Sumário
- 1.
Introdução.
- 2.
Metodologia.
- 3.
Perífrases de estar + gerúndio e de estar + a + infinitivo ocorrentes na primeira novela contemporânea portuguesa.
- 3.1.
Análise linguística em instrumentos da época de publicação da novela.
- 3.2.
Análise linguística com conceitos metalinguísticos atuais ou atualizados.
- 3.2.1.
Verbo auxiliar progressivo (nas suas formas estar e estar + a) + descrições de estruturas básicas de processos.
- 3.2.2.
Verbo auxiliar progressivo (na sua forma estar) + descrições de estruturas básicas de processos culminados.
- 3.2.3.
Verbo auxiliar progressivo (nas suas formas estar e estar + a) + descrições de estruturas básicas de culminações.
- 3.2.4.
Verbo auxiliar progressivo (na sua forma estar) + descrições de estruturas básicas estativas.
- 3.2.5.
Breves notas conclusivas.
- 3.2.1.
- 3.1.
- 4.
Considerações finais.
Contents
- 1.
Introduction.
- 2.
Methodology.
- 3.
Periphrases of estar + gerund and of infinitive prepositioned by a occurring in the first Portuguese contemporary novel.
- 3.1.
Linguistic analysis in instruments from the time of publication of the novel.
- 3.2.
Linguistic analysis with current or updated metalinguistic concepts.
- 3.2.1.
Progressive auxiliary verb (in its forms estar and estar + a) + descriptions of basic process structures.
- 3.2.2.
Progressive auxiliary verb (in its estar form) + descriptions of basic structures of culminated processes.
- 3.2.3.
Progressive auxiliary verb (in its forms estar and estar + a) + descriptions of basic structures of culminations.
- 3.2.4.
Progressive auxiliary verb (in its estar form) + descriptions of basic stative structures.
- 3.2.5.
Brief conclusive notes.
- 3.2.1.
- 3.1.
- 4.
Final considerations.
1. INTRODUÇÃO
Há alguns anos, formulámos e apresentámos, publicamente, a hipótese de que – no discurso metalinguístico português – a primeira ocorrência da construção constituída pelo verbo estar + preposição a + infinitivo tivesse surgido no ano de 1789 (). Ainda no âmbito do referido discurso, numa outra obra do mesmo autor, concluída em 1802 (: 127, nota (9)), detetámos a ocorrência da covariância entre a perífrase formada pelo verbo auxiliar estar + preposição a + um verbo principal no infinitivo e a construção perifrástica integrante de uma forma do verbo auxiliar estar + um verbo principal marcado por gerúndio.
Pouco tempo depois, foi-nos lançado o desafio de escrutinar o índice de uso do que, em Português Europeu, veio a ser a covariante construcional (estar + a + infinitivo) da perífrase mais antiga acima indicada (estar + gerúndio) na primeira novela portuguesa contemporânea – Viagens na minha Terra, de Almeida-Garrett (1799-1854) –, cuja segunda publicação, em 1846, em dois tomos, na “Typographia da Gazeta dos Tribunaes” (: : Rosto), se seguiu a uma publicação fragmentada na Revista Universal Lisbonense , entre 1843 e 1846:
A nosso rôgo, e por fazer mais digna da sua reputação ésta segunda publicação da obra, o auctor prestou-se a dirigi-la elle mesmo, corrigiu-a, additou-a, alterou-a em muitas partes, e a illustrou com as notas mais indispensavels [sic!] para a geral intelligencia do texto: de modo que sahirá muito melhorada agora do que primeiro se imprimiu. ([Nota dos Editores], apud Almeida-Garrett, 1846a, VIII)
O nosso estudo inclui, também, as Notas da lavra do Autor.
2. METODOLOGIA
Por meio da técnica de análise documental e do recurso ao cômputo manual, escrutinámos a obra literária referida, de Almeida-Garrett, publicada, em dois tomos, em 1846. Também nos socorremos da sua edição crítica, coordenada por Ofélia Paiva Monteiro, a fim de averiguarmos da existência, ou não, de variantes sintáticas distintas, relativamente a cada uma das ocorrências por nós estudadas, em textos manuscritos anteriores à publicação autónoma de 1846, cujo primeiro Livro apresentou dois «estados», tal como refere a eminente investigadora, a partir de indicações fornecidas por Luís Abel Ferreira ().
Levámos, naturalmente, em linha de conta o princípio laboviano de que, a existirem covariantes de uma dada variável linguística, tais covariantes teriam de transmitir, num dado contexto, exatamente a mesma atualização de significado, isto é, o mesmo sentido, enquanto atualização concreta da representação semântica em causa (), referindo, assim, no plano das frases que incluem essas variantes, um mesmo estado de coisas e apresentando, portanto, um mesmo valor de verdade.
Os dados coligidos foram sujeitos à análise do modo como se realizou a variável sintática referente à expressão do produto da operação exercida por meio do verbo auxiliar progressivo, mediante as formas de estar (+ gerúndio) ou/e de estar + a (+ infinitivo), sobre estruturas básicas identificadoras de processos, de processos culminados, de culminações e de estados.
Tratando-se de uma obra literária da primeira metade de Oitocentos, tivemos em consideração o que a propósito das construções em análise indicavam instrumentos de normalização linguística publicados, em Portugal, em 1831 e em 1850, ou seja, antes e depois da publicação da novela, dado que os estudiosos da língua portuguesa à época apresentavam descrições ou explicações que, não sendo sempre coincidentes, antecipavam questões que só recentemente se têm vindo a dilucidar de forma clara relativamente ao Português: refiro-me às formas de representação linguística do modo como as situações se inscrevem no tempo, ou seja, à sua estruturação temporal intrínseca, e à extrínseca (e complementar) localização temporal relativa dessas estruturas.
Posteriormente, aplicámos aos extratos coligidos instrumentos operatórios atuais ou atualizados que nos permitiram consolidar conclusões determinantes suscetíveis de atestar a existência de variação linguística e, eventualmente, de mudança em curso, designadamente, (i) o conceito de perífrase verbal, (ii) a noção de verbo auxiliar, (iii) a distinção metodológica entre aspeto lexical, aspeto gramatical e composição aspetual (aspeto composicional, ou aspeto proposicional), para a qual concorre o chamado aspeto da perífrase verbal, e (iv) o conceito de comutação aspetual.
Os extratos foram numerados segundo a ordem da sua ocorrência e em função da realização da variante constituída pelo verbo auxiliar estar+ verbo principal (pleno ou auxiliado) no gerúndio (em primeiro lugar) e da variante constituída pelo auxiliar estar + a + verbo principal (pleno ou auxiliado) no infinitivo (em segundo lugar). Adicionalmente, todas as ocorrências detetadas foram reunidas num anexo.
3. PERÍFRASES DE ESTAR + GERÚNDIO E DE ESTAR + A + INFINITIVO OCORRENTES NA PRIMEIRA NOVELA CONTEMPORÂNEA PORTUGUESA
No Livro Primeiro (1846a), foram detetadas 12 (doze) ocorrências da construção perifrástica que inclui uma forma do verbo auxiliar estar + verbo principal no gerúndio, tendo sido encontradas apenas oito (8) ocorrências dessa construção no Livro Segundo (1846b).
Quanto às ocorrências da construção perifrástica constituída por uma forma do auxiliar estar + a + verbo principal no infinitivo, encontrámos seis (6) identificadas no Livro Primeiro (1846a) e duas (2), no Livro Segundo (1846b).
3.1. Análise linguística em instrumentos da época de publicação da novela
Em termos de descrição ou explicação metalinguística explícita, à época, registam-se entendimentos distintos.
Por um lado, por exemplo, Francisco Solano Constancio (1777-1846), em 1831 (doze anos antes dos primeiros registos da novela contemporânea sob escrutínio), considera, na senda de Moraes Silva, que, enquanto verbo auxiliar, “Estar, com os gerundios dos verbos, indica continuidade, prolongação de acto, estado ou acção”, ilustrando essa afirmação com os exemplos: “Está sendo o alvo do publico”, “Estou lendo, escrevendo, pensando, pondo, rindo, ouvindo, pedindo”, registados como “expressões equivalentes a – estou a ser, a ler, a ouvir, etc.” (; ). Verificamos, assim – feitas as devidas adequações na aplicação dos instrumentos teóricos –, que se apresentavam construções envolvendo estar enquanto verbo auxiliar de predicadores verbais (verbos plenos) ou de um verbo de atribuição (como parece ser o caso de ser) de um predicador nominal. Embora os dados sejam parcos, Constancio parece aperceber-se da existência de tipos diferentes de situações (que classifica, sem explicações, de atos, estados ou ações ), bem como do resultado da intervenção do verbo auxiliar progressivo marcado pelo presente do indicativo, a saber, continuidade, prolongamento (das situações), desembocando, portanto, no que, atualmente, consideramos constituir uma leitura estativa não habitual (). Constancio não desconhecia, certamente, a obra gramatical de Moraes Silva, republicada, aliás, no ano em que o autor pernambucano falece. É este lexicógrafo e gramático que, em 1802, distingue entre variações verbais associadas aos tempos ou épocas, variações verbais temporais relativas e variações combinatórias decorrentes de “[querermos] declarar mais o estado da acção significada pelo verbo”: assim, por exemplo, se a dita ação fosse “imperfeita, e incõpleta”, usar-se-ia o verbo estar + gerúndio , “v. g. estou escrevendo, lendo. estava, estive, estivera, estarei lendo, escrevendo” (), a que o autor faz equivaler estar, como verbo auxiliar, seguido da preposição a + infinitivo uma única vez nesta obra (, nota (9)).
Por outro lado, igualmente a título exemplificativo, em 1850 (cerca de quatro anos depois da publicação autónoma da obra literária em causa), Francisco Ferreira de Andrade Junior (1806-1881), que assere que, então, “[se usava] […] estar [como verbo auxiliar seguido de gerúndio], quando a continuação da existencia [levava] envolta a idea de permanência” (), entende que a construção perifrástica estar + a + infinitivo apenas formatava um valor de ‘proximidade tendencialmente acentuada de uma situação futura’: “estar seguido de egual infinitivo, ligado á auxiliar pela preposição a ou para” exprime “[e]xistencia perfeita no pensamento e futura na execução” (). E acrescenta: “Se a proximidade que queremos exprimir é maior, o infinito que denotar a existencia futura será ligado á auxiliar pela preposição a”, observação ilustrada pelo único exemplo fornecido, a saber, “Está a rebentar uma guerra” ().
Digna de ênfase é a mudança de estatuto metalinguístico que o verbo estar assume no quadro da observação acima transcrita da autoria de Andrade Junior, relativamente ao apontado, por , a propósito do valor indicado. Com efeito, este assinalara, no âmbito do tratamento da chamada “Sintaxe da Regencia”, a possibilidade de se formatar dessa maneira esse significado, considerando, nesse enquadramento, por meio do exemplo “está a partir”, que a preposição a indicava, aí, “a proximidade do termo”, ou seja, estabelecia uma relação entre o dito termo e o seu antecedente, mediante o uso de um verbo que, nesse cotexto, era interpretado como neutro. assume esse termo como herdado da tradição metalinguística:
Verbos neutros, i. é, nem activos nem passivos, chamão os Grammaticos áquelles, que não significão acção: v.g. “O vento dorme, o mar e as ondas jazem: O Cisne iguala a neve na candura:” ou que significão uma acção, que fica no mesmo sujeito, de quem se affirma: v.g. eu ando, salto, respiro, corro, vivo, [a que acrescenta estremecer, chover, gear, nevar, abrasar, parecer, voar, subir, avistar, arrostar, reverdecer, reflorescer, ir, vir, entrar, sair, parar, ficar, estar] &c.[]
Constancio (1836: 717, col. 1) parece partir dessa definição, retomando dois dos exemplos aduzidos por Moraes Silva – dormir e viver –, a que adiciona morrer, embora restrinja o conceito (segundo os exemplos), pois sinonimiza a designação de neutro com a de absoluto, sem mais esclarecimentos, que deixam, por isso, suspensa a extração de uma sólida ilação sobre o seu pensamento a respeito desta questão metalinguística.
Estão, assim, representadas, em obras metalinguísticas contextualmente delimitadoras, a montante e a jusante, do aparecimento da novela garrettiana em apreço, as seguintes noções associadas ao uso de estar + gerúndio e de estar + a + infinitivo:
1.º - a montante, a ideia de que construções que incluíam o verbo auxiliar estar + gerúndio ou o verbo auxiliar estar + a + infinitivo indicavam o estado imperfeito e incompleto de uma situação () ou a continuidade, ou o prolongamento, de uma situação ();
- a jusante, a ideia de que apenas a construção com o verbo auxiliar estar + gerúndio dava conta de continuação permanente de uma situação ();
2.º - a montante, a ideia de que a construção estar + a + infinitivo não constituiria uma perífrase quando a preposição significasse ‘proximidade de um termo’, incluindo, então, o verbo neutro, ou pleno, estar e um outro verbo pleno que se assumiria como termo da relação instituída pelo significado da preposição a ();
- a jusante, a ideia de que a construção com o verbo auxiliar estar + a + infinitivo apenas formatava um valor de ‘proximidade tendencialmente acentuada de uma situação futura’ ().
Em conclusão, para Moraes Silva e Constancio, a construção integrativa do verbo auxiliar estar + gerúndio concorre para a formação do que designam por tempos compostos dos diferentes modos verbais (: 124, 126, 127; cf. ). Quanto à interpretação do valor da construção estar + a + infinitivo, ora se apresenta como equivalente da construção estar + gerúndio, considerando-se estar um verbo auxiliar (; ), ora se apresenta como indicativa de ‘proximidade de um termo’, fruto do significado da preposição, classificando-se estar ou como verbo neutro e, portanto, pleno (), ou como verbo auxiliar que “[perde] nesse emprego a sua significação propria”, pelo que só “por analogia” com essa significação “exprime os diversos pontos de vista da existencia de um sujeito” ().
3.2. Análise linguística com conceitos metalinguísticos atuais ou atualizados
Constatámos que, nas construções perifrásticas em que ocorre na obra garrettiana em apreço, o verbo estar, nas duas formas que assume, integra aquilo que chama de “‘núcleo’ del predicado”, apresentando o estatuto de verbo auxiliar.
Seguindo de perto o sistematizado por e por relativamente ao Espanhol, consideramos que, nas construções perifrásticas do Português, se tem verificado (i) que o verbo auxiliar e o verbo auxiliado conformam a união, direta ou indireta, de dois ou mais verbos “que constituyen un solo ‘núcleo’ del predicado” (); (ii) que é o verbo auxiliado, ou seja, a forma verbal marcada por gerúndio ou a forma verbal de infinitivo preposicionado, que convoca uma dada estrutura argumental (; ) ou que constitui um verbo de atribuição de um predicador não-verbal suscitador de uma dada estrutura argumental; (iii) que o verbo auxiliar se apresenta, em vários casos, esvaziado do seu significado lexicale que se gramaticaliza, por passar a transportar apenas significados gramaticais de pessoa (e, eventualmente, de plural), de tempo e de modo, servindo, juntamente com o gerúndio ou com a preposição a + infinitivo, para dar conta do aspeto global da proposição ou da predicação contida em frase, para que concorre, determinantemente, o aspeto da perífrase.
A propósito do facto de, em Português, a expressão do aspeto encontrar “o seu melhor meio de expressão” () nas perífrases verbais, observa que tais perífrases “funcionam como verdadeiros sintagmas gramaticais, pertencentes a paradigmas próprios, portadores dos diferentes conteúdos gramaticais aspectuais, primariamente, e ‘efeitos’ (ou ‘sentidos’) – estes, quase sempre, decorrentes dos ‘contextos’ em que tais construções se encontram, mas também da significação interna do verbo, isto é, do seu ‘carácter aspectual’ –, secundariamente”.
Tal como salienta , que desenvolve o trabalho de , socorrendo-se, como afirma, de uma proposta de Marion Johnson,
[i]f it is necessary to distinguish the two uses of aspect, we can […] distinguish the aspectual class of a verb (the Aristotelian class to which the basic verb belongs) from the aspectual form of the verb (the particular aspect marker or markers it occurs with in a given sentence).
O segundo termo da distinção proposta pode assumir, precisamente, a forma do que denomina de auxiliary verb construction, que define como “a mono-clausal structure minimally consisting of a lexical verb element that contributes lexical content to the construction and an auxiliary verb element that contributes some grammatical or functional content to the construction”.
O valor aspetual de uma perífrase verbal e, consequentemente, de uma predicação tem como ponto de partida o apuramento do significado lexical do predicador nela interveniente, dependendo, adicionalmente, entre outras coisas, da eventual configuração e da natureza do(s) argumento(s) desse predicador (em particular, da sua estrutura de quantificação ou determinação), da presença de algum adjunto (ou circunstante), de operadores de negação, de certas expressões adverbiais ou preposicionais temporais ou locativas, do tempo e do modo verbais, do verbo auxiliar de operação aspetual, que pode obrigar o seu “input” a ser de uma classe aspetual específica e que concorre para a realização de operações de comutação aspetual no âmbito de uma rede de transições ou rede aspetual, tal como proposto em e em ; : 17; ), razão por que “os tipos aspectuais [devem ser] atribuídos, não aos predicados [ou predicadores], mas às predicações” ():
O aspeto lexical, também designado tradicionalmente “Aktionsart”[], consiste no perfil temporal interno básico de uma situação, isto é, na sua classe aspetual básica […].
A classe aspetual básica de uma frase, obtida através da informação lexical, pode, no entanto, sofrer alterações de vária ordem […], dando origem a perfis aspetuais derivados. ()
Dando conta das propostas de Frank Vlach e de Marc Moens, assinala que esses autores, na década de 80 do século xx, “concebem o [verbo auxiliar] Progressivo [manifesto sob as formas estar e estar + a, sob nossa análise] como um operador aspectual, ou seja, como um elemento semântico cuja principal função é a de ‘converter’ um dado tipo [aspetual] de situação num outro diferente”.
Para “a definição de um sistema de Aktionsart” em Português ou do que propõe denominar de “cinemática das situações”, organiza, com base em propostas avançadas para o Inglês, dois tipos básicos de critérios suscetíveis de dar conta da estruturação intrínseca das situações: os critérios de base ontológica, em especial, o da terminatividade, ou telicidade (com ou sem pontualidade), e o da homogeneidade; e os critérios de base distribucional que permitem distinguir as quatro classes relevantes de situações (estados, processos, processos culminados e culminações). Filtrando a aplicação ao Português dos testes propostos na literatura sobre o Inglês, em especial por e , propõe um quadro simplificado que, resultando de uma combinação de critérios, reduz ou simplifica o sistema de traços distintivos das classes de situações inicialmente propostas por , por via da intervenção adicional de um critério inédito, que designa, provisoriamente, de “subsistema da velocidade” e que é especialmente útil para isolar processos e processos culminados.
Apresentando a primeira novela contemporânea portuguesa duas covariantes perifrásticas que incluem duas formas (estar ou estar + a) de um verbo auxiliar progressivo de verbos principais conformadores ora de predicadores verbais, ora, conforme sucede num caso, do que consideramos constituir um verbo de atribuição de um predicador não-verbal, quisemos apurar o valor aspetual global, enquanto produto final (), das proposições ou das predicações formatadas nas frases que contêm as referidas perífrases e que são atualizáveis num dado contexto. Para tal, analisámos as estruturas aspetuais básicas envolvidas, segundo a interação composicional dos significados dos elementos linguísticos que as compõem, e assinalámos o resultado da composição aspetual.
Há que dizer que o Narrador-Autor privilegia a variante mais antiga: verbo auxiliar estar + verbo principal no gerúndio. O uso dessa perífrase é atribuído ao próprio Narrador-Autor – em (1), (2), (3), (4), (5), (6), (7), (8), (9), (11), (12), (13), (14), (16) e (20) –, a duas personagens de relevo, Carlos – (17), (18), (19) – e Georgina – (15) –, de quem se espera a adoção do que se aproximaria da norma culta da língua portuguesa à época, e, em (10), a um soldado constitucional. A este propósito, não podemos ignorar que, em 1832, após o seu segundo período de exílio, o próprio Almeida Garrett “[integrara] a expedição liberal comandada por D. Pedro”, “[tendo-se incorporado] no Batalhão Académico” (), facto que nos leva a pensar na possibilidade de o Narrador-Autor se identificar, até certo ponto, com aquela personagem, independentemente das origens e da posição social, que lhe não são adscritas.
Também não é despiciendo, por sua vez, o facto de a variante perifrástica constituída por verbo auxiliar estar + a + verbo principal no infinitivo ocorrer, igualmente, de forma prevalente, no seio do discurso do Narrador – em (22), (23), (24), (25), (26) e (27) –, num ato de fala atribuído a uma personagem apresentada como sendo, em (21), um ilhavense, elemento claramente representativo de uma população essencialmente dedicada, por séculos, à atividade piscatória, a que aliava outros tipos de labor, e num ato de fala, em (28), atribuído a uma personagem não associada a essas atividades, Georgina. Pode, por isso, dizer-se que esta última construção constitui uma opção sintática secundária – dado o menor índice percentual de ocorrências – com que o próprio Narrador-Autor veicula as suas intenções narratológicas, servindo, igualmente, o propósito de sinalizar um registo mais coloquial, evidenciado por entidades ficcionalmente representativas de estratos socioeconómicos e culturais distintos. Variáveis externas independentes, como o estatuto socioeconómico e o estatuto sociocultural parecem, assim, constituir fatores condicionantes da opção pela variante em causa. Não obstante ser menor o índice de utilização desta variante, a verdade é que não parece recair nela qualquer estigma, tanto mais que é apresentada como difundida por diferentes grupos socioeconómicos e culturais.
3.2.1. Verbo auxiliar progressivo (nas suas formas estar e estar + a) + descrições de estruturas básicas de processos
A partir da adaptação ao Português de propostas de Frank Vlach e de Marc Moens (), o verbo auxiliar progressivo, sob as formas de estar e de estar + a, tem sido considerado um operador que, no interior de uma rede aspetual, tem a função central de converter, diretamente, num estado progressivo um processo – classe aspetual tipicamente não estativa e atélica, ou seja, sem culminação intrínseca, que descreve uma “[situação] que, quando se [verifica] num intervalo I se [verifica] em todos os subintervalos não-singulares de I ou, mais propriamente, em todos os subintervalos I que não são menores que os intervalos mínimos de realização da situação […]” ().
Na obra escrutinada, as expressões situacionais de processo são as que em maior percentagem se combinam com as formas do verbo auxiliar progressivo, surgindo em construções de estar + gerúndio e de estar + a + infinitivo.
Nos trechos (3), (7), (8), (10), (12), (14), (15) e (25), cujas estruturas predicativas básicas descrevem processos a partir de FALAR, VER [(7), (8) e (10)], NOTAR contornos, FAZER coisas pouco próprias e DEIXAR fazer coisas pouco próprias (há mais de um século), FAZER um esforço d’alma, DESSANGRAR-SE, a interação dos progressivos com o tempo presente e o modo indicativo parece proporcionar uma leitura aspetual não habitual das predicações em que figuram, apontando para o decurso de estados (progressivos): independentemente do seu início e do seu fim, tal decurso sobrepõe-se, em cada caso, ao momento da enunciação.
- (3)
“[…] Ja se vê que em nada d’isto ha a minima allusão ao feliz systema que nos rege: estou fallando de modestia, e nós vivemos em Portugal. […]” (1846a: 34)
- (7)
“[…] Inda o estou vendo , coitado! o pobre C. do S., nobre, espirituoso, cavalheiro […].” (1846a: 88)
- (8)
“[…] Inda o estou vendo , ja sexagenario […].” (1846a: 88)
- (10)
“[…] – ‘Não é ninguem,’ respondeu um soldado que era dos antigos no pôsto: ‘ninguem que importe; é a menina dos rouxinões. Estou vendo que adormeceu no seu poiso costumado.’” (1846a: 200)
- (12)
“[…] Pódes responder-me da parte que tomará ámanhan na tua existencia a imagem da donzella que hoje contemplas apenas com olhos de artista, e lhe estás notando como em quadro gracioso, os finos contornos, a pureza das linhas, a expressão verdadeira e animada? […]” (1846a: 231-232)
- (14)
“[…] Não se descreve por outro modo o que ésta gente chamada govêrno, chamada administração, está fazendo e deixando fazer ha mais de seculo [sic] em Santarem. […]” (1846b: 32-33)
- (14)
“[…] Não se descreve por outro modo o que ésta gente chamada govêrno, chamada administração, está fazendo e deixando fazer ha mais de seculo [sic] em Santarem. […]” (1846b: 32-33)
- (15)
“— […] — ‘Carlos, não abuses da pouca saude que ainda tens. O esfôrço d’alma que estás fazendo póde-te ser prejudicial. […]’” (1846b: 70.)
- (25)
“[…] A ponte da Asseca corta uma varzea immensa que hade ser um vasto pahul de hynverno: ainda agora está a desangrar-se em agua por toda a parte. […]” (1846a: 85.)
Já a estrutura (21), no âmbito da qual o verbo auxiliar progressivo incide sobre uma estrutura básica de processo desencadeada por SACHAR, apresenta duas situações que se correlacionam, num mesmo contexto, por meio da expressão descontínua tão depressa...como. Esta expressão, embora apresente similaridades formais com o conector descontínuo tanto...como, usado para a veiculação de um valor de coordenação copulativa (), permite inferir, também, um valor de coordenação disjuntiva. Independentemente do cálculo desse valor, importa a contribuição do advérbio depressa, no âmbito da expressão adverbial tão depressa, no que parece resultar numa certa quantificação das situações descritas na estrutura complexa, por se poder inferir que tais situações, correlacionadas entre si, são repetíveis, de forma alternada, em cada dia de trabalho (< todos os dias úteis, tão depressa estamos a sachar como vimos por aí abaixo >). Daí a leitura do caráter costumeiro que se intenciona comunicar.
- (21)
“ – ‘[…] Mas nós, pe no barco pe na terra, tam depressa estamos a sachar o milho na charneca, como vimos por ahi abaixo com a vara no peito, e o saveiro a pegar n’area por não haver agua… […]’” (1846a: 10)
Por seu turno, a estrutura oracional que formata a predicação desencadeada por VER, em (4), inclui o seu segundo argumento (ou argumento interno) na posição de Sujeito sintático – “as vinhas e olivedos circumstantes”, representação sintagmática de um conjunto de entidades do mundo gramaticalmente formatadas pela 3.ª pessoa + plural na forma conjugada do verbo auxiliar progressivo estar –, em função da presença de “se”, que, ao assinalar a voz passiva sintética, se antepõe à perífrase, afetando-a na sua globalidade. Com efeito, entendemos que se aplica ao Português o que identifica no Espanhol: “En los empleos perifrásticos, la pasivización (con ser o pasiva refleja […]) afecta al conjunto formado por el verbo flexionado y el gerundio, convirtiendo en sujeto al complemento directo, lo que no ocurre en los casos no perifrásticos”. Ainda, a ocorrência da forma de advérbio “quasi”, em interação com o auxiliar progressivo marcado pelo tempo presente e pelo modo indicativo, pode ou anunciar a adição ao processo de uma culminação iminente que logo desapareça, por comutação aspetual, para que o auxiliar progressivo possa ter como “input” um processo que dê lugar a um estado, ou tão só representar a iminência temporal extrínseca do estado enquanto mutação resultante de um processo ().
- (4)
“[…] Uns poucos de pinheiros raros e infezados atravez dos quaes se estão quasi vendo as vinhas e olivedos circumstantes! […]” (1846a: 42)
Detetámos, ainda, nos extratos (1) e (23), que o verbo auxiliar progressivo, sob a forma estar (+ gerúndio), por um lado, e sob a forma estar + a (+ infinitivo), por outro lado, aliando-se ao mesmo predicador descritor de uma situação não estativa de processo, DISPUTAR, com o pretérito imperfeito do modo indicativo, acentua a não-telicidade das descrições estativas decorrentes da conversão aspetual já identificada. Com efeito, a congregação dos elementos indicados permite perspetivar essas situações como estando em curso no momento da sua apreensão, pelo Narrador-Autor, a partir de um momento passado não identificado, ou seja, prolongando-se e sobrepondo-se a esse momento de apreensão, que é anterior ao momento da enunciação do Narrador-Autor (o contexto dá, posteriormente, a situação de (1) como interrompida, mas não como concluída).
- (1)
“[…] Ora os homens do norte estavam disputando com os homens do sul: a questão fôra interrompida com a nossa chegada á proa do barco. […]” (1846a: 8)
- (23)
“[…] Elle sacudiu a cabelleira de anneis, virou-me as costas, deu o braço a Colbert, passou por-pé de Ricardo Smith e de J. Baptista Say, que estavam a disputar , incollheu os hombros […] e foi-se por uma alameda muito viçosa […].” (1846a: 58)
No atinente aos extratos (9) e (22), JUNTAR angústias e SONHAR desencadeiam descrições de estruturas básicas de processos que interagem com o operador aspetual progressivo, também sob ambas as suas formas, estar (+ gerúndio) e estar + a (+ infinitivo), a primeira das quais marcada pelo pretérito mais-que-perfeito composto do indicativo e a segunda pelo pretérito mais-que-perfeito simples do mesmo modo. O produto aspetual final parece continuar a ser o de um estado, igualmente por conversão direta. Na verdade, a não‑telicidade da situação estativa representada em (9) não parece ser alterada pelo tempo gramatical (composto, em associação com o modo), que parece apenas apontar para o posicionamento de anterioridade da situação relativamente a outras situações no eixo do tempo narratológico. O mesmo sucede com a situação estativa representada em (22), em que o tempo gramatical (simples, ligado ao modo) e o sintagma preposicional não-argumental, “em todo este capítulo”, de cariz espacial, parecem contribuir para o enquadramento da situação num tempo anterior ao presente da enunciação do Narrador-Autor. Assim, em ambos os casos, no respeitante à perspetivação das situações na sua relação temporal extrínseca (por oposição à sua perspetivação temporal intrínseca, aspetual), parece inequívoca a indicação de um ponto terminal localizado num intervalo anterior a um ponto de referência passado.
- (9)
“[…] A velha queria dizer mais; as angústias que se tinham estado juntando n’aquella alma, que porfim não podia mais e transbordava, queriam sahir todas […]” (1846a: 144-145).
- (22)
“[…] Descobre-se porfim que o A. estivera a sonhar em todo este capitulo […]” (1846a: 31).
Em (6), FAZER versos constitui a base da descrição do processo convertido em estado pelo verbo auxiliar progressivo, que se encontra marcado pelo pretérito imperfeito do conjuntivo no âmbito de uma estrutura caracterizável como uma variante de um enunciado condicional contrafactual, “em que a proposição contida no antecedente, e que se verifica no mundo [criado], é apresentada como possuindo propriedades idênticas às que teria se se verificasse no mundo alternativo seleccionado pelo consequente” introduzido por um conector, “como se”, com valor híbrido, ou seja, comparativo e condicional ().
Em relação ao segmento em análise no trecho (17), segmento esse que descreve uma situação básica de processo a partir de VER, o estado progressivo resultante da mutação aspetual prolonga-se, sobrepondo-se ao momento em que a personagem de Carlos anuncia a necessidade de fazer uma interrupção. Não estando marcado por qualquer tempo gramatical, o verbo auxiliar progressivo é interpretável como equivalendo, numa eventual oração subordinada finita, a um verbo auxiliar progressivo marcado pelo presente do modo conjuntivo, que se correlacionaria com o presente do indicativo manifesto na oração subordinante (“Falta‑me o ânimo”): assim, tendo em linha de conta o contexto, só a presença de ânimo permitiria o prolongamento da situação estativa para me estar vendo a este terrível espelho moral / para que me esteja vendo a este terrível espelho moral. Parece que nos encontramos, assim, perante uma questão extrínseca à composição aspetual da estrutura em apreço.
- (17)
“[…] Deixa-me parar aqui. Falta-me o ânimo para me estar vendo a este terrivel espelho moral em que jurei mirar-me para meu castigo […].” (1846b: 205)
No que diz respeito a (26), a predicação estativa em que a forma do auxiliar progressivo estar + a converte a expressão situacional básica de processo formata-se numa oração subordinada circunstancial com valor de sobreposição temporal (para que parece concorrer o gerúndio patente em “estando”) relativamente a um estado de coisas relevante configurado numa predicação oracionalmente realizada enquanto sua subordinante, De como chega Frei Dinis, revelando o extrínseco posicionamento relativo das situações no tempo da narração.
- (26)
“[…] De como estando a avó e a neta a conversar muito de mano a mano, chega Frei Diniz e se interrompe a conversação. […]” (1846a: 109)
Relativamente ao extrato (20), encontramos o predicador verbal AQUECER, tido como suscetível de descrever estruturas básicas de processo (). Na perspetiva de , constituiria um verbo de degree-achievement: “[there] are some cases of verbs which would seem to be achievements on some semantic and syntactic grounds but which nevertheless allow durational adverbs (even without indefinite plurals or mass terms)”. Segundo , “Dowty’s original definition of this class was not strictly based on morphology, but rather on whether the verb entailed a change in a vague gradable property”, havendo aplicado o termo “to describe change of state verbs […] which manifest variable telicity: some (like to darken) can describe telic changes (e.g. darkening completely) or atelic changes (darkening by some specified degree)” (). usa o termo “to denote atelic uses of change of state verbs” e inclui “all telic uses under the term ‘accomplishment’”. Cumpre salientar, quanto ao que temos sob análise, que o predicador situacional AQUECER se apresenta, com a sua atelicidade, segundo o contexto, como “input” do auxiliar progressivo estar, resultando num estado progressivo. O uso do presente do indicativo parece, segundo o contexto em que a estrutura ocorre (i. e., nota de esclarecimento de um estrangeirismo), favorecer uma leitura de verdade atual e permanente, que não conflitua com o decurso temporal intrínseco da predicação sob análise. De acordo com “o breve autógrafo que contém as notas de Garrett ao volume II da edição de 1846 das Viagens, […] realizado após estar já impresso” (Monteiro apud ), o Autor terá hesitado entre o uso de uma forma do predicador marcada pelo presente do indicativo e o uso da expressão perifrástica acima descrita, tendo acabado por preferir esta construção àquela forma (, nota complementar número 4 do editor; cf. Monteiro apud ), o que não deixa de ser interessante, pois talvez a hesitação na escolha da estrutura se devesse à gradação inerente ao significado do verbo.
3.2.2. Verbo auxiliar progressivo (na sua forma estar) + descrições de estruturas básicas de processos culminados
Detetámos, ainda, descrições de estruturas básicas de processos culminados, que, formando uma classe aspetual, são tipicamente não estativos e télicos, ou seja, apresentam uma culminação intrínseca, descrevendo “situações que, quando se verificam num I, não se verificam em qualquer dos seus subintervalos” (). Tais estruturas são alvo de comutação aspetual. Com efeito, antes de poderem surgir com o verbo auxiliar aspetual progressivo estar acompanhado de gerúndio – única variante que ocorre nestes casos –, esses processos culminados têm de ser transformados em processos: “Quanto aos processos culminados (accomplishments), basta que lhes seja retirada a culminação, passando a processos, para poderem surgir com as formas do Progressivo” (Cunha 1998: 86, itálico nosso). Dessa maneira, enquanto processos, são diretamente convertidos, por meio do operador aspetual, em estados progressivos, refletindo a perífrase progressiva “apenas as condições de verdade associadas à ‘parte processual’ do accomplishment” (, itálico nosso). Tal sucede nos trechos (13), (18) e (19), desencadeados pelas expressões predicativas NOMEAR os falecidos, COPIAR um retrato e FAZER uma bolsa de rede.
Se a leitura não habitual decorre do recurso ao presente do indicativo em (13) e (18), a conjugação do progressivo no pretérito mais-que-perfeito composto do indicativo, em (19), permite a interpretação de um posicionamento de anterioridade de uma situação relativamente a outras situações ordenáveis no tempo narratológico.
- (13)
“[…] Reverdece / A mágoa, lamentando o errado curso / Dos labyrintos da perdida vida; / E me está nomeando os que trahidos / Em horas bellas por fallaz ventura / Antes de mim na estrada se sumiram. […]” [1846b: 26, extrato de tradução portuguesa do Autor de versos da “Dedicatória” de Fausto]
- (18)
“[…] d’onde [i. e., do espelho moral] estou copiando o horroroso retratto de minha alma que te desenho n’este papel.” (1846b: 205)
- (19)
“[…] Á despedida, essa noite, deu-me uma bolsa de rede que Laura tinha estado fazendo para mim e que lhe deixára para me intregar.” (1846b: 210)
3.2.3. Verbo auxiliar progressivo (nas suas formas estar e estar + a) + descrições de estruturas básicas de culminações
Confrontámo-nos, também, com descrições de estruturas básicas de culminações, que constituem uma classe aspetual não estativa, télica, ou seja, com uma delimitação intrínseca, e atómica, isto é, momentânea (), descrevendo, portanto, “situações que só se verificam em intervalos singulares (num plano teórico, de algum modo por uma redução artificial […])” (). Tal como descrito por , seguindo de perto Moens:
As culminações (“achievements”) têm de, primeiro, passar a processos culminados, através da “adição” de um processo à culminação; seguidamente, perdendo a sua culminação, tornam-se processos, constituindo-se, desta forma, como o “input” desejado.
Assim, as situações que configurem culminações de base, ao serem alvo de transformação aspetual pelo verbo auxiliar progressivo, perdem a telicidade e o seu caráter momentâneo, e passam a “ganhar duração” (; itálico nosso):
[…] when a culmination expression […] is used with a progressive, a transition path has to be found from the culmination node to the process node. According to the transition network, this involves first adding a preparatory process to the culmination, and then stripping off the culmination point. As a result, the progressive sentence only describes the preparation as ongoing and no longer asserts that the original culmination even occurred ().
Em (5), CAIR, mediante o significado lexical de ‘tombar’, dá lugar à descrição de uma estrutura básica de culminação. O verbo auxiliar progressivo estar obriga, porém, à sua reinterpretação: transformando-se em processo culminado, por meio do acrescentamento de um processo, perde, depois, o seu termo; tendo já adquirido duração, assume-se como estado progressivo (envolvendo a entidade representada, enquanto circunstante, pela forma átona e oblíqua de pronome pessoal “lhe”), cuja duração é acentuada pelo pretérito imperfeito do indicativo.
- (5)
“[…] Que cara que fez o marquez a um finadinho que lhe foi metter o nariz nas cartas! Quem havia de ser! O intromettido de M. de Talleyrand! Estava-lhe cahindo . Mas não viu nada: o nobre marquez sempre soube esconder o seu jôgo. […]” (1846a: 57)
No âmbito do segmento (24), também se parte de uma descrição de uma estrutura básica de culminação, desencadeada por LEMBRAR-SE, sofrendo tal estrutura uma transformação aspetual novamente por via da coerção da forma auxiliar progressiva estar + a marcada pelo presente do indicativo. O estado progressivo resultante parece dar conta de apenas uma situação em decurso no momento da enunciação, como se uma “peça”, à semelhança de um elo, trouxesse consigo outra, ou seja, outro elo, sucedendo-se umas às outras em cadeia.
- (24)
“[…] Algumas d’essas peças, com bem pouco trabalho, com um dialogo mais vivo, um stylo mais animado, fariam comedias excellentes.
“ Estão-me a lembrar éstas: […]” (1846a: 80).
Em (27) e (28), é MORRER que desencadeia a descrição de estruturas básicas de culminação. Nele opera também a forma estar a do verbo auxiliar progressivo, fazendo transitar a estrutura básica, de forma indireta, para um estado progressivo, de forma similar ao sucedido em (5), (14) e (24). Em (27), a interação do progressivo com o presente do conjuntivo parece resultar na perspetivação da situação em causa como estando em decurso ao mesmo tempo que se dá como habitualmente existente a situação descrita na oração de que depende (à mais santa lhe não pesa), sobrepondo-se-lhe, sem que seja posta em causa a sua leitura final aspetual. Quanto a (28), a combinação do progressivo com o pretérito perfeito composto do indicativo permite perceber que a situação se prolonga a partir de um momento do passado até um momento que fica apenas próximo do presente da enunciação, porque o antecede (facto comprovável pela descrição ocorrente na oração subordinada relativa adjetiva “mas que emfim está escapa”, que se coordena adversativamente com a oração subordinada relativa adjetiva que descreve o estado progressivo).
3.2.4. Verbo auxiliar progressivo (na sua forma estar) + descrições de estruturas básicas constitutivas de estados
Verificámos, ainda, que o verbo auxiliar progressivo, na sua forma estar, em combinação com o gerúndio opera sobre estruturas básicas estativas descritas a partir das expressões ESPERAR (por) alguém/algo, em (2), e (ser) IRMÃ/CRIANÇA/MULHER, em (11), e do predicador CUSTAR, em (16).
Na análise de , também as estruturas básicas de estado sobre as quais opere o auxiliar progressivo têm de transitar, na chamada rede aspetual de Moens, primeiramente para processos, passando, depois disso, a estados progressivos. É o que acontece nos casos referidos, no âmbito dos quais o presente do indicativo sublinha o decurso da situação, sem que se atenda ao seu princípio ou ao seu fim, coincidindo tal decurso com o ato de enunciação do Narrador.
- (2)
“[…] Togados manes dos antigos desimbargadores, […], que direis, ó respeitadas sombras, se d’esse limbo onde estais esperando pela ressurreição do Pêgas... e do livro quinto – vêdes este degenerado e espurio successor vosso […]?” (1846a: 17)
- (11)
“[…] Joanninha era… nem eu sei o que lhe era Joaninha… o que lhe estava sendo n’aquelle momento. […]” (1846a: 231)
- (16)
“Já me está custando ter deixado Santarem. […]” (1846b: 169)
3.2.5. Breves notas conclusivas
À guisa de sistematização, importa dar conta de algumas conclusões relativamente ao uso das formas do verbo auxiliar progressivo na primeira novela contemporânea portuguesa.
Em primeiro lugar, o verbo auxiliar progressivo ocorre, em maior percentagem, com estruturas básicas de processos, revestindo-se, nesses casos, quer da forma estar (+ gerúndio) – em treze ocorrências –, quer da forma estar + a (+ infinitivo) – em cinco ocorrências –, contribuindo para o mesmo tipo de produto final: o de estado progressivo.
No que diz respeito à articulação da forma auxiliar progressiva estar (+ gerúndio) e estar + a (+ infinitivo) com os tempos (associados a modos) gramaticais, cumpre notar o seguinte:
- nove ocorrências da forma estar (+ gerúndio) exibem o presente do indicativo e uma, o pretérito imperfeito do mesmo modo, contribuindo tais tempos do indicativo para acentuar o decurso intrínseco das situações; nos restantes três casos, o infinitivo, o pretérito mais-que-perfeito composto do indicativo e o pretérito imperfeito do conjuntivo com que surge a mesma forma de verbo auxiliar progressivo parecem concorrer para o extrínseco posicionamento relativo das situações no eixo do tempo da narração;
- duas ocorrências da forma estar + a (+ infinitivo) surgem no presente no indicativo e uma, no pretérito imperfeito do indicativo, contribuindo para a leitura decursiva dos estados envolvidos; as duas outras ocorrências, marcadas pelo pretérito mais-que-perfeito simples do indicativo e pelo gerúndio, parecem dar conta do posicionamento relativo extrínseco das situações no eixo do tempo da narração.
Em segundo lugar, o verbo auxiliar progressivo ocorre, quatro vezes, com estruturas básicas de culminações, por meio da forma estar (+ gerúndio) – numa única ocorrência – e da forma estar + a (+ infinitivo) – em três ocorrências –, contribuindo para o mesmo tipo de produto final: o de estado progressivo.
Relativamente à interação com os tempos gramaticais, cumpre dizer que a forma estar (+ gerúndio) aparece no pretérito imperfeito do indicativo, acentuando a leitura aspetual final de estado progressivo, situação que se deteta no uso da forma estar + a (+ infinitivo), uma vez, com o presente do indicativo e, também uma vez, com o pretérito perfeito composto do indicativo. Numa última ocorrência da última forma mencionada do progressivo, o presente do conjuntivo não compromete a computação do produto aspetual final.
Em terceiro lugar, importa salientar que apenas a forma estar (+ gerúndio) do operador aspetual progressivo atua, em menor percentagem, sobre estruturas básicas de processos culminados e sobre estruturas básicas de estados, resultando, por meio da transição aspetual no âmbito da rede aspetual, num mesmo tipo de leitura, a saber, a de estados progressivos.
No atinente à combinação com os tempos gramaticais, de entre as predicações resultantes da coerção do verbo auxiliar progressivo sobre estruturas básicas de processos culminados, transformadas, portanto, em estados progressivos, duas apresentam o operador aspetual estar no tempo presente do modo indicativo, o que favorece a leitura resultante da mutação, e uma outra apresenta-o marcado pelo pretérito mais-que-perfeito composto do indicativo, parecendo-nos contribuir para o extrínseco posicionamento relativo da situação no tempo. Relativamente às predicações resultantes de estruturas básicas de estados, duas apresentam o operador aspetual estar no presente do indicativo e uma, no pretérito imperfeito do indicativo, concorrendo tais tempos do modo em causa para a leitura final de estados progressivos.
Assim, pelo menos no âmbito da novela já identificada, em que parece refletir-se a vida e, portanto, o uso dinâmico e heterogéneo da língua portuguesa na primeira metade do século xix, as duas formas do verbo auxiliar progressivo – estar (+ gerúndio) e estar + a (+ infinitivo) – eram, pelo menos, mais facilmente combináveis com estruturas básicas de processos e com estruturas básicas de culminações.
De alguma forma, é provável que, na história da língua escrita portuguesa, se venha a confirmar a ideia de que o auxiliar progressivo tenha ocorrido com mais frequência com estruturas situacionais básicas de processo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não podemos deixar de trazer à colação o que viemos a constatar no âmbito da investigação que desenvolvemos relativamente ao discurso metalinguístico português, a saber, o facto de, em 1871, ser tido por empobrecedor do discurso o recurso à auxiliaridade () e a indicação de, ainda em 1890-1892, se verificar uma tendência, sobretudo na conversação e no estilo espontâneo, para a substituição da construção perifrástica estar + verbo principal (pleno ou auxiliado) no gerúndio pela construção perifrástica estar + a + verbo principal (pleno ou auxiliado) no infinitivo, entendidas, assim, claramente, como covariantes (cf. ), independentemente da interpretação que os especialistas da língua de então conferissem não só à natureza dessas construções, como também aos valores por elas veiculados. Lembramo-nos, a propósito, de um interessante conjunto de asseverações de Ofélia Paiva Monteiro (apud ):
Estratégia fundamental do livro, a pretender dar-lhe o estatuto de “veracidade”, é de facto a simulação da concomitância entre o acto de escrita e o divagar propiciado pela viagem: daí a dispersão do discurso, a cada passo cortado por digressões, o constante emprego do tempo presente e de deícticos, a pródiga utilização da linguagem oral e familiar (no léxico e na estrutura sintáctica). Assim conseguiram as Viagens essa “naturalidade” que ficou luminosamente a marcar o nascer da moderna prosa literária portuguesa.
Certo é que as construções perifrásticas detetadas ocorreriam, certamente, em covariância, na oralidade, muito antes de terem sido registadas por estudiosos da língua atentos à sua produção ou por amantes da escrita.
Além disso, se, por um lado, uma dada mudança gramatical (sintática) pressupõe a existência de fases de covariação de configurações formatadas em construções “mais conservadoras e mais inovadoras” (), por outro lado, a covariação pode não chegar a desaparecer, facto verificado, em Portugal, no atinente ao uso – ainda atual – em alguns espaços, continentais e insulares, do verbo auxiliar estar com um verbo principal (pleno ou auxiliado) marcado por gerúndio.
Finalmente, importa salientar que o verbo auxiliar progressivo, no âmbito das variantes perifrásticas em que ocorre, assume, enquanto conversor ou comutador aspetual, uma importância decisiva no apuramento do produto final aspetual das descrições de estruturas situacionais básicas sobre que opera. A leitura resultante de decurso intrínseco das situações não era – com as devidas reservas epistémicas – alheia a lexicógrafos e gramáticos da época. Simplesmente, a interpretação do funcionamento de então da língua carecia da formalização de conceitos relativos a áreas de significação distintas embora correlacionáveis.
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Notas
[1] Em 1789, Antonio de Moraes Silva (1755-1824) – no âmbito do verbete da entrada “FICAR” do Diccionario da Lingua Portugueza que reforma e acrescenta – utiliza uma estrutura que não aparece na edição de D. Raphael Bluteau (1638-1734), em que se fundamenta predominantemente, e que, salvo melhor entendimento, revela o uso do verbo auxiliar estar + preposição a + infinitivo, não surgindo, porém, sob a entrada “AUXILIAR”, em contraponto com estar + gerúndio, a única variante que, aí, Moraes Silva apresenta, ao contrário do que sucede, flagrantemente, na obra que dá por terminada em 1802.
[2] Sobre esta construção, encontrámos, ainda no atinente ao discurso metalinguístico português, uma primeira ocorrência em .
[4] Enquanto Diretor da Revista Universal Lisbonense – “um importante instrumento de acção cultural orientado para um público burguês e romântico” () –, António Feliciano de Castilho (1800-1875) solicitara a Almeida Garrett que “[escrevesse] umas ‘impressões’ da ida [feita, a convite de Passos Manuel, em julho de 1843,] a Santarém por terras ribatejanas, [as quais] respondessem ao favor de que gozava esse tipo de literatura narrativa” (Monteiro apud ). Surgem, assim, “nos tomos II e III [daquela publicação periódica] […], de Agosto a Dezembro desse ano […], seis capítulos-folhetins, assinados A. G., da obra […] Viagens na minha terra” (Monteiro apud ). Já sob a direção de Silva Leal, retoma-se e conclui-se a publicação dessa obra, nos tomos V e VI da supramencionada Revista, “entre Junho de 1845 e Novembro de 1846, reeditando[-se] os seis capítulos iniciais, dada a revisão a que o Autor, dizia o periódico, os tinha sujeito” (Monteiro apud ).
[5] Adotámos, aqui, a nomenclatura paratextual da responsabilidade da Biblioteca Nacional de Portugal. Segundo Ofélia Paiva Monteiro, que coordenou, em 2010, a edição crítica da obra sob escopo, essa “Nota”, que designa por “prólogo”, era “consensualmente considerad[a] da autoria de Garrett”, retomando, “com […] variantes […], o texto surgido na Revista Universal Lisbonense (t. V, n.º 25, 11 de Dezembro de 1845, pp. 299-300), como anúncio da […] publicação [seguinte] em livro do primeiro tomo da obra, que veio efectivamente a lume no início de 1846” (Monteiro apud ).
[6] Como refere Ofélia Paiva Monteiro (apud ), o Autor volta a fazer correções na “primeira edição independente da obra, em dois volumes (não simultâneos)”. Com efeito, o primeiro tomo “é posto à venda em Fevereiro de 1846”, enquanto o segundo tomo “aparecerá após o termo da publicação das Viagens na Revista, o que acontecerá […] em meados de Novembro desse ano” (Monteiro apud ).
[7] Essa perceção parece ser mais clara em Constancio do que em , que considera ativos ou de estado os então chamados atributos anexos à significação dos verbos. A propósito da noção de ato, observa: “Estar a fazer alguma coisa, significa, no acto de fazer, etc. [- a propósito do tratamento da preposição a -]”.
[8] Embora Moraes Silva utilize, nesta passagem, a designação de particípio presente, e não de gerúndio, fá-lo à luz do uso terminológico divulgado por gramáticos anteriores e coevos (). No âmbito das “Taboas / Das conjugações dos Verbos Auxiliares”, opta pela designação de gerúndio: “As variações compostas do Modo Indicativo formão se com os verbos auxiliares, e os gerundios, para indicar o attributo verbal actual, imperfeito: v. g. Estou Lendo, Estive Lendo, Estarei Lendo, Estava Lendo, Estivera Lendo, Estaria Lendo.” () Afirma, ainda, que no “modo Subjunctivo tãobem combinamos [o Auxiliar em causa] com os Gerundios […], para indicar o estado imperfeito: v. g. que eu esteja sendo, lendo, ouvindo; ou estivesse sendo, lendo, ouvindo; estiver sendo, lendo, ouvindo” (). Acrescenta, depois, que “[t]ãobem combinamos os infinitos auxiliares com os Gerundios” (). Não abordaremos aqui a reflexão do autor sobre os termos em causa.
[9] Impõe-se uma análise futura sobre a definição proposta e o uso efetivo, em predicações específicas, dos exemplos elencados por Moraes.
[10] Este é um assunto que ainda se encontra sob nossa investigação no quadro do discurso metalinguístico do Português.
[11] Por consequência, a pessoa gramatical expressa pelo verbo auxiliar tem de corresponder à representação gramatical do primeiro argumento (argumento externo ou, no caso dos verbos inacusativos, argumento interno) do predicador expresso pelo verbo auxiliado ou por uma forma ou expressão linguística de cariz não-verbal, sendo, neste último caso, uma ou outra antecedida ou de um verbo de atribuição, ou de um verbo de suporte, que assumem o papel de verbos auxiliados. Numa estrutura marcada pela voz passiva sintética, a pessoa gramatical expressa pelo verbo auxiliar pode constituir a representação gramatical do segundo argumento de um predicador verbal de uso transitivo.
[12] São, evidentemente, dignos de consideração os argumentos em que sustenta a asserção de que “pretender basar la auxiliaridad perifrástica en el mayor o menor desgaste semântico no parece acertado”. Na nossa perspetiva, o verbo auxiliar estar perde a capacidade polarizadora de convocar argumentos a partir do seu significado original, “achar-ſe preſente em algum lugar” (), embora o estatismo que continua a transportar passe para a perífrase em que entre e, consequentemente, para a predicação que contenha a perífrase.
[13] ; e consideram que, nesse caso, o verbo estar não cumpre um dos critérios consensualmente apontados para os verbos auxiliares, a saber, a obrigatória hospedagem junto de si de quaisquer eventuais clíticos, razão por que denominam tal verbo, seguido de infinitivo preposicionado por a de semiauxiliar. É interessante, porém, que a denominação de verbo semiauxiliar, a que, curiosamente, inere um conceito mais restrito do que o aplicado pelas autoras mencionadas, seja encontrada na primeira edição da Gramática alemana. Nuevo método teórico y práctico escrito especialmente para los españoles y aquellos que posean la lengua castellana, dividido en dos tomos y una clave de los temas, obra publicada, por Cárlos Fernández de Castroverde [Carles Fernández de Castro Verde (1830-1890)], em 1868: aí, a designação em causa é aplicada a “siete verbos, los cuales no llevan otra idea en sí que el de dar á otros verbos cierta modificacion, espresando la posibilidad, la necesidad, la legalidad ó la volutacion […]” e distinguindo-se de “los tres verbos completos auxiliares [haben, sein, werden]” (;).
[14] “O termo Aktionsart foi usado pela primeira vez por [Karl Friedrich Christian] Brugmann [1849-1919], para substituir o termo Zeitart de Curtius. De princípio, parece que não havia total acordo em relação ao termo por Brugmann [proposto], misturando-se com o termo Aspekt na designação da categoria verbal que se opõe ao tempo e ao modo.” ()
[15] mudam a terminologia proposta por ) “both for notational convenience and to avoid the considerable confusion that has arisen concerning the precise meaning of the old terms”: “state” continua a ser denominado de “state” – estado –; “activity” ou “process” passam a ser designados apenas por “process” – processo –; “accomplishment” toma a designação de “culminated process” – processo culminado –; e “achievement” é denominado de “culmination” – culminação; a esses quatro tipos básicos de situações acrescentam as “‘point’ expressions”, que estavam subsumidas na designação “achievement” de Vendler – pontos.
[16] Trata-se de um ato de fala que o Narrador atribui, explicitamente, a si próprio, ao monologar, no decurso de elucubrações que configuram o próprio processo de criação literária – “[…] fiquei todo dentro do meu romance, esqueci-me de tudo o mais […]” ().
[17] “Já no século XIX, a história de Ílhavo ficou marcada por um grande progresso económico, particularmente na conceção de indústrias de construção naval, resultado da prática secular da pesca e seca do bacalhau […]” (). Em termos de subsistência, a população ilhavense “dependia principalmente do mar e de recursos marinhos, sendo a pesca a principal profissão dos homens [de Ílhavo] já desde 1296”, embora consumisse, ainda, “produtos agrícolas, entre os quais o milho, o mais produzido, o centeio e o trigo […] e também algum vinho” (), entre outros bens.
[18] Naturalmente, o gerúndio tem de apresentar carácter verbal, e não adverbial ou adjetival (). Tendo em linha de conta um exemplo da expressão predicativa “‘dar de beber’”, usada enquanto descritiva de processo e marcada por gerúndio, “—Tá dando de beber pra tropa?”, refere: “[…] o gerúndio […] denota o aspecto imperfectivo da ação verbal, que se estende no tempo, como se o sujeito/falante pretendesse levar o leitor/ouvinte a assistir de perto à cena”.
[19] Este é um argumento a favor da estatividade manifestada pelas formas de progressivo, já que, nas estruturas básicas em causa, o presente do indicativo originaria leituras de habitualidade.
[20] Note-se que, também nas estruturas básicas em causa, o presente do indicativo conduziria a leituras habituais.
[21] Nesse trecho, o predicador – que consideramos constituir um nome não mencionado – apresenta um revestimento formal substitutivo desse nome, isto é, surge enquanto pronome relativo (“o que”) (, sobre a classificação de o que como pronome relativo), configurando a oração subordinada completiva relativa livre o segundo argumento (ou argumento interno) de SABER.
[22] Referindo-se ao espanhol e ao italiano, observa: “As noted in Sasse […], a progressive marker tends to start off being combined with activities and later spreads in the direction of telic verbs, first accomplishments and then achievements. In fact, the data contained in Squartini […] and Bertinetto […] show that the frequency of achievements has tended to increase since the first half of the [19th] century.” No que concerne ao Português, as ilações que apresentámos acima não parecem estar longe do teor do citado, embora haja necessidade de obter dados provenientes de textos não-literários.
[23] “A construção com gerúndio […] tem plena vitalidade nos dialetos do Alentejo, do Algarve, e também dos Açores e da Madeira. Há ocorrências registadas também no norte de Trás-os-Montes […]” e em “Viseu” (). Nenhuma das ocorrências transcritas pela investigadora se ancora no espaço da Ilha Terceira (Região Autónoma dos Açores), onde a família de Almeida Garrett se refugiou, na sequência das invasões francesas. O nosso Autor permaneceu aí, sensivelmente, entre os 10 e os 16 anos.
Apêndices
Anexo
I. Estar + verbo principal (pleno ou auxiliado) marcado por gerúndio
- (1)
“[…] Ora os homens do norte estavam disputando com os homens do sul: a questão fôra interrompida com a nossa chegada á proa do barco. […]” (1846a: 8)
- (2)
“[…] Togados manes dos antigos desimbargadores, […], que direis, ó respeitadas sombras, se d’esse limbo onde estais esperando pela ressurreição do Pêgas… e do livro quinto – vêdes este degenerado e espurio successor vosso […]?” (1846a: 17).
- (3)
“[…] Ja se vê que em nada d’isto ha a minima allusão ao feliz systema que nos rege: estou fallando de modestia, e nós vivemos em Portugal. […]” (1846a: 34)
- (4)
“[…] Uns poucos de pinheiros raros e infezados atravez dos quaes se estão quasi vendo as vinhas e olivedos circumstantes!.. […]” (1846a: 42)
- (5)
“[…] Que cara que fez o marquez a um finadinho que lhe foi metter o nariz nas cartas! Quem havia de ser! O intromettido de M. de Talleyrand! Estava-lhe cahindo. Mas não viu nada: o nobre marquez sempre soube esconder o seu jôgo. […]” (1846a: 57)
- (6)
“[…] Mas foi como se os fizesse, os versos, como se os estivesse fazendo […].” (1846a: 74)
- (7)
“[…] Inda o estou vendo, coitado! o pobre C. do S. […]” (1846a: 88)
- (8)
“[…] inda o estou vendo, ja sexagenario […].” (1846a: 88)
- (9)
“[…] A velha queria dizer mais; as angústias que se tinham estado juntando n’aquella alma, que porfim não podia mais e transbordava, queriam sahir todas […].” (1846a: 144-145)
- (10)
“[…] – ‘Não é ninguem,’ respondeu um soldado que era dos antigos no pôsto: ‘ninguem que importe; é a menina dos rouxinões. Estou vendo que adormeceu no seu poiso costumado.’” (1846a: 200)
- (11)
“[…] Joanninha era… nem eu sei o que lhe era Joaninha… o que lhe estava sendo n’aquelle momento. […]” (1846a: 231)
- (12)
“[…] Pódes responder-me da parte que tomará ámanhan na tua existencia a imagem da donzella que hoje contemplas apenas com olhos de artista, e lhe estás notando, como em quadro gracioso, os finos contornos, a pureza das linhas, a expressão verdadeira e animada? […]” (1846a: 231-232)
- (13)
“[…] Reverdece / A mágoa, lamentando o errado curso / Dos labyrintos da perdida vida; / E me está nomeando os que trahidos / Em horas bellas por fallaz ventura / Antes de mim na estrada se sumiram. […]” [1846b: 26, extrato de tradução portuguesa do Autor de versos da “Dedicatória” de Fausto]
- (14)
“[…] Não se descreve por outro modo o que ésta gente chamada govêrno, chamada administração, está fazendo e deixando fazer ha mais de seculo [sic] em Santarem. […]” (1846b: 32-33)
- (15)
“— […] — ‘Carlos, não abuses da pouca saude que ainda tens. O esfôrço d’alma que estás fazendo póde-te ser prejudicial. […]’” (1846b: 70)
- (16)
“Já me está custando ter deixado Santarem. […]” (1846b: 169.)
- (17)
“[…] Deixa-me parar aqui. Falta-me o ânimo para me estar vendo a este terrivel espelho moral em que jurei mirar-me para meu castigo […].” (1846b: 205)
- (18)
“[…] d’onde [i.e., do espelho moral] estou copiando o horroroso retratto de minha alma que te desenho n’este papel.” (1846b: 205)
- (19)
“[…] Á despedida, essa noite, deu-me uma bolsa de rede que Laura tinha estado fazendo para mim e que lhe deixára para me intregar.” (1846b: 210-211)
- (20)
“[…] // Fender se chama em inglez a pequena e baixa tea de metal que defende o fogão nas salas, paraque não caiam brazas nos sobrados. Descançam n’elle os pés naturalmente quando a gente se está confortavelmente aquecendo em liberdade.” (1846b: 238, Nota C)
II. Estar + preposição a + verbo principal (pleno ou auxiliado) no infinitivo
- (21)
“ – ‘[…] Mas nós, pe no barco pe na terra, tam depressa estamos a sachar o milho na charneca, como vimos por ahi abaixo com a vara no peito, e o saveiro a pegar n’area por não haver agua…[…].’” (1846a: 10)
- (22)
“[…] Descobre-se porfim que o A. estivera a sonhar em todo este capitulo […].” (1846a: 31)
- (23)
“[…] Elle sacudiu a cabelleira de anneis, virou-me as costas, deu o braço a Colbert, passou por-pé de Ricardo Smith e de J. Baptista Say, que estavam a disputar, incollheu os hombros […], e foi-se por uma alameda muito viçosa […].” (1846a: 58)
- (24)
“[…] Algumas d’essas peças, […], fariam comedias excellentes”.
“Estão-me a lembrar éstas: […].” (1846a: 80)
- (25)
“[…] A ponte da Asseca corta uma varzea immensa que hade ser um vasto pahul de hynverno: ainda agora está a desangrar-se em agua por toda a parte. […]” (1846a: 85)
- (26)
“[…] De como estando a avó e a neta a conversar muito de mano a mano, chega Frei Diniz e se interrompe a conversação. […]” (1846a: 109.)
- (27)
“[…] É sabido que a mais sancta lhe não pêsa de que estejam a morrer por ella […].” (1846b: 40)
- (28)
“– ‘Tua avó que tambem tem estado a morrer mas que emfim está escapa, ignora que tu estejas aqui. […]’” (1846b: 67)