Sumário
Contents
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho visa avaliar o uso de orações gerundivas adnominais (ou adjetivas, na terminologia tradicional), quer com valor restritivo quer com valor predicativo, em estruturas de valor comparável a orações relativas (de sujeito) restritivas e apositivas, respetivamente. dão exemplos de frases plenamente gramaticais com cada um destes dois valores, transcritas abaixo, em (1)-(2), com adição de informação estrutural simplificada; note-se que a oração gerundiva – como a oração relativa equivalente – ocupa uma posição na estrutura interna do sintagma nominal, como modificador restritivo ou como aposto, que considerarei em posição de adjunção a N´ e a SN, respetivamente. Tomarei esta distribuição sintática como a propriedade distintiva da subclasse de orações gerundivas em causa, que permitirá distingui-la de outras subclasses próximas com as quais se pode facilmente confundir (cf. secção 3).
- (1)
Foram encontradas [SN várias [N' [N' caixas]
[MODIFICADOR {contendo / que continham} documentos secretos]]]
- (2)
[SN [SN O timbre da sua voz] [APOSTO, {fazendo / que faz} lembrarMaria Callas,]] é impressionante.
O foco da análise será na variedade padrão do português europeu, embora seja considerada também, mais superficialmente, a variedade padrão do português brasileiro. Tendo em conta as discussões sobre o estatuto das orações gerundivas adnominais (principalmente de valor restritivo) nessas variedades, que para alguns gramáticos é bastante marginal, tentarei analisar – com alguma sistematicidade – a sua ocorrência em corpora de texto jornalístico contemporâneo. Procurarei determinar, partindo das hipóteses colocadas na literatura – especialmente e – quais as propriedades semânticas que favorecem o uso deste subtipo de oração gerundiva. Como se verá, trata-se de uma construção usada na variedade padrão, mas com fortes limitações, não sendo claras todas as regularidades por trás da distribuição observada, que parece sujeita a fenómenos de instabilidade típicos da mudança linguística.
2. SOBRE O ESTATUTO DAS ORAÇÕES GERUNDIVAS ADNOMINAIS NO PORTUGUÊS PADRÃO E AS RESTRIÇÕES AO SEU USO
2.1. Breve resenha da literatura
O estatuto das orações gerundivas adnominais – principalmente as de valor restritivo, como em (1) – tem sido muito discutido na literatura gramatical tradicional. O uso de gerundivas como modificadores nominais é irrestritamente “condenado” nalguns instrumentos de normalização (gramáticas, prontuários e afins) conservadores – cf. e.o. , ou . alinha parcialmente com estas posições condenatórias, mas não generaliza e, usando exemplos de autores clássicos, acaba por reconhecer a validade, e até por vezes a superioridade estilística, de certos gerúndios adnominais: “o uso do gerúndio é em certos casos preferível à oração relativa”. Para este autor, a questão deve, aliás, colocar-se predominantemente no plano (subjetivo) do estilo. Finalmente, , fazendo um pouco a ponte entre a gramática tradicional e a linguística moderna, refere que há uma longa história de detratores e defensores das orações gerundivas adnominais (que ele designa como “orações adjetivas reduzidas”) e defende a regularidade do seu uso na variedade padrão contemporânea. Mais recentemente, vários linguistas – e.g. Móia & Viotti (, ), e – reconhecem (implicitamente) que o uso de gerundivas adnominais integra plenamente a gramática do português padrão, dando exemplos de orações gerundivas adnominais, no quadro de um tipologia mais ampla de orações gerundivas, sem desenvolverem, porém, a questão do seu estatuto de aceitabilidade.
e – estes últimos retomando no essencial as propostas do primeiro, com pequenas modificações – são especialmente interessantes por proporem uma subdivisão do gerúndio adnominal em dois grupos semânticos, consoante o tipo aspetual da situação descrita na oração gerundiva (o qual depende, em última instância, essencialmente do predicado verbal, e da sua relação com a expressão nominal a que se aplica). Simplificadamente (e com numeração minha):
- -
Grupo I: gerúndio em orações que designam estados permanentes. Nos termos de , “gerúndio indicando de um substantivo ou pronome uma atividade permanente, qualidade essencial, inerente aos seres, própria das coisas” – e.g. o livro V, compreendendo as leis penais,... (Latino Coelho); algumas comédias havia com este nome contendo argumentos mais sólidos (Francisco José Freire); nos termos de : gerúndio que identifica “estados que caracterizam de forma inerente a entidade designada pelo constituinte que tem como núcleo o nome modificado” – e.g. ontem comprei um livro contendo gravuras.
- -
Grupo II: gerúndio em orações que designam atividades ou processos. Nos termos de , “gerúndio indicando de um substantivo ou pronome uma atividade passageira”, que “figura com a idéia de tempo transitório muito acentuada, servindo de atribuir um modo de ser, uma qualidade, uma atividade [...], mas apenas dentro de certo período e em determinada situação” – e.g. ...começavam a soar ao longe como um trovão ribombando no vale (Alexandre Herculano); nos termos de , gerúndio que identifica uma “propriedade dinâmica consistindo numa situação provisória, em curso (i.e., aspetualmente progressiva)” – e.g. as pessoas bebendo vinho não podem entrar no recinto.
Sobre as orações gerundivas do segundo grupo, os três autores notam a sua correspondência típica a expressões com preposição a + infinitivo (as pessoas bebendo vinho = as pessoas a beber vinho) e Brito & Raposo – que discutem essencialmente o português europeu – afirmam que elas são “menos aceitáveis por muitos falantes” e “claramente menos naturais e menos frequentes em português” que as do primeiro grupo.
reconhecem ainda, explicitamente, a validade do uso de orações gerundivas como apostos nominais – e.g. a lei promulgada ontem, autorizando as escutas telefónicas, vai suscitar muitas questões –, considerando que elas também se podem subdividir nos mesmos dois grupos acima.
Considero que, apesar das pistas importantes de e , a questão do uso de orações gerundivas adnominais não foi ainda suficientemente estudada na literatura, e certamente não o foi com o respaldo sistemático de dados reais (da variedade padrão) da língua, como os que podemos encontrar em texto jornalístico. O recurso a estes dados é especialmente importante, dadas as particulares subtilezas do estatuto das gerundivas adnominais nos instrumentos de normalização linguística, já referidas. O presente trabalho visa dar um contributo para este estudo.
2.2. Limitações das tipologias binárias de e
Como veremos melhor na secção 4, a observação de corpora mostra que o uso de gerundivas adnominais – mesmo com valor restritivo – está muito difundido nas variedades padrão da língua, quer europeia quer brasileira. Mas mostra também – em sintonia com os juízos gramaticais da generalidade dos falantes e em linha com algumas “proscrições” dos instrumentos de normalização linguística mais antigos – que esse uso parece ser fortemente condicionado, não ocorrendo gerundivas como modificadores em muitos contextos.
Em termos semânticos, a distribuição é complexa e as descrições propostas na literatura – por e –, embora identifiquem aspetos importantes, não parecem dar conta de forma plenamente satisfatória da distribuição observada. A aceitação das construções parece envolver pelo menos dois fatores semânticos distintos: o primeiro é sem dúvida o mais complexo e desafiante do ponto de vista da descrição linguística e será explorado sistematicamente na secção 4; o segundo será retomado de forma muito breve na secção 5:
- (i.)
o tipo de verbo (ou expressão predicativa verbal) que ocorre no gerúndio adnominal; é relevante a consideração de valores aspetuais (ou de Aktionsart) do verbo na gerundiva (em linha com o que é feito por Bechara e Brito & Raposo), mas também de outros valores, como veremos – cf. as caixas contendo materiais perigosos estão num armazém especial vs. *as caixas sendo transportadas estão bem acondicionadas;
- (ii.)
o tipo localização temporal associado à oração gerundiva adnominal, que é tipicamente de sobreposição temporal, não de anterioridade ou posterioridade – cf. as caixas {contendo / que contêm} materiais perigosos estão na prateleira 5 vs. as caixas {*tendo contido / que contiveram} materiais perigosos estão na prateleira 5.
A primeira questão é a única considerada em e . Consideremos aqui algumas limitações das suas propostas. O seu grupo I, de estados permanentes (termo que adotarei aqui, por facilidade), integra, usando outra terminologia, o que na literatura tem sido descrito como expressões estativas individual-level (). Interessa, porém, destacar – o que, tanto quanto sei, não foi feito na literatura – que não se verifica que quaisquer estados correspondendo a essa caracterização semântica possam ser expressos através de orações gerundivas; ou seja, a estatividade associada a propriedades individual-level não é condição suficiente para a aceitação das gerundivas em causa. Contraste‑se (3), gramatical, com (4)-(5), agramaticais:
- (3)
[Os livros [contendo gravuras]] são os mais vendidos.
- (4)
*[Os livros [tendo capa dura]] são os mais vendidos.
- (5)
*[Os livros [sendo prefaciados por políticos conhecidos]] são os mais vendidos.
O seu grupo II, que integra expressões da classe aspetual atividade ou processo (em particular com valor episódico) e imbrica frequentemente com a conhecida competição entre gerúndio e infinitivo preposicionado (com a), pelo que é de assumir que tenha menor prevalência (e eventualmente aceitação) nas variedades que – como o PE padrão contemporâneo – favorecem as segundas formas, também apresenta variação, não considerada nos autores referidos. Em particular, há gerundivas que, apesar de também remeterem para atividades episódicas, parecem ter plena aceitação e, paralelamente, elevada frequência no CETEMPúblico; é o que acontece nomeadamente com as que usam o verbo transportar, como:
Finalmente – e como limitação importante das duas tipologias binárias em apreço –, não é claro qual é o lugar que nelas ocupam as gerundivas que designam estados temporários, ou estados stage-level (). O que interessa notar é que a transitoriedade – apresentada como traço distintivo entre os dois grupos propostos – é típica, mas não é exclusiva, das descrições de atividade. Há também descrições estativas de estados provisórios, episódicos, verificados meramente no ponto de perspetiva temporal da frase. De entre estas, algumas aceitam “morfologia progressiva” (que parece ser um critério essencial de distinção dos grupos, para ), outras não – cf. (7) vs. (8):
- (7)
[O Pedro {mora / está a morar} em Paris], mas vai mudar-se para Londres.
- (8)
[Esta caixa {contém / *está a conter} dez aparelhos], mas ainda vamos acabar de enchê-la.
As gerundivas que referem estados provisórios apresentam o mesmo tipo de diversidade dos dois grupos anteriores, em termos de compatibilidade com o gerúndio adnominal: algumas são compatíveis, com plena naturalidade e aceitação – cf. (9) –, outras exibem o tipo de estranheza (sinalizada abaixo com o símbolo “#”) que se associa a gerundivas que descrevem atividades episódicas do tipo de beber (sendo usadas preferencialmente em PE padrão com infinitivo preposicionado) – cf. (10); outras ainda são totalmente incompatíveis com o gerúndio adnominal – cf. (11)-(12).
- (9)
[As caixas [contendo dez aparelhos]] devem ser colocadas em cima da mesa. Ainda temos de acabar de enchê-las.
- (10)
#[Os portugueses [morando no estrangeiro]] podem votar antecipadamente.
- (11)
*[Os jornalistas [estando no Palácio de Belém]] tinham recebido convites na véspera.
- (12)
*[Os mamíferos [{conseguindo voar / possuindo asas}]] surgiram há vários milhões de anos.
Tendo estes aspetos em conta, proporei (em 4.2) uma arrumação das gerundivas adnominais em três grupos semânticos, em vez de em dois: grupo A – estados permanentes (ou individual-level); grupo B – estados temporários (ou stage-level); grupo C – atividades episódicas. Dentro de cada grupo, e para suprir algumas lacunas das análises já existentes, farei subagrupamentos, distinguindo certos traços semânticos das expressões nominais a que se aplica a gerundiva e tendo em conta o significado específico dos verbos no gerúndio. Trata-se de agrupamentos exploratórios para ter uma ideia mais clara do que é efetivamente usado, mas sem a ambição de oferecer um quadro exaustivo que permita perceber porque é que certos verbos ocorrem e outros não – uma questão para a qual não tenho, aliás, resposta, mas que conjeturo poder dever-se a uma situação de mudança linguística em curso: sendo as gerundivas adnominais, ao que parece, relativamente recentes na língua (como vários autores notam), é normal que não se expandam simultaneamente a todos os tipos de verbo em bloco.
Antes de observar os dados na secção 4, há uma questão prévia – relativamente complexa – que tem de ser considerada: a delimitação precisa da classe de gerundivas adnominais, já que há casos de possíveis disputas taxinómicas.
3. FRONTEIRAS DA CLASSE DAS ORAÇÕES GERUNDIVAS ADNOMINAIS
É assunção básica deste trabalho que é pertinente considerar na descrição gramatical uma classe autónoma de orações gerundivas designadas adnominais (ou adjetivas), dividida em duas subclasses, paralelas às das orações relativas: restritivas e apositivas. A tentativa de delimitação precisa desta classe enfrenta, porém, dificuldades, dado que as fronteiras com outras classes de orações gerundivas consideradas na literatura são, por vezes, difíceis de traçar. Adicionalmente, as taxinomias na literatura não são consensuais, colocando problemas particulares – cf. e.g. a tipologia de Móia & Viotti (, ), que não contempla a classe das “gerundivas predicativas” vs. as tipologias de ou, que a contemplam. Ora, no grupo de orações que eu classifico como genuinamente adnominais inscrevem-se exemplos que nas autoras referidas são classificados como “gerúndios predicativos”, como veremos.
Considerarei aqui duas questões relacionadas com fronteiras categoriais problemáticas:
- (i)
distinção entre gerundivas adnominais apositivas e gerundivas adverbiais realizadas entre sujeito e SV, que designarei, por facilidade, gerundivas adverbiais interpostas;
- (ii)
a classificação como gerundivas adnominais de certas instâncias de gerundivas predicativas do complemento direto e gerundivas predicativas dentro do sintagma nominal (na classificação de , seguida e.g. por Lobo , ).
3.1. Gerundivas adnominais vs. gerundivas adverbiais interpostas
Como é sabido, os adjuntos adverbiais têm geralmente uma grande mobilidade, podendo ocorrer em várias posições na frase, nomeadamente na posição final (cf. o Paulo esteve no Porto [ontem]), na posição inicial (cf. [ontem], o Paulo esteve no Porto) e em posições intermédias, de que interessa aqui destacar a posição entre sujeito e SV (o Paulo, [ontem], esteve no Porto). O mesmo acontece com uma parte significativa das orações gerundivas classificáveis como adverbiais, dependendo da relação discursiva que sinalizem (cf. ) ou do subtipo sintático (integradas vs. periféricas) a que pertençam (cf. ). Vejam-se exemplos, com sinalização da relação Meio (que, entre outras, parece favorecer as várias possibilidades de realização superficial):
A possibilidade instanciada em sequências como (13c) coloca desafios particulares à classificação das gerundivas como adnominais – em aposição a SN – ou adverbiais interpostas – realizadas numa posição entre sujeito e SV. Certas relações interproposicionais entre a frase matriz e a gerundiva encaixada (e.g. Meio, Causa, Concessão) facilitam a interpretação da gerundiva como adverbial interposta, já que correspondem a valores típicos daquelas orações. Adicionalmente, é muitas vezes difícil parafrasear estas construções com uma oração relativa no lugar da gerundiva, fazendo com que uma interpretação desta como adnominal não seja a mais plausível.
Noutros casos, diferentemente, é a interpretação da gerundiva como adnominal que é mais plausível. Isto acontece quando não parece haver uma relação interproposicional direta entre a frase matriz e a oração gerundiva, o que está frequentemente ligado à estranheza da realização da gerundiva em posição final de frase (e, de forma menos evidente, em posição inicial absoluta), típica das orações gerundivas adverbiais. É o que acontece em (14a) abaixo, onde encontramos, assim, o que pode ser considerado um exemplo inequívoco de uma gerundiva adnominal apositiva.
Noutros casos ainda, e crucialmente, não é clara a interpretação pretendida: por um lado, estão presentes valores interproposicionais típicos das orações gerundivas adverbiais e a realização da gerundiva em posição final ou inicial absoluta é possível (ainda que às vezes não seja a mais natural), mas, por outro lado, a paráfrase com um relativa apositiva também é perfeitamente natural. Na realidade, a interpretação global das frases é, nestes casos, equivalente, independentemente do estatuto – adnominal ou adverbial (interposto) – que se atribua à gerundiva. Eis alguns exemplos de interpretação dúbia das gerundivas, como genuinamente adnominais ou adverbiais interpostas, adaptados de exemplos reais de corpora:
Em suma, a fronteira que separa gerundivas adnominais apositivas e gerundivas adverbiais interpostas nem sempre é facil de traçar. Curiosamente, e ilustrando bem as dificuldades em apreço, apresentam como exemplo de uma gerundiva adnominal apositiva uma oração que parece claramente uma gerundiva adverbial interposta (com valor causal-condicional ou afim) – aqueles senhores, bebendo cerveja assim, não vão estar em condições de conduzir (contraste-se com o que seria claramente adnominal: aqueles senhores, bebendo cerveja no canto da sala, são o presidente e o vice‑presidente da empresa). Na análise que fiz dos excertos de corpora (nomeadamente do subcorpus 2, cf. § 4), surgiram-me frequentemente dúvidas. Optei por considerar essencialmente – na parte deste trabalho em que há contagens – as gerundivas que, como a de (14a), têm uma inequívoca interpretação como adnominais e algumas que, apesar de a sua interpretação como adverbiais não ser de excluir totalmente, têm muito plausivelmente uma interpretação como adnominais.
As dificuldades de classificação em causa – enunciadas de forma mais genérica, no âmbito da distinção entre apostos nominais e adjuntos adverbiais – são discutidas em , que consideram, por um lado, que algumas expressões classificadas na literatura como apostos nominais (com valores de causa, tempo, comparação e concessão) devem ser consideradas adjuntos adverbiais (e.g. orações adverbiais reduzidas), mas reconhecem, por outro lado, que há genuínos apostos nominais (e.g. orações relativas) que apresentam valores semânticos típicos de adjuntos adverbiais, inclusive causais e concessivos: “muitos apostos que, dependendo do contexto pragmático em que se insere a frase, manifestam um valor causal ou um valor concessivo [...] não são analisáveis como orações adverbiais”.
3.2. A classificação como gerundivas adnominais de certas “gerundivas predicativas” (Lagunilla 1999)
não considera que existam em espanhol genuínos gerúndios adnominais, pelo menos restritivos, isto é, plenamente equivalentes do ponto de vista sintático e semântico a orações relativas restritivas. A exceção são os raros gerúndios que considera “lexicalizados”, como ardiendo (ardendo) ou hirviendo (fervendo), que têm, aliás, contrapartidas com propriedades semelhantes em português e são discutidos em vários textos gramaticais tradicionais referidos em 2.1: “el gerundio puede ser predicativo o adjunto, pero no un modificador restrictivo” (). A autora sublinha que, neste aspeto, o gerúndio espanhol contrasta com as formas em -ing do inglês, que podem ser usadas regularmente em modificadores nominais, inclusivamente em “la posición de sujeto en las cláusulas copulativas identificativas o ecuativas”, um contexto que parece ser considerado distintivo por ela: *los niños durmiendo son mis hijos.
Esta afirmação tem de ser compreendida no quadro da tipologia de gerúndios de , que integra uma grande – e heterogénea – classe de (chamados) “gerúndios predicativos”, dividida em 4 subclasses: gerúndios predicativos do sujeito, gerúndios predicativos do complemento direto, gerúndios predicativos dentro do sintagma nominal e gerúndios independentes. Ora, vários gerúndios que eu classifico aqui como adnominais são colocados pela autora nesta macroclasse. A questão é em parte terminológica e em parte de análise gramatical. Interessa considerar essencialmente dois casos de discrepância classificativa.
Caso 1. Orações gerundivas em argumentos do verbo haver (e afins), em construções ditas existenciais
classifica como “gerúndio predicativo do complemento direto” o que ocorre em SNs complementos do verbo haber (haver), nas chamadas “construções existenciais”, comparáveis às “there-constructions” do inglês – e.g. hay un niño jugando en la calle. Porém, o complemento do verbo haver, em português (e presumo também que o de haber, em espanhol), mesmo quando estão presentes orações gerundivas, é claramente um SN, não uma estrutura de tipo small‑clause. Isso pode comprovar-se com a possibilidade de pronominalização (acusativa), podendo (17b) ser uma continuação perfeitamente plausível de (17a), com retoma anafórica de toda a sequência entre parênteses retos:
Assim, parece-me indesejável a exclusão das gerundivas que ocorrem em SNs complemento destes predicados (nas construções existenciais relevantes) de uma classe de “gerundivas adnominais” (neste caso, claramente restritivas). Em português, esta construção está muitas vezes sujeita à competição com o infinitivo preposicionado (com a), embora isso nem sempre aconteça (cf. e.g. (18) e (19), em que poderia ocorrer a flutuar e a transportar, vs. (20), em que não poderia ocorrer a conter), pelo que não é porventura tão comum em PE como em espanhol ou em PB, sendo ainda assim muito frequente. Adicionalmente, como veremos (em 4.2), os tipos de verbos que ocorrem no gerúndio nesta construção existencial são muito semelhantes aos que ocorrem nas outras gerundivas adnominais (e.g. contendo, transportando, visando, etc.). Veja-se:
- (18)
“[...] havia [cadáveres flutuando por todo o lado] [...]. (ext69590-soc-93b-2)
- (19)
“O acidente nada tem de extraordinário. Há [muitos camiões transportando matérias perigosas pelo país] [...].” (ext547774-soc-98a-1)
- (20)
“[...] nem sequer se aperceberam que lá dentro havia também [uma carteirinha azul contendo cinco eurocheques] [...].” (ext2996-soc-98b-1)
Além de haver, são frequentes também as construções existenciais com o verbo existir (envolvendo neste caso um SN sujeito, tipicamente posposto, em vez de um SN complemento direto):
- (21)
“Neste âmbito, [...] fica-se pela proclamação de intenções: existe [legislação visando diminuir os riscos], mas a fiscalização é praticamente inexistente.” (ext310774-soc-97b-1)
No português brasileiro, a estes dois verbos, que também são comummente usados, há que acrescentar ter (com valor existencial):
Caso 2. Orações gerundivas aplicadas a “nombres de comunicación” (e afins)
classifica como “gerúndio predicativo dentro do sintagma nominal” o que ocorre em orações gerundivas que são claramente do tipo que aqui designo como adnominal, correspondendo, aliás, a grande parte das que são discutidas na secção 4 (no grupo A) e das que têm aceitação mais generalizada entre os falantes da variedade padrão em Portugal. Seguem‑se exemplos da autora, os de (24) diretamente retirados de texto jornalístico (El País, 1995-1997):
A autora disserta longamente sobre estes casos, chamando a atenção para as semelhanças e as diferenças entre estas gerundivas e modificadores restritivos, concluindo – a meu ver, de forma não convincente – que não pertencem à mesma macroclasse (de modificadores) que as orações relativas restritivas ou os SAs restritivos. Refere, em particular, três diferenças entre estes gerúndios e os “genuínos” modificadores nominais restritivos (como as orações relativas restritivas), nenhuma das quais – curiosamente se verifica – para as contrapartidas portuguesas destas construções. Destaco as seguintes duas diferenças:
- (i)
estas gerundivas não podem surgir na posição de sujeito de construções com o verbo ser de identidade (ao contrário das orações relativas restritivas com valor afim) – cf. (25); mas veja-se em português (26) e (27), plenamente gramaticais:
- (25)
El artículo {*condenando / OK que condena} el atentado es el mío.
()
- (26)
[O artigo condenando o atentado] (de que te falei) é esse que está aí na primeira página do jornal.
- (27)
[A caixa contendo produtos tóxicos] é esta.
- (ii)
a interpretação destas gerundivas é sensível ao conteúdo do verbo principal (ao contrário das orações relativas restritivas), o que se evidencia em contrastes como os de (28) e na agramaticalidade de (29), mas veja-se em português (30) e (31), plenamente gramaticais:
- (28)
{Realizaron/*Censuraron} un reportaje contando lo sucedido.
()
- (29)
*Puso varias faltas en [una carta pidiendo dinero]. ()
- (30)
[Uma reportagem mostrando o que se tinha passado na zona de guerra]
{foi censurada pelo Governo / foi realizada recentemente}.
- (31)
O revisor assinalou várias gralhas n[a carta reivindicando os direitos dos trabalhadores que ia ser enviada à administração].
Mais genericamente, em meu entender, o facto de as orações gerundivas adnominais restritivas terem uma distribuição mais limitada que as orações relativas restritivas (cf. diferenças assinaladas na secção 5 adiante) não legitima por si só a assunção (de Lagunilla) de que estas orações têm funções sintáticas distintas (até porque podem ocorrer em variação livre entre si) e de que, consequentemente, não existem gerundivas apelidáveis de genuinamente adjetivas, ou adnominais restritivas.
4. GERUNDIVAS ADNOMINAIS EM TEXTO JORNALÍSTICO
4.1. Considerações metodológicas
As regularidades gramaticais por trás da maior ou menor frequência (e consequente maior ou menor aceitação) de certos verbos em gerundivas adnominais não são, como antes afirmei, evidentes. As situações são muito variadas, indo da elevada frequência de uso – e possível plena aceitação – de certos verbos ao não uso – e rejeição total – de outros, passando por um espetro variável de situações intermédias em termo de frequência e aceitação. As tipologias binárias de e – com consideração essencialmente dos fatores de estatividade e imanência (grupo I) e dinamicidade e transitoriedade ou episodicidade (grupo II) – dão pistas importantes, mas requerem afinamento.
Para tentar obter um retrato tão sistemático e pormenorizado quanto possível da situação real de uso no PE padrão contemporâneo, recorri aos corpora online da Linguateca, em especial o CETEMPúblico. Esta tarefa apresenta dificuldades. Em particular, não é fácil fazer pesquisas automáticas nesses corpora de que resultem apenas orações gerundivas do tipo que interessa. Por exemplo, com a pesquisa de gerúndios adjacentes a nomes (imediatamente adjacentes ou com algumas palavras de intermédio), obtém-se geralmente um número muito elevado de gerundivas de vários tipos irrelevantes (incluindo independentes, argumentais e adverbiais), requerendo os resultados uma leitura e análise individual (que é muito morosa) para fazer a triagem. Assim, essas pesquisas pouco restringidas não servem para obter listas mais ou menos exaustivas de verbos (ou sequer para obter dados quantitativos fiáveis sobre o uso), mas tão‑só para obter exemplos ilustrativos.
As pesquisas que interessam devem cumprir dois requisitos: sistematicidade, de modo a poder gerar uma lista genuinamente representativa dos predicados verbais usados em gerundivas adnominais (da qual se possam inferir – ou colocar hipóteses bem fundamentadas sobre – os fatores condicionantes da distribuição), e manejabilidade, gerando idealmente um número de dados suficientemente limitado, com o mínimo de gerundivas irrelevantes, que permita uma análise individual (que é indispensável) num tempo razoável.
Tendo em conta estes requisitos, procurei essencialmente dois subtipos de construções: primeiro, orações gerundivas adnominais em SNs-sujeito de frases matriz, quer sem vírgula entre nome e verbo no gerúndio, ou seja, predominantemente restritivas, quer com vírgula, ou seja, apositivas. Exemplos:
- (32)
“[O atentado [visando o chefe da polícia]] é um desafio lançado às autoridades [...].” (ext1381393-soc-95a-1)
- (33)
“[Os barcos, [transportando cerca de 20 mil homens],] estavam frente a Ceuta no dia 12 [...].” (ext953139-nd-94a-1)
Para manter os resultados em números manejáveis, fiz as seguintes restrições à pesquisa: (i) só nomes imediatamente adjacentes a gerúndios (instrução [pos="N"] [temcagr="GER"]), ou separados apenas por vírgula (instrução [pos="N"] "," [temcagr="GER"]); (ii) nomes precedidos imediatamente por uma seleção (ainda assim, relativamente ampla) de especificadores, viz. artigos definidos, artigos indefinidos e demonstrativos, singulares e plurais, masculinos e femininos; quantificadores universais e uma seleção de quantificadores indefinidos, plurais, masculinos e femininos (todos os; muitos, vários, alguns, poucos, diversos); uma seleção de numerais cardinais plurais (de dois a vinte, e ainda cinquenta, cem, mil); (iii) especificadores apenas com letra maiúscula, para maximizar nos resultados a presença de um subtipo de estruturas inequivocamente representativas de gerundivas adnominais, nomeadamente, aquelas em que a gerundiva integra um SN-sujeito (como em (32) e (33)).
Com estas restrições, foi possível obter – após leitura e análise gramatical individual de cada um dos cerca de 1100 excertos obtidos (402 sem vírgula e 688 com vírgula) – um conjunto de 450 ocorrências de gerundivas genuinamente adnominais, divididas em dois conjuntos:
-
- subcorpus 1: 263 ocorrências sem vírgula entre nome e verbo no gerúndio, ou seja, predominantemente restritivas;
-
- subcorpus 2: 187 ocorrências com vírgula, ou seja, apositivas.
Procurei ainda um segundo tipo de estrutura: orações gerundivas adnominais em construções existenciais dependentes dos verbos haver e existir . Exemplos:
- (34)
“Numa parede há [um quadro [representando um tigre a rugir]] [...].” (ext1003753-pol-97b-2)
- (35)
“É que, em boa verdade, existirão [elementos [condicionando, à partida, a decisão]].” (ext1489786-nd-92a-2)
A pesquisa de nomes seguidos imediatamente de verbos no gerúndio e precedidos imediatamente, ou com uma palavra de intermédio, por formas de haver ou existir ([lema="haver|existir"] [] {0,1} [pos="N"] [temcagr="GER"]) gerou o
Foram ainda feitas, de forma não sistemática, algumas pesquisas menos restringidas – nomeadamente sequências nome-gerúndio (com e sem vírgula interveniente), sem restrição sobre os especificadores – para obter exemplos ilustrativos de gerundivas adnominais noutros contextos sintáticos.
Os três subcorpora obtidos permitem esboçar uma lista representativa dos verbos efetivamente usados em gerundivas adnominais, em texto jornalístico português, emblemático da variedade padrão do PE contemporâneo, que será apresentada de seguida. A sua análise, complementada com as pesquisas adicionais referidas, revela ainda alguns factos gramaticais gerais, que destacarei na secção 5.
4.2. Subclasses de verbos usados em gerundivas adnominais
Farei seguidamente uma análise pormenorizada, e com quantificação de frequência, só do subcorpus 1 (que integra predominantemente gerundivas restritivas, o tipo que suscita mais dúvidas em termos de aceitação entre os gramáticos tradicionais). Tentarei agrupar os verbos encontrados de forma a identificar aqueles que são mais comummente usados, e porventura mais bem aceites. Alargarei as considerações, mas com menos pormenor, às gerundivas dos subcorpora 2 e 3 e a todas as outras gerundivas obtidas em pesquisas menos restringidas.
As arrumações propostas – que têm um caráter ainda provisório – têm 3 níveis: (i) três grupos principais definidos a partir de grandes classes aspetuais – estados permanentes (grupo A), estados provisórios (grupo B) e atividades episódicas (grupo C), seguindo e adaptando as sugestões de e ; (ii) vários subgrupos (A1, A2, A3; B1, B2; C1, C2), refletindo diferenças no tipo de entidades referidas pelas expressões nominais modificadas (e.g. humanas ou não humanas); (iii) agrupamentos informais de verbos, dentro de cada subgrupo, pela proximidade do seu significado. A lista de verbos apresentada de seguida é exaustiva para o subcorpus 1 (mas assumo que muito próxima da que seria obtida com a adição dos outros dois subcorpora) e julgo que oferece um retrato bastante fiel do uso real das diferentes expressões predicativas em gerundivas adnominais na variedade padrão (o qual se alinha tendencialmente com a maior ou menor aceitação por parte dos falantes).
Grupo A. Orações gerundivas identificadoras de estados permanentes (propriedades inerentes individual‑level) – 175/263 registos (67% das ocorrências)
Grupo A1. De longe, o mais numeroso, com 160 registos. Verbos em orações que identificam estados permanentes de entidades não humanas, mas que resultam da ação humana ou a envolvem, incluindo objetos (e.g. livros, quadros, exposições, leis, abaixo-assinados, cartas, programas,...) e situações (e.g. ataques, atentados, manifestações,...). As construções incluem predominantemente (mas não só) unidades que refere como “nombres de comunicación” (cf. 3.2).
-
- 14 registos de representando 1 e afins (mostrando, reproduzindo)
-
- 24 registos de estabelecendo e afins (definindo, estipulando, indicando, apontando, assinalando, anunciando, dando como, enunciando, descrevendo, contando, dando conta, contemplando, formalizando, publicitando, consubstanciando, confirmando, estendendo)
- (38)
“[Um acordo estabelecendo que a Roménia se compromete a receber os seus cidadãos em situação ilegal na Alemanha [...]] será assinado na próxima quinta-feira [...].” (ext1082234-soc-92b-2)
- (39)
“[Um protocolo formalizando esta acção de mecenato] é assinado hoje à tarde no Palácio Nacional da Ajuda (…).” (ext525104-clt-98a-1)
- (38)
-
- 11 registos de permitindo e afins (autorizando, aprovando, defendendo, pactuando com) e antónimos (proibindo, condenando, rejeitando, pondo em causa)
- (40)
“[Um decreto permitindo a parte dos recrutas [...] o serviço militar na república de origem] não travou a hemorragia.” (ext839014-nd-91b-2)
- (41)
“[Uma resolução rejeitando toda e qualquer forma de participação cipriota-turca nas negociações [...]] foi votada na Assembleia [...].” (ext1234885-pol-98a-1)
- (40)
-
- 16 registos de pedindo e afins (exigindo, solicitando, reclamando, reivindicando, apelando, propondo)
-
- 15 registos de visando
-
- 26 registos de contendo 1 representando propriedades essenciais (cf. contendo 2 representando propriedades acidentais no grupo B1, a seguir) e afins (incluindo, integrando 1, reunindo 1); os nomes, no caso de contendo 1, são essencialmente do tipo que refere como “nombres de comunicación”
-
- 45 registos de envolvendo
-
- 9 registos de outros verbos (prevendo, ameaçando, retomando, abrangendo, comparando, opondo, medindo)
Grupo A2. 9 registos. Verbos em orações que identificam estados permanentes de entidades coletivas humanas (e.g. delegações, equipas,...), respeitantes ao que elas representam ou à sua composição.
-
- 3 registos de representando 2 + 6 registos de reunindo 2 e afins (integrando 3, envolvendo 2, compreendendo)
Grupo A3. 6 registos. Verbos em orações que identificam estados permanentes de outro tipo de entidades.
-
- 3 registos de ligando, em referência a estradas + 1 registo de marginando, em referência a acidentes geográficos + 2 registos de correspondendo, expressando relações de semelhança ou equivalência
- (50)
“[A estrada ligando Darumalan a Cabul] era regularmente varrida por tiros de ‘rockets’ [...].” (ext1514831-clt-96b-1)
- (51)
“[As encostas marginando a estrada] ou estão cobertas de plantações da chamada acácia americana [...].” (ext1373390-nd-95b-2)
- (52)
“[Um corpo correspondendo à descrição de Marcelo] foi encontrado numa vala (…).” (ext30697-clt-soc-94a-1)
- (50)
Também são deste tipo as orações gerundivas com datando, que merecem um nota especial. Elas não parecem gozar de aceitação consensual na variedade padrão como restritivas, e não ocorrem de facto no subcorpus 1, mas há pelo menos 13 registos no CETEMPúblico (encontrados em pesquisas mais alargadas) – cf. (53). A aceitação de datando em gerundivas apositivas parece ser melhor; há 3 exemplos no subcorpus 2 e pelo menos mais 17 registos encontrados em pesquisas mais alargadas – cf. (54).
- (53)
“Mayslim [...] foi condenado a 12 anos de prisão por se ter apoderado de [uma pedra tumular datando de 1373] [...].” (ext584615-des-94a-1)
- (54)
“[O mais antigo vestígio de escrita grega, datando do século xvii a.C.], foi descoberto no Peloponeso [...].” (ext398583-clt-96a-1)
Para terminar a apresentação deste grupo A, seguem-se três exemplos ilustrativos nos contextos dos subcorpora 2 e 3 e em outros contextos sintáticos, respetivamente:
- (55)
“[A decisão, visando tornar a oferta mais aliciante,] tem igualmente como objectivo eliminar [...] conflitos [...].” (ext997477-eco-96a-1)
- (56)
“Os agentes disseram que tinha havido [uma chamada alertando para um grupo de pessoas que tentava arrombar os portões da obra].” (ext1024529-soc-96b-2)
- (57)
“Os norte-americanos parecem estar apenas interessados em sexo, morte e [escandaleiras envolvendo celebridades].” (ext158223-soc-97b-1)
Grupo B. Orações gerundivas identificadoras de estados transitórios (propriedades stage-level) – 63/263 registos (24% das ocorrências)
Grupo B1. 16 registos. Verbos em orações que identificam estados transitórios de entidades físicas não humanas; destaca-se o primeiro conjunto abaixo, pela sua frequência relativamente elevada e boa aceitação
-
- 14 registos de contendo 2, representando propriedades acidentais de entidades físicas (e.g. caixas, sacos,...) relacionadas com conteúdo
-
- 2 registos de outros verbos (integrando 2, beneficiando)
Grupo B2. 47 registos. Verbos em orações que identificam estados transitórios de entidades humanas; destacam-se os primeiros dois conjuntos abaixo, pela sua frequência relativamente elevada e boa aceitação.
-
- 32 registos de aparentando (relacionados com aparência de idade)
-
- 9 registos relacionados com indumentária e empunhamento de armas e objetos: vestindo, empunhando e afins (envergando, usando óculos; transportando consigo)
-
- 6 registos de outros estados transitórios: vivendo, apresentando sinais, sofrendo, representando 2 , agindo
- (65)
“[Os sem-abrigo vivendo na Bélgica] aproveitaram [...] [para] reclamar contra o círculo vicioso para que os remeteu o sistema de apoio social.” (ext1418640‑soc‑94b-1)
- (66)
“[Um homem sofrendo de perturbações mentais [...]] esteve ‘hospedado’ durante quinze dias na esquadra da PSP [...].” (ext1153516-soc-95b-1)
Seguem-se três exemplos ilustrativos do grupo B nos contextos dos subcorpora 2 e 3 e em outros contextos sintáticos, respetivamente:
- (67)
“[Dois sacos, contendo cianeto de sódio e ácido sulfúrico,] foram descobertos [...].” (ext1000615-soc-95b-1)
- (68)
“Verifico que há [duas cidades coexistindo].” (ext541734-nd-93b-2)
- (69)
“[...] a NASA chegou a comercializar [...] umas esferas ocas de vidro, [...] cheias de [micro‑organismos vivendo em simbiose] [...].” (ext471202-clt-97a-1)
- (65)
Grupo C. Orações gerundivas identificadoras de atividades (tipicamente episódicas) – 25/263 registos (quase 10% das ocorrências). É porventura o tipo de construção em que a aceitação é menor, mas algumas formas – em especial transportando – destacam-se pela elevada frequência (e boa aceitação) do seu uso.
Grupo C1. 20 registos. Verbos em orações que identificam atividades episódicas de entidades humanas ou animadas, ou de entidades não humanas, mas que envolvem humanos, como as respeitantes à circulação de veículos e afins.
-
- 6 registos de atividades episódicas de entidades humanas ou animadas (pescando, dormindo, afirmando, formando bicha, deambulando, frequentando)
-
- 14 registos de transportando e afins (circulando), com referência a veículos ou situações que envolvem veículos (e.g. voos)
Grupo C2. 5 registos. Verbos em orações que identificam atividades episódicas de entidades não humanas ou animadas.
O primeiro subgrupo de C1 (envolvendo – direta ou indiretamente – entidades humanas ou animadas) é especialmente interessante, porque representa prototipicamente as formas consideradas menos frequentes e pouco naturais por . A ocorrência de gerúndios com este tipo de verbos não parece ser de facto muito produtiva (a julgar pelos números acima). Para explorar um pouco mais a questão, fiz pesquisas mais alargadas (com uma seleção de verbos de atividade típicos imediatamente adjacentes a nomes), de que resultaram pelo menos uma trintena de excertos com gerundivas adnominais restritivas. Entre as formas usadas, destacam-se fugindo (6 registos) – estas porventura prototípicas de estruturas sentidas como menos naturais em registos padrão do PE – dormindo, cantando, gritando e passeando (2 a 5 registos cada). O que isto mostra é uma forte tendência para incorporar este tipo de gerúndio “proscrito” em registos formais, documentando uma área crítica de mudança linguística, longe da estabilização e consenso.
- (75)
“Um [...] cargueiro nigeriano com [2 mil liberianos fugindo à luta do seu país] saiu ontem de Monróvia [...].” (ext1099969-pol-96a-1)
- (76)
“[Centenas de homens gritando ‘Alá é grande!’] encaminharam-se para uma fila de soldados [...].” (ext772455-pol-93b-1)
- (77)
“[...] a explosiva Marabunta fazia babar [os velhos ricaços passeando a peruca platinada no Kaiser descapotável] [...].” (ext288274-nd-94a-2)
Seguem-se três exemplos ilustrativos do grupo C nos contextos dos subcorpora 2 e 3 e em outros contextos sintáticos, respetivamente:
- (78)
“[O sol, batendo impiedosamente no tabuleiro,] foi um problema para os mais incautos [...].” (ext523765-soc-98a-2)
- (79)
“Há muitos [camiões transportando matérias perigosas pelo país]; o que é que pode impedir um deles de ter um acidente?” (ext547774-soc-98a-1)
- (80)
“Na pista continuavam a movimentar-se normalmente [...] [viaturas transportando passageiros e cargas].” (ext84257-soc-93b-2)
4.3. Gerundivas adnominais em português brasileiro – breve nota
Para terminar esta secção, farei algumas considerações, breves, sobre a ocorrência de gerundivas adnominais em português brasileiro, em registos comparáveis. Pesquisas exploratórias feitas no NILC/São Carlos, corpus em que predomina o texto jornalístico, parecem apontar para uma situação que não diverge muito da portuguesa, a saber: elevada frequência (e presume-se boa aceitação) de estruturas dos grupos A e B – cf. (81) para restritivas e (82) para apositivas. Não assumo, porém, que a lista de verbos nas duas variedades seja necessariamente coincidente; por exemplo, certos predicados de medição associados a estados stage-level (medindo, pesando,...), como os de (83), parecem especialmente pouco naturais em PE. Nos casos das estruturas do grupo C, é porventura de considerar que há maior aceitação em PB que em PE, em ligação com a maior frequência de gerúndios em contextos onde no PE padrão surgem preferencialmente infinitivos preposicionados – cf. (84). Deixo comparações mais sistemáticas entre o PE e o PB para investigação posterior.
-
(81)
- a.
“[A polêmica envolvendo o artilheiro] monopolizou o ambiente [...].” (par=63057)
- b.
“[...] a nave espacial [...] levou ao espaço [um cubo de vidro contendo os elementos básicos da Terra] [...].” (par=48380)
- c.
“[...] dois anos antes de me aposentar, publiquei [um livro defendendo a tese da idade mínima].” (par=Brasil--94a-3)
- a.
-
(82)
- a.
“Pela primeira vez [o tema, envolvendo o retratista Picasso,] é abordado num museu.” (par=135571)
- b.
“A excessiva exposição a[o toner das máquinas, contendo silício e ferro,] provocou a doença [...].” (par=Cotidiano--94a-2)
- c.
“Os corpos de [dois meninos, aparentando entre 12 e 15 anos,] foram encontrados carbonizados [...].” (par=Cotidiano--94a-1)
- a.
-
(83)
-
(84)
5. CONCLUSÕES E PISTAS PARA INVESTIGAÇÃO FUTURA
A análise dos três subcorpora constituídos a partir do CETEMPúblico, complementada com a análise de resultados de várias pesquisas adicionais, confirma as hipóteses da literatura de que as orações gerundivas adnominais (ao contrário das orações relativas) são fortemente restringidas do ponto de vista dos valores aspetuais, ocorrendo predominantemente com descrições de situações atélicas, ainda que rejeitando – por razões que não são completamente claras – a associação a muitas situações deste grupo – e.g. com sendo, estando, tendo, conseguindo, etc. (cf. (4)-(5) ou (11)-(12) acima). Frequentemente, as predicações são estativas (grupos A e B) e, menos frequentemente, envolvem atividades, básicas ou derivadas (grupo C). A competição gerúndio/infinitivo existe mais nos casos do grupo C, mas nem é exclusiva deles nem se verifica necessariamente com eles.
Interessa ainda destacar que as propriedades aspetuais referidas não são condição suficiente para garantir a legitimidade da ocorrência de gerundivas adnominais. Aliás, como já referi, não fui capaz de identificar nenhuma condição com essas características, parecendo a distribuição das gerundivas adnominais ter a assistematicidade típica das mudanças linguísticas em curso (cf. e.g. a diferença entre formas semanticamente muito próximas: uma caixa {contendo / que contém} produtos tóxicos vs. uma caixa {*tendo / que tem (dentro)} produtos tóxicos).
A análise dos três subcorpora, complementada com as pesquisas adicionais, revela alguns outros factos gramaticais interessantes, que penso não terem sido ainda notados (ou pelo menos explorados com pormenor) e que passo a enunciar, em jeito de conclusão – reiterando aspetos já observados acima – ou de pistas para investigação posterior – observando factos novos.
Primeiro: as gerundivas adnominais – inclusive (e até especialmente) as restritivas – são relativamente frequentes em português europeu padrão e, adicionalmente, com certos verbos, são construções excecionalmente frequentes e de aceitação muito generalizada; destacam-se, em especial, pelo elevado número de ocorrências, as formas envolvendo (68), aparentando (65), contendo (40), representando (23), visando (21) e transportando (20).
Segundo: os predicados que ocorrem em gerundivas restritivas integradas em SNs sujeito de frases matriz (subcorpus 1) parecem de tipos muito semelhantes aos que ocorrem em SNs integrados em construções existenciais, dependentes de haver e existir (subcorpus 3), mas com frequências ligeiramente diferentes para os predicados dos grupos B (24% vs. 6%) e C (10% vs. 21%), sendo as frequências muito semelhantes para o grupo (maioritário) A (67% vs. 73%). Não quantifiquei os dados do subcorpus 2, mas uma observação rápida desse subcorpus não parece revelar diferenças significativas relativamente aos outros dois subcorpora no que diz respeito ao verbos usados no gerúndio (cf., no entanto, observação abaixo, no ponto “quinto”).
Terceiro: a construção sintática com modificadores nominais gerundivos – tão vituperada por alguns gramáticos conservadores – parece plenamente integrada no sistema gramatical, observando-se, curiosamente, não só a repetição da construção em posições muito próximas – cf. (87) e (88) –, a coordenação entre gerundivas adnominais – cf. (89) e (90) – e a combinação de gerundivas restritivas e gerundivas apositivas no mesmo sintagma nominal – cf. (91)
- (87)
“[Dois homens aparentando [idades rondando os 20 anos]] apanharam o táxi na Praça S. João Bosco [...].” (ext1040479-soc-98a-1)
- (88)
“[Um homem aparentando 40 anos] furtou [...] [uma caixa contendo 236 contos] na agência de Cascais da Caixa [...].” (ext1281474-soc-95b-1)
- (89)
“[Um homem usando óculos escuros e empunhando uma pistola] entrou anteontem [...] na dependência bancária [...].” (ext1497729-soc-95b-1)
- (90)
“[Um abaixo-assinado pedindo a libertação de Xanana Gusmão e contendo cerca de doze mil assinaturas] foi ontem entregue [...].” (ext1334444-pol-93b-1)
- (91)
“O optimismo [...] seria relativizado [...] com a descoberta dos [...] ‘Manuscritos do Mar Morto’, [...] [[um [conjunto de rolos contendo cópias de livros bíblicos]], [datando dos séculos dois e um antes de Cristo e do primeiro século da era cristã]].” (ext1331643-soc-93b-2)
como também, o que é especialmente interessante, a possibilidade de coordenação de gerundivas adnominais restritivas com outros (inequívocos) modificadores restritivos, nomeadamente orações relativas restritivas – cf. (92) –, orações participiais restritivas ou sintagmas adjetivais restritivos – cf. (93) –, ou orações infinitivas preposicionadas restritivas – cf. (94). Esta possibilidade combinatória é um fortíssimo argumento para a sua classificação como genuínas gerundivas adnominais (contra ).
- (92)
“A guerra civil em Angola trouxe para Portugal [muitas pessoas fugindo ao conflito ou que desertaram ao serviço militar].” (ext249512-soc-93a-1)
- (93)
“[Um indivíduo vestindo uma camisola ensanguentada e armado com uma pistola] assaltou [...] um posto de abastecimento da Galp [...].” (ext815166‑soc‑95b‑1)
- (94)
“Também aqui há [uma regra resumindo a reflexão e [...] a ensinar desde pequeninos aos portugueses: ‘Trabalhar a aprender, para poder viver a trabalhar’].” (ext1473818-nd-94a-2)
Quarto: a construção sintática com apostos nominais gerundivos também parece plenamente integrada no sistema gramatical, observando-se muitas coordenações ou ligações assindéticas com apostos de outras categorias, incluindo relativas apositivas (como no caso de (95) e (96)):
- (95)
“A neve e o gelo [...] estiveram na origem de três acidentes, [envolvendo várias dezenas de veículos], [que provocaram pelo menos seis feridos].” (ext514089-soc-91a-2)
- (96)
“A gravura, [representando Cristo crucificado], [com cuja descrição [...] se inicia o romance], é [...] a condensação pictórica [...] da história a narrar [...].” (ext1545562-nd-91b-1)
- (97)
“O rio é o mesmo. As casas, [ardendo ao sol], [abandonadas pelo tempo], repetem o desenho das velhas construções [...].” (ext363404-clt-95a-1)
- (98)
“Um abaixo-assinado, [reunindo mais de 800 assinaturas e entregue à transportadora pelos eleitos locais [...]], levou a Vimeca a partir mais cedo [...].” (ext1009145-soc-96b-2)
- (99)
“Três exploradores, [arrastando os seus próprios trenós e preparados para enfrentar temperaturas da ordem dos 55 graus negativos], estão neste momento a caminho do pólo norte [...].” (ext245876-soc-92a-1)
- (100)
“O petroleiro, [ostentando o pavilhão de Malta mas propriedade de armadores gregos,] vinha da Venezuela [...].” (ext541274-soc-92a-2)
- (101)
“O rochedo, [pesando entre 60 a 80 toneladas e com uma dimensão de 210 metros cúbicos], esmagou dois automóveis [...].” (ext535510-soc-95b-1)
Quinto: como referi acima, os predicados que ocorrem nas gerundivas restritivas e nas apositivas parecem ser de tipos semelhantes; porém, é possível que haja diferenças entre os dois subgrupos, que remeto para investigação posterior; noto em particular alguns factos a investigar: a ocorrência de construções sem paralelo nas restritivas, como as que envolvem um sujeito pós-verbal não nulo, e.g. um “quantificador flutuante” – cf. (102) –, ou as que usam gerúndio composto – cf. (103). Importará investigar as particularidades gramaticais destas construções para determinar se são genuínas gerundivas adnominais apostas (de algum subtipo especial) ou têm algum outro tipo de estatuto.
- (102)
“As fotografias, [funcionando as quatro como uma série], retratam paisagens urbanas, desertas [...].” (ext937052-clt-94b-1)
- (103)
“Este projecto, [tendo já anteriormente apresentado espectáculos preparatórios [...] em Nova Iorque], é em Portugal enriquecido com os contributos trazidos pela comunidade angolana [...].” (ext621644-clt-93b-1)
A estas construções, haverá que acrescentar, para estudo futuro, as que possuem especificadores (associados a núcleos nominais nulos) pré-gerúndio, mas que não podem ter uma interpretação como gerundivas adverbiais interpostas; trata-se de casos muito particulares de gerundivas possivelmente adnominais (sem sujeito nulo e compatíveis com gerúndio composto), funcionando como uma espécie de parentéticas:
- (104)
“Um autocarro repleto de passageiros, [ alguns viajando no tejadilho], caiu ontem de uma ponte perto de Daca [...].” (ext137714-soc-91a-2)
- (105)
“O título de ‘Porcos e Couraçados’ é obviamente metafórico [...], mas também uma referência imediata aos barcos de guerra e aos suínos, [ estes acabando literalmente por entrar em cena na alucinante sequência final].” (ext214897‑clt‑91b-2)
- (106)
“Na cruz grande foram colocadas 117 cruzes mais pequenas de diferentes cores, [ cada uma representando uma jovem mulher morta ao longo dos últimos cinco anos].” (ext102218-soc-98b-2)
- (107)
“Depois veio um longo eclipse de 50 anos, com Furtwangler e Karajan, [ este tendo despertado para Mahler tardiamente].” (ext38535-clt-95a-1)
- (108)
“O grande evento foi afinal a não participação de “Schindler's List”, de Spielberg ([ este tendo optado por outra estratégia de lançamento]), que ainda não estreou mas já tantas polémicas causa na Alemanha.” (ext93446-clt-94a-1)
Sexto: observa-se uma diferença interessante – de natureza essencialmente sintática – entre modificadores relativos e modificadores gerundivos, respeitante à possibilidade de elipse nominal; as orações relativas restrititivas – e bem assim a generalidade dos modificadores restritivos – aceitam bem a combinação com núcleos nominais nulos (sinalizados “[N]” abaixo), desde que um especificador seja realizado, sendo as construções relevantes extremamente comuns na língua, inclusive com artigos definidos e demonstrativos:
- (109)
os documentos que estão na pasta azul / os [N] que estão na pasta azul
- (110)
aqueles documentos de que te falei / aqueles [N] de que te falei
Já as gerundivas restritivas não parecem aceitar bem a construção, com esse tipo de especificadores:
- (111)
os documentos definindo as orientações do partido /
??os [N] definindo a orientação do partido
- (112)
aqueles documentos envolvendo o ministro /
??aqueles [N] envolvendo o ministro
Pesquisas no CETEMPúblico de artigos definidos e determinantes demonstrativos adjacentes a gerúndios só geraram 1 resultado relevante, de aceitabilidade duvidosa, mostrando que se trata de uma opção fortemente limitada do sistema.
- (113)
“[...] o último telejornal [...] empregou mais tempo com a informação i relativa aos partidos do que com [a [N]i envolvendo directamente o Executivo de Cavaco Silva].” (ext1294512-nd-91a-1)
Sétimo: observa-se, finalmente, uma restrição de natureza semântica que, tanto quanto sei, não tem sido muito explorada na literatura (e que enunciei brevemente em 2.2 acima): as gerundivas adnominais parecem ser fortemente limitadas também no que diz respeito aos valores de localização temporal com que são compatíveis, contrastando neste aspeto, mais uma vez, com as orações relativas (que admitem – por via da flexão verbal – todas as possibilidades gramaticais). Mais concretamente, as gerundivas adnominais – pelo menos as restritivas – só parecem ocorrer com valores de sobreposição temporal, rejeitando a anterioridade e a posterioridade. O ponto de perspetiva temporal (PPT) pode ser estabelecido na frase em que ocorrem pela forma verbal do verbo da frase matriz:
- (114)
[As caixas contendo SOBREPOSIÇÃO A PRESENTE (= que contêm ) materiais perigosos] estão PPT PRESENTE em cima da mesa.
- (115)
Os funcionários da transportadora entraram no armazém. [As caixas contendo SOBREPOSIÇÃO A PASSADO (= que continham ) materiais perigosos] estavam PPT PASSADO em cima da mesa.
- (116)
Os funcionários da transportadora chegam mais logo às 5. [As caixas contendo SOBREPOSIÇÃO A FUTURO (= que contiverem ) materiais perigosos] estarão PPT FUTURO em cima da mesa.
Os valores de anterioridade e posterioridade não parecem poder ser veiculados através de gerúndios, requerendo uma forma verbal, integrada numa oração relativa, que indique explicitamente o valor em causa (e.g. pretérito perfeito simples ou mais-que-perfeito, para anterioridade – cf. (117) e (118); futuro imperfeito ou condicional presente, geralmente em combinação com verbos auxiliares, ir ou vir a, para posterioridade – cf. (119) e (120)). Note-se em particular a impossibilidade de ter gerúndio composto (tipicamente associado a valores de anterioridade) em gerundivas adnominais restritivas.
- (117)
As caixas {*contendo / *tendo contido / que contiveram} materiais perigosos estão em cima da mesa.
- (118)
Os funcionários da transportadora entraram no armazém. As caixas {*contendo / *tendo contido / que tinham contido} materiais perigosos estavam em cima da mesa.
- (119)
As caixas {*contendo / que irão conter} materiais perigosos estão em cima da mesa.
- (120)
Os funcionários da transportadora entraram no armazém. As caixas {*contendo / que iriam conter / que viriam a conter} materiais perigosos estavam em cima da mesa.
Oitavo: pesquisas feitas no corpus Vercial confirmam (em linha com observações de alguns gramáticos tradicionais) que os gerúndios adnominais em texto literário não são inéditos – quer com valor restritivo, como em (121) quer com valor apositivo, como em (122), reforçando a ideia de que a “proscrição” do gerúndio adnominal – sem mais – na variedade padrão não tem fundamentação válida, ou é anacrónica.
-
(121)
- a.
“[...] a vasta planície [...] estava cheia de [soldados fugindo em terrível desordem].” (Eça de Queirós, As Minas de Salomão)
- b.
“[Os alcaldes acusando alguém de ter quebrado o arresto [...]] não são obrigados a jurar manquadra.” (Alexandre Herculano, História de Portugal)
- c.
“[As tragédias idealizando os vultos históricos de Roma [...]], e as que vivificam os reis de Inglaterra, encerram a lição profunda deste impressionante contraste.” (Teófilo Braga, História da Literatura Portuguesa)
- d.
“No mesmo cartório existe [um livro contendo uma volumosa certidão dos documentos de Udés] [...].” (Alexandre Herculano, História de Portugal)
- a.
-
(122)
- a.
“Ao meu Príncipe aparecia como desventura suprema essa noite em Medina, n[uma fonda sórdida, fedendo a alho] [...].” (Eça de Queirós, A Cidade e as Serras)
- b.
“O canto do soberbo coro acabou pel[a 'tranha vociferação, condenando a traição execranda de Roma contra Viriato [...]].” (Teófilo Braga, Viriato)
- a.
Financiamento
Este trabalho foi financiado com verbas do Projeto Estratégico do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa, UIDB/00214/2020.
Referências bibliográficas
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6
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Lobo, Maria. 2006. Dependências temporais: a sintaxe das orações subordinadas gerundivas do português. Veredas 10 (1-2). https://www.ufjf.br/revistaveredas/files/2009/12/artigo055.pdf
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Móia, Telmo & Evani Viotti. 2004. Differences and similarities between European and Brazilian Portuguese in the use of the “Gerúndio”. Journal of Portuguese Linguistics 3-1, 111-139. https://doi.org/10.5334/jpl.21
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Corpora consultados
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CETEMPúblico = Corpus de Extractos de Textos Electrónicos MCT/Público, 1.7 v. 11.4, acessível em https://www.linguateca.pt/acesso/corpus.php?corpus=CETEMPUBLICO
14
NILC/São Carlos = Corpus do Núcleo Interinstitucional de Lingüística Computacional da Universidade de São Paulo em São Carlos, v. 13.2, acessível em https://www.linguateca.pt/acesso/corpus.php?corpus=SAOCARLOS
15
Vercial = Projecto Vercial, v. 13.8, acessível em https://www.linguateca.pt/acesso/corpus.php?corpus=VERCIAL
Notas
[1] É uma restrição sintática conhecida que as gerundivas adnominais só são equivalentes a orações relativas com relativização do sujeito. Assim, a frase (1) acima – foram encontradas várias caixas que i []i continham documentos secretos – tem um equivalente com gerundiva restritiva, mas as frases (i) e (ii) a seguir, com relativização de um complemento direto e de um adjunto adverbial locativo, respetivamente, não têm: (i) foram encontradas várias caixas quei os assaltantes esconderam []i; (ii) foram encontradas várias caixas [em que]i o advogado tinha guardado documentos secretos []i.
[2] Móia & Viotti (, ) não integram esta classe na sua tipologia quinquepartida. As gerundivas classificadas como predicativas por aparecem distribuídas por quatro das cinco classes de Móia & Viotti: argumentais, adnominais, adverbiais, independentes.
[3] Como notado por um parecerista anónimo, a pronominalização acusativa com o verbo haver pode não subsumir a oração gerundiva modificadora – cartazes, há-os encorajando ao voto . A pronominalização de argumentos sem subsunção de modificadores parece ser uma propriedade particular do verbo haver (mas não de existir), verificando-se para qualquer tipo de modificadores: sintagmas adjetivais, sintagmas preposicionais e até, ainda que menos frequentemente, orações relativas restritivas, como nos exemplos a seguir, respetivamente (o último retirado do corpus CETEMPúblico) – cartazes, há-os grandes e pequenos ; cartazes, há-os de várias cores ; “os deputados da Frelimo exibem pose de deputado; na Renamo, há-os que lembram o novo aluno que veio da província” (ext1406821-pol-94b-2). Trata-se de uma questão gramatical interessante, mas que não explorarei aqui.
[4] Nos casos com vírgulas, há por vezes hesitação entre uma classificação como gerundiva genuinamente adnominal (apositiva) ou gerundiva adverbial interposta (cf. 3.1), pelo que os números de gerundivas relevante neste conjunto não são necessariamente exatos.
[5] Excecionalmente, há registos de gerundivas com predicados que identificam situações pontuais (sem aspeto progressivo), cuja consideração deixarei para investigação posterior – cf. “Os piores estragos ocorreram no porto de Leixões, onde [uma forte rajada de vento, atingindo cerca de 120 quilómetros horários,] derrubou dois guindastes [...].” (ext482112-soc-93a-1).
[6] Os números entre parênteses, indicam o total de ocorrências entre os 542 registos dos três subcorpora.
[7] A construção é possível com determinantes indefinidos, incluindo numerais cardinais, ainda que não seja muito frequente no CETEMPúblico: “[...] era [...] trabalho de rotina [...] descobrirem a identidade das pessoas i postas em causa. Tanto mais que, entre elas, se contavam [algumas [n]i exercendo profissões em contacto com crianças [...]].” (ext200002-nd-97b-2); “Américo Nunes lembrou os três projectos i (um em curso e dois [n]i aguardando a assinatura de um contrato-programa [...]) [...].” (ext19424-soc-96a-1).