praia, rapariga, rapaz, recomendar, ribeira, rico, rua, Sara, tarde, tarte, terra, transporte.
31
Um dos informantes de LM italiana não produziu uma das palavras alvo, razão pela qual não se obtiveram as 980 ocorrências previstas.
32
Num dos casos, a vogal que antecede a consoante vibrante é nasal.
33
Confirma este padrão o comportamento de uma informante de LM francesa que, na leitura do texto, produziu a alveolar simples em caro (assim se registando uma ocorrência convergente) só depois de, numa primeira tentativa, ter produzido a vibrante recuada.
Autor notes
aimas@fl.uc.pt
ISSN: 1889-2566
Vol. 14
Num.
Año. 2022
Competência fonológica em português língua não materna: os róticos
Isabel A. Santos
Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada (CELGA-ILTEC), Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (Portugal)
Nota de copyright
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