Exibido pela primeira vez em 1972 e ainda em progresso, o Atlas de Gerhard Richter é um dispositivo mnemónico sustentado nos processos de colecção e de acumulação de imagens. O projecto, que desde 1972 contou com a adição de novos e variadíssimos painéis, inclui esboços de projectos artísticos, colagens, reproduções de imagens dos media e fotografias apropriadas ou tiradas pelo próprio artista. Richter convoca as diferentes formas e significados do registo fotográfico, desde o registo íntimo e familiar, até à sua significação estética, cultural e política. Fotografias a preto e branco de álbuns familiares são combinadas com imagens de revistas alemãs como a Stern, a Bunte Illustrierte, ou a Quick; imagens do Holocausto retiradas de livros justapõem-se a recortes de jornais e a imagens de pornografia softcore; auto-retratos e snapshots das mulheres e filhos do artista são encadeados com séries de paisagens, naturezas mortas e diversas experiências fotográficas. Estas imagens são organizadas em conjuntos de painéis justapostos, formando constelações móveis de ideias e formas visuais.
Todo o arquivo, público ou privado, tem como característica preservar traços do passado. Por esse motivo, é-lhe inerente uma historicidade própria. Mas o que está em causa no Atlas de Richter é a afirmação de um espaço de reserva e de virtualidade, um espaço que torna possível imaginar a história como tecido de associações inéditas e inesperadas entre materiais e eventos díspares.
Com efeito, mais do que um espaço de representação e de descrição, em Richter o sistema de arquivo é explorado na sua potência ficcional e imaginativa. Ao intersectar os campos do arquivo e da arte, o Atlas confere às imagens aquilo que Jacques Rancière descrevia, a partir do cinema de Godard, como uma potência de conectividade e de contacto (). Jogando com a justaposição de fragmentos de imagens, temas e motivos, o Atlas de Richter reflecte igualmente sobre algumas das mais importantes motivações e processos que estão por detrás do seu trabalho pictórico.
Nesta situação, o conceito de história, — que integra, na sua acepção ampla, a componente individual e colectiva, — passa a referir-se a uma nova forma de “conhecimento por montagem”, noção que havia sido já explorada por Didi-Huberman na sua análise aos projectos historiográficos de Walter Benjamin, Aby Warburg e Carl Einstein ().
De entre estes três historiadores alemães das primeiras décadas do século XX, o Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, um dos mais fascinantes e enigmáticos projectos da história da arte contemporânea alguma vez construídos, é aquele que estabelece maiores afinidades com o Atlas de Richter. Desde logo porque, tal como em Richter, o projecto de Warburg constitui uma história sem texto, sustentada no poder sensorial, intuitivo e metafórico das imagens. Em ambos os projectos, a metáfora e a metonímia tornam-se, como defendido por Christopher D. Johnson, numa nova potência do processo histórico e epistemológico (). Fazendo uso da concisão, da ambiguidade e da heterogeneidade da imagem, o atlas opõe-se à componente explicativa e autónoma da iconografia ortodoxa, fundada nos critérios de descrição formalista e simbólica. Se, em Richter, a relação entre as imagens se faz através dos vários painéis que compõe o Atlas, em Warburg a montagem é fundamentalmente interna às pranchas de Mnemosyne. Todavia, em ambos, a nova iconologia associada ao atlas, fundada nos intervalos e nos movimentos entre as imagens, potencia decisivamente, como iremos aprofundar, uma nova abordagem imaginativa e visual da composição da história.
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Iniciado em 1925 e deixado inacabado em 1929, devido à morte de Warburg, o Atlas Menmosyne (que passou por diferentes versões ao longo do seu desenvolvimento) consiste numa série de pranchas compostas por reproduções fotográficas de objectos da arte e da cultura Ocidental, pertencentes a diferentes épocas, origens e tradições. Mnemosyne intersecta materiais tão díspares quanto postais timbrados e medalhas do início do séc. XX; pinturas dos mestres do primeiro Renascimento; xilogravuras do séc. XV; sarcófagos e esculturas antigas; imagens da ciência e da publicidade; recortes de jornais e registos de eventos da actualidade.
Um dos eixos centrais da investigação de Warburg prendia-se com a análise dos valores expressivos das imagens da Antiguidade Clássica. Segundo Warburg, as obras da Antiguidade inscrevem toda a gama das emoções da humanidade, desde a melancolia mais profunda até ao excesso e violência do frenesim orgiástico, sendo detectadas nas representações artísticas das acções de andar, correr, lutar, dançar e atrair, ressurgentes na arte do primeiro Renascimento (). Ao preservar a inscrição de uma energia primitiva, relacionada com os grandes desejos e paixões da humanidade, a imagem preserva também a memória de uma experiência que sobrevive ao longo da história, levando à migração histórica e geográfica de certos traços expressivos, também designados, por Warburg, como fórmulas de pathos, ou Pathosformeln.
Como observado por Ernst Cassirer, Warburg “perseguiu a continuada existência e mutação, os estatismos e as dinâmicas das fórmulas de pathos ao longo da história da arte” (). Ao situar-se num espaço cultural de transição (), a arte do Renascimento capta o interesse de Warburg por revelar tendências contraditórias entre, de um lado, a integração personalizada e empática dos valores expressivos do Antigo (território antes proibido ao sentimento religioso não-pagão), e, do outro, a afirmação da “função anti-caótica”, associada à ponderação e à racionalidade exterior, marcando uma distância que torna as imagens significativas para o intelecto e para análise da cultura num dado momento. Assim, segundo Warburg,
Através das suas imagens, o Atlas Mnemosyne pretende ilustrar esse processo, que pode ser definido como a tentativa de absorver valores expressivos pré-cunhados por meio da representação da vida em movimento ().
Em Mnemosyne, a distribuição comparativa das imagens reflecte um novo método historiográfico baseado na “espacialização do tempo” (), tornando visíveis as rupturas, inversões e descontinuidades operadas pelas imagens da história da arte e da cultura, normalmente subsumidas à linearidade do tempo cronológico. Warburg privilegia a simultaneidade e a montagem sincrónica como processos visuais que permitem aceder ao conhecimento do passado e à identificação das contradições da cultura ocidental, não apenas no momento do Renascimento, mas também no presente actual, como demonstrado nos painéis introdutórios e finais, onde Warburg faz uso de imagens de eventos contemporâneos.
O arranjo das imagens na superfície negra das pranchas, sobressaindo ao olhar como se se tratassem de projecções numa tela, é remanescente da penumbra onde decorriam as conferências de Warburg, sustentadas na relação sincrónica entre o discurso e os dispositivos usados para reproduzir e projectar as obras em análise. As imagens eram muitas vezes mostradas lado a lado, num efeito de montagem que viria a ser exponenciado pela dimensão heterogénea, maleável e multimodal do Atlas Mnemosyne. Já na palestra proferida na Bibliotheca Hertziana, em 19 de janeiro de 1929, na qual Warburg discorre sobre as relações de imagens de Mnemosyne perante uma plateia de ilustres académicos, os painéis do projecto seriam montados ao longo das três paredes, com a assistência no meio, fazendo lembrar a estrutura de um diorama ().
Em todos estes casos, a montagem comparativa adquire menos o sentido de um simples recurso técnico do que o valor de um “aparato mental”, próximo aos métodos de combinação e de justaposição de imagens permitidos pelo cinema (). Isto é algo também enfatizado por Giorgio Agamben quando este refere que em “Mnemosyne cada uma das imagens é vista menos como realidade autónoma do que como fotograma” ().
Em Warburg e em Richter, o que está em causa neste tipo de estrutura fotogramática do Atlas é também a evidência de um trajecto cognitivo, dando a ver uma espécie de museu privado imaginário que exibe o trabalho de uma vida, através do qual é possível mapear a génese e a evolução do pensamento de ambos os autores.
É possível afirmar que os projectos de Warburg e de Richter constituem índices de processos cognitivos exteriorizados, remetendo para o conceito de campo inter-indexical de Alfred Gell. Como observado por , o campo inter-indexical de Gell reporta-se ao acumular de séries de eventos, objectos materiais e respectivos traços que testemunham a singularidade da vida de um sujeito, ou de um processo de pensamento.
Em Warburg e em Richter, a forma do Atlas permite visualizar a própria história como um campo inter-indexical. Nesta situação, a história emerge como processo, como forma de pensamento que integra procedimentos subjectivos, revestindo-se, como mostrarei de seguida, de uma componente autobiográfica que relaciona a experiência das imagens com a experiência simultaneamente pública e privada da história da cultura.
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O Atlas de Richter tem as suas raízes em 1962, quando o artista começa a coleccionar variado material iconográfico que se encontraria na base da construção dos primeiros painéis. Este período coincide com a experiência de transição do artista da Alemanha de Leste comunista para a Alemanha Ocidental liberal, em 1961, apenas cinco meses antes da construção do Muro de Berlim. A homogeneidade dos primeiros painéis, compostos exclusivamente por fotografias de álbuns de família, dá lugar, a partir do quinto painel, à heterogeneidade da imagética da cultura de massas.
Como observado por , esta passagem traduz a novidade de um encontro com a abundância das imagens da moda, do turismo e da pornografia, alvo de censura na outra parte do país, mas que circulam livremente no Ocidente. No Atlas, a referência à profusão das imagens de consumo funciona, como defendido por Buchloh, como uma alusão aos mecanismos de repressão da memória colectiva no contexto cultural da Alemanha Ocidental do pós-guerra. O contraste com a intimidade das fotografias de álbuns familiares, coleccionadas nos primeiros painéis, evidenciaria, para Buchloh, a existência de dois processos mnemónicos totalmente díspares entre si. De um lado, o álbum familiar enquanto garantia de inscrição psicológica, fundada na continuidade identitária entre o passado e o presente do sujeito. Do outro, a cultura da indústria fotográfica como aparelho de repressão massiva da memória traumática colectiva, encoberta pelo desejo artificial do consumo e do espectáculo, resultando numa negação da própria actividade de recordar ().
No entanto, se considerarmos as diferentes práticas de Richter em torno da fotografia verificamos que a análise de Buchloh é redutora, falhando dinâmicas que são fundamentais na forma como perspectivamos o Atlas.
Na primeira metade da década de 60, Richter serve-se de fontes iconográficas provenientes do álbum familiar e da cultura mediática para produzir Foto-Pinturas que tematizam quer as ligações familiares ao fascismo — seja como vítimas, seja como perpetradores e cúmplices — (Tio Rudi, de 1965; Tia Marianne, de 1965; Renate e Marianne, de 1964; e Família à Beira-Mar, de 1964); quer a presença activa de ex-nazis em diferentes áreas da sociedade contemporânea alemã (Sr. Heyde, de 1965). A revelação da ligação biográfica ao passado nazi é no entanto mitigada pela aparente banalidade das fotografias usadas como modelo iconográfico das pinturas (as fotografias que servem de modelo a Família à Beira-Mar e a Renata e Marianne, ambas de 1964, aparecem, respectivamente, nos painéis 2 e 3). A ausência de referências explícitas à história de vida das personagens representadas nas pinturas contribui igualmente para um sistema de revelação-ocultação que exige o nosso atento escrutínio.
Se a referência histórica da ligação ao passado nacional-socialista alemão é tornada evidente em Tio Rudi, imagem que representa o tio materno de Richter como soldado da Wehrmacht, as forças militares da Alemanha nazi, em Tia Marianne essa ligação desponta apenas quando tomamos conhecimento de que Marianne, tia materna de Richter, sofria de esquizofrenia, e que, no âmbito da política de purificação racial, ela foi esterilizada e deixada morrer à fome em 1945, aos 27 anos de idade. Este acontecimento não poderia deixar de provocar um profundo impacto emocional no jovem Richter. Podemos indagar, neste sentido, que a fotografia que vemos no painel 16 do Atlas (fig. 1), o primeiro daqueles dedicados ao tema do Holocausto, representando uma mulher esquelética numa clínica, faz reverberar as imagens onde, dentro e fora do Atlas, Marianne é representada, quer através de fotografias, quer através de Foto-Pinturas (fig. 2 e 3). Da mesma forma, o significado da Foto-Pintura intitulada Família à Beira-Mar transforma-se radicalmente quando descobrimos que Heinrich Eufinger, o padrasto de Richter, que ocupa o centro da imagem, foi um dos médicos das SS, responsável pela esterilização em massa de mulheres com problemas mentais.
O interesse de Richter pelo tema da sociedade pós-fascista prolonga-se à utilização de imagens dos media. Em Sr. Heyde, por exemplo, Richter serve-se de uma fotografia de imprensa que documenta a captura de Werner Heyde, neurologista responsável pelo estabelecimento de um programa de extermínio dos enfermos no período da Alemanha nazi (e que antes da captura se encontrava a viver confortavelmente em Schleswig-Holstein, com o conhecimento das autoridades locais), para comentar o facto de muitas das actividades criminosas de ex-nazis terem passado incólumes.
Ora, estes exemplos demonstram que, independentemente do seu estatuto e dos diversos contextos de circulação onde ganha existência, a imagem fotográfica determina processos de rememoração, individuais e colectivos, capazes de contestar as formas de amnésia cultural e as narrativas oficiais da memória do Estado-nação, frequentemente fundadas em estratégias de evitação e de desculpabilização do passado traumático. Este era um problema que, de resto, se colocava de modo particularmente intenso nos períodos de conservadorismo político e cultural da Alemanha Ocidental, desde o governo de Konrad Adenauer até à chancelaria de Helmut Kohl ()
Num ensaio tornado canónico, Buchloh sustenta que, no seu Atlas, Richter associa a memória a uma arqueologia de registos fotográficos, cada um desses registos repercutindo diferentes respostas psicológicas e mnemónicas, cada um sem qualquer privilégio em relação ao outro, intersectando-se através de distintas práticas representativas e culturais, as quais, no entanto, acabam por se equivaler, fundindo-se numa apreensão homogénea e alienante da realidade social e histórica (). Porém, a qualidade distributiva das imagens no Atlas, e, sobretudo, a consideração das repercussões da fotografia e da cultura mediática no projecto estético de Richter (), demonstram que essa diferença é articulada enquanto tal. Ou seja, enquanto trama de deslocamentos e de permutações entre a lembrança individual, a construção identitária colectiva no contexto pós-traumático e a resistência aos mecanismos de amnésia ideologicamente orientados, mostrando que a construção subjectiva e a correspondente concepção do passado como lugar de memória depende do entrelaçamento crítico dessas diferentes tipologias. E isto é bem diferente de afirmar a existência de uma “ordem fotográfica” que estaria na base da formação de um espaço homogéneo de repressão e de encobrimento ().
A concepção da fotografia como “sistema de dominação ideológica” (), como sustentáculo primeiro da identidade pós-fascista, modelada pelos parâmetros do consumo e do espectáculo do hipercapitalismo (), apesar de aferível ao nível dos primeiros painéis, torna-se no entanto problemática quando consideramos, particularmente, a presença das imagens do Holocausto no Atlas. Enquanto inscrições de um referente particular, de um acontecimento que ocorreu num determinado tempo e lugar, estas imagens constituem provas irrefutáveis do crime nazi. Elas confrontam diferentes momentos da cultura alemã do pós-guerra não só com a brutalidade inominável do genocídio, mas também com as dificuldades colocadas por esse legado catastrófico para a construção da identidade individual e colectiva, questão que é abraçada por Richter pela auto-reflexão sobre o seu papel como artista alemão que viveu durante a guerra.
Da mesma forma que as vistas aéreas de cidades e as abstracções alusivas a paisagens destruídas se relacionam com a experiência de juventude do artista dos bombardeamentos e das ruínas durante e após a II Guerra, também o confronto com as imagens do Holocausto releva de uma experiência formativa na vida de Richter, respeitante aos anos como estudante na Academia de Artes de Dresden:
[…] para o assunto do Holocausto, houve uma experiência fundamental: eu tinha cerca de vinte anos quando um estudante, no intervalo das aulas na Academia de Artes de Dresden, mostrou uma reportagem fotográfica, um documentário sobre campos de concentração. Eram imagens aterrorizantes tiradas pelos americanos no final da Guerra. Eu não sabia nada de inglês, mas as imagens não saíam da minha cabeça. Então comecei a questionar o porquê de não haver tal coisa na RDA ().
A imagem de arquivo possui uma força pulsional. O arquivo é algo que não nos deixa, algo que permanece e nos atrai, ligando-se a uma forma de obsessão e fascínio, que Derrida tratou, brilhantemente, na sua relação com a questão do desejo e do inconsciente freudiano.
Em Richter, esta dimensão do arquivo (as imagens não saíam da minha cabeça) integra, inclusivamente, uma componente auto-performativa, passível de ser encontrada em séries fotográficas menos conhecidas e baseadas no auto-retrato e na encenação do próprio corpo como receptáculo do trauma do passado. Auto-Retrato como Prisioneiro, de 1966, é composto por duas fotografias a preto e branco onde vemos o rosto do artista atado com fita adesiva transparente, naquilo que pode ser uma alusão não só ao sofrimento físico experienciado pelos prisioneiros dos campos, como também às terríveis desfigurações resultantes dos conflitos das trincheiras durante a I Grande Guerra. Já em Seis Fotografias, de 1989, Richter fotografa-se curvado e a cambalear num espaço de clausura, servindo-se do desfoque e da exposição múltipla para aumentar a sensação de isolamento e de desespero do cativeiro (fig. 4). Sobre esta série, Achim Borchardt-Hume defende que ela transmite:
[...] uma sensação de solidão compartilhada, assim como de empatia com os presos dos campos capturados nos painéis do Atlas, um sentido não só de, ‘e se tivesse sido eu?’, mas antes um reconhecimento de que ‘poderia ter sido eu’, e que este ‘eu’, poderia ter sido tanto a vítima como o perpetrador ().
O mostrar-se por parte do artista funciona aqui como uma espécie de terceiro termo que lança uma nova ética do olhar, pressupondo um comprometimento moral do sujeito no campo visual, histórico e político (). Na era da selfie e do self-showing, Richter demonstra que o acto de se tornar visível pode ser de forma mais substancial um acto ético e político. Com efeito, em Richter, o registo (auto)biográfico suplementa a história com uma componente subjectiva. A história é situada num espaço de experimentação que cruza a identidade pública e privada, o passado e a sua interiorização no presente, a entropia dos factos e os dados da historiografia profissional.
Neste sentido, o Atlas pode ser visto como uma forma de o artista se experimentar a si próprio e ao outro, marcando um território de inter-subjectividade que é reflectido na frequente utilização de snapshots da família e dos amigos na segunda metade do Atlas. Através do Atlas, Richter constrói a sua identidade como artista, reflecte sobre o processo constitutivo da sua própria obra (como no exemplo da ligação genealógica dos snapshots familiares às Foto-Pinturas, como visto acima), examinando as repercussões da fotografia no seu trabalho e na produção do conhecimento histórico por meios visuais. Assim, Richter reveste a forma do atlas de uma componente experimental e auto-reflexiva que nos ajuda a construir trajectos interpretativos em permanente revisão.
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Ao contrário do que acontece no Atlas de Richter, em Mnemosyne não há vestígio da existência de qualquer tipo de material auto-representativo que pudesse sustentar a defesa de uma dimensão autobiográfica e subjectiva da história.
Não obstante, essa ligação deve ser encontrada ao nível do envolvimento profundamente íntimo e quase obsessivo de Warburg com as imagens. Mais do que uma disciplina humanista ligada ao esteticismo e ao formalismo iconográfico, em Warburg a história da arte é uma experiência de abismo e de fascínio relacionada com a imagem e com os aspectos antropológicos do ser e do tempo (). Estudar a imagem implica iluminar uma complexa rede de associações por vezes perdidas. As imagens estabelecem uma relação indissociável com a cultura, — desde o culto religioso até ao drama e à poesia, passando pelo mito e pela ciência, — implicando a totalidade dos aspectos que contribuíram para a sua formação e para a constituição de um estilo. O processo de acumulação em Mnemosyne relaciona-se com essa experiência simultaneamente intelectual e afectiva do passado, equiparável ao processo da memória considerada nos seus saltos, descontinuidades e metamorfoses.
A palavra Mnemosyne, colocada à entrada da sua Biblioteca para a Kulturwissenschaft, ou ciência da cultura, construída em torno da transversalidade das disciplinas (a história da arte, da religião e do mito, das línguas e da cultura), e do problema da presença do paganismo na modernidade, implica, como observado por Edgar Wind, um duplo sentido: aquele que estuda as obras do passado é um fiel curador do repositório da experiência humana, e esta experiência é em si própria objecto de pesquisa, fazendo do investigador um atento observador das funções da memória social e individual. Segundo Wind:
[…] a questão da continuada significação da sobrevivência da Antiguidade clássica tornou-se de forma quase mágica numa questão acerca de si próprio. Cada descoberta respeitante ao seu objecto de estudo era ao mesmo tempo um acto de auto-contemplação. Cada experiência traumática da sua própria vida, que ele ultrapassou através da reflexão, tornou-se um meio de enriquecer o seu conhecimento histórico ().
A vida de Warburg foi marcada pelos efeitos devastadores e traumáticos da I Guerra Mundial. O ano que marca o início de Mnemosyne, 1925, segue-se a um longo período, que vai de 1918 a 1924, no qual Warburg passou por várias clínicas psiquiátricas, devido a distúrbios mentais e a episódios graves de esquizofrenia.
A grande intuição de Warburg é a de que os impulsos opostos entre os quais o sujeito oscila, no intervalo entre a razão e a emoção, a euforia e a melancolia, a agressão e a defesa, o sacrifício e o luto, estão presentes nas imagens do primeiro Renascimento sob a forma de tendências conflituantes, ou pólos contraditórios, em constante tentativa de reconciliação. As imagens mais estudadas por Warburg integram esta dinâmica de polarização. É o caso do grupo escultórico do Laocoonte e da Vénus de Botticelli (presentes no painel 6 e 39, respectivamente), ambas situadas entre a gestualidade enfática e a serenidade da expressão facial (); e também das imagens conflituantes do deus fluvial, prostrado e deprimido, e a imagem da ninfa em êxtase, designada por Warburg como um pesadelo gracioso (figs. 5 e 6). O mesmo se dá com a gravura Melencolia de Albrecht Dürer, datada de 1514, uma das imagens mais estudadas por Warburg, por dar forma à tensão contraditória entre, de um lado, as forças obscuras, negativas e passivas do sujeito, e, do outro, a afirmação do exercício da racionalidade no seu expoente mais alto ().
A polaridade mais expressiva, porém, é aquela que Warburg trata a partir da concepção nietzschiana sobre o conflito entre o Apolíneo e o Dionisíaco, entre o Olímpico e o Demónico. A tipologia Apolíneo vs. Dionisíaco serve desde logo uma visão de ruptura do Renascimento, antes dominada pela ideia conservadora de equilíbrio e plácida quietude de Winckelman. Não obstante, Warburg defende que aqueles dois pólos em conflito, situados entre a calma Olímpica e o terror demónico, se prolongam a outras polaridades que estão na origem da cultura ocidental, ela própria esquizofrenicamente cindida entre o obscuro e o racional, o pensamento lógico e o pensamento mágico, a melancolia e o êxtase, o paganismo e o cristianismo, o ethos e o pathos. Como indicado por Wind, “é por via desta teoria da polaridade que o papel de uma imagem na cultura como um todo pode ser determinado” ().
Por isso Warburg via-se a ele próprio como o psico-historiador que analisa a cultura ocidental na sua tendência bipolar, ou esquizofrénica (dado envolver tensões que não são nunca ultrapassadas e que impedem a total conquista do logos), concepção que remete para a constante circulação entre a história da arte, a história da cultura e a experiência psicológica de índole auto-biográfica. Por isso Warburg afirmava que a polaridade, enquanto luta trágica entre o impulso primitivo (associado à massa de impressões criadas no medo e na fúria do culto dionisíaco), e o processo de “des-demonização”, ou desmitização (que orienta o sujeito e a cultura para a criação de uma distância para o pensamento, base da própria civilização), deveria constituir “o objecto de um estudo científico da cultura. Dito de outra forma, um estudo que, envolvendo uma componente ético-científica, como argumentaremos de seguida, toma como seu tema “a história psicológica ilustrada do intervalo entre o impulso e a acção racional” ().
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De forma a perceber-se melhor aquilo que está aqui em jogo, gostaria de focar a minha atenção no painel 79 de Mnemosyne, no qual Warburg se serve de reproduções da arte renascentista, recortes de jornais e documentos fotográficos da actualidade para iluminar determinadas tipologias de conflito da sociedade contemporânea.
A coluna central do painel 79 é dominada por fotografias da celebração colectiva da Eucaristia na Basílica de São Pedro, em Roma, na qual o próprio Warburg esteve presente, como é dado conta no Diário Romano, composto com Gertrud Bing nos anos de 1928.29 (). A celebração decorreu após a assinatura do Tratado de Latrão, em 1929, entre o Reino de Itália e a Santa Sé, colocando fim à disputa territorial entre o governo italiano e o papa, também conhecida como a Questão Romana, que se prolongou de 1861 a 1929. A assinatura do tratado entre Mussolini e o papa Pio XI, documentado no painel 78 (o único painel a ser dedicado a um único tema), formalizou o reconhecimento da soberania política e territorial do estado do Vaticano, estipulou compensações financeiras devidas à Santa Sé por perdas territoriais e instituiu o catolicismo como religião oficial do Estado, em troca da neutralidade da Igreja nos assuntos políticos italianos. Voltaremos a este tema. Para já, porém, interessa abordar outros significados do painel, de forma a verificarmos como a dispersão visual dos seus diferentes elementos e temáticas se articula, na verdade, num complexo mosaico memorial atravessado por questões de ordem política, histórica e cultural.
A crença na transubstanciação durante a Eucaristia, respeitante à transformação do pão e do vinho na substância do corpo e do sangue de Jesus Cristo, durante o sacrifício eucarístico, era descrita por Warburg como uma adesão à magia primitiva dos rituais pagãos. Tal era demonstrativo que a cultura ocidental, sustentada em valores racionais e cristãos, que em si próprios traduzem uma tentativa de ordenação e totalização do universo, incorpora no seu seio elementos que são da ordem da superstição pagã e do pensamento mágico. O recorte de jornal situado no canto inferior direito do painel, no qual vemos a fotografia de uma vítima de um acidente ferroviário a receber o último sacramento, demonstra a continuada importância dos rituais de culto na cultura moderna (). Já as três fotografias da linha superior, referentes à Cátedra de Pedro, ou simplesmente Cadeira de São Pedro, conservada na Basílica homónima, remetem para uma dualidade que poderia passar despercebida. Como observado por Charlotte Schoell-Glass, simbolizando a autoridade ex cathedra do papa (e também a crescente sumptuosidade e imponência do objecto ao longo dos séculos), a cadeira encontra-se todavia coberta por aplicações de marfim com talhas de signos zodiacais e cenas do mito de Hércules, marcando a surpreendente presença da imagética pagã num dos objectos mais importantes da simbologia católica ().
A questão da simbologia adquire efectivamente um papel central neste painel, e, como se verá, explica a relação aparentemente incompreensível entre o domínio da religião e da política, visada por Warburg neste painel. Para Friedrich Vischer, autor a quem Warburg retornava constantemente, a Eucaristia constituía um exemplo paradigmático das dinâmicas entre simbolismo mágico e racional (). Em Das Symbol, texto onde Vischer se interessa pelas várias relações estabelecidas entre a imagem e o seu significado (relações simbólicas), o problema surge com a questão de se saber se as palavras hoc est enim corpus meum (este é o meu corpo), proferidas durante a Eucaristia, devem ser entendidas ou não no sentido metafórico. Como observado por Wind, residem aqui duas concepções distintas sobre a natureza do símbolo. Primeiro, a mágico-associativa, ligada ao ritual primitivo de incorporação física de forças externas, incluindo a “identificação mimético-corpórea com o mundo” (). Tal identificação estava presente, por exemplo, no caso do ritual da serpente da tribo dos Hopi do Novo México, estudado entusiasticamente por Warburg na sua viagem antropológica à América em 1895. Segundo, a lógico-dissociativa, tendente à afirmação da distância entre o sujeito e o mundo por via da mediação do pensamento lógico (). Na primeira, considera-se que as palavras proferidas pelo padre durante o ritual litúrgico (e sacrificial) são essenciais para efectivar a transformação da hóstia na carne de Cristo (a hostiam como corpo da vítima, o Cristo redentor dos pecados da humanidade). Na segunda, o vinho e o pão são signos intelectualmente apreensíveis e interpretáveis, e não elementos sobrenaturais de incorporação sacrificial, restaurando a separação entre objecto e significado através da convenção, através do como se da comparação. Entre estes dois extremos, porém, existe uma conexão de terceiro tipo, designada por Vischer de “conexão com reserva”. Neste caso, o símbolo é entendido como signo, mas permanece uma imagem viva e mobilizadora, traduzindo a dinâmica entre o desejo da encarnação/assimilação, de ordem mágico-religiosa, e o desejo do distanciamento racional, inerente ao exercício de ponderação intelectual, e, portanto, de ordem analítica e conceptual ().
Warburg interessa-se por estas questões devido ao significado histórico do debate teológico (veja-se o exemplo do cisma entre protestantes e católicos), mas, sobretudo, pelo facto de a tensão entre o mágico e o racional, entre a religião e a arte, constituir uma dinâmica essencial da imagem. Isto era algo que, de resto, era corroborado pelo próprio Vischer, nomeadamente quando este associava o simbolismo da arte e da poesia ao terceiro tipo de relação com reserva. Relacionada com uma dimensão empática, enérgica e mobilizadora, a experiência das imagens constitui não só uma porta de acesso aos conflitos da cultura, mas também um espaço intermédio de restauração emotiva dos movimentos recíprocos entre forças opostas. O espaço de pensamento (Denkraum) é criado justamente a partir da interposição de uma distância entre o sujeito e o mundo. Mas o que se ganha nunca é definitivo, dado que a tendência da cultura não é, ao contrário daquilo que é postulado pelo positivismo (e, mais tarde, pela razão instrumental), a do progresso que culminaria num estado ideal e supremo da civilização, tal como prometido, por exemplo, pela dialéctica hegeliana.
Retomando a análise visual do painel 79, é possível observar, na parte lateral esquerda, a existência de três reproduções de pinturas e afrescos do período do renascimento florentino: A Missa de Bolsena (1512.14), de Rafael; A Última Comunhão de São Jerônimo, de Botticelli (c.1495); e As Virtudes e os Vícios, de Giotto (1304.1306). Estas obras assinalam, como veremos já de seguida, o balanço equilibrado, ou a reconciliação harmoniosa, entre forças opostas, possibilitada pela inversão energética do pathos primitivo no significado dos valores humanistas do cristianismo (associado, por Warburg, a um elemento de introdução de equilíbrio relativamente ao excesso primitivo dos ritos pagãos). Este processo de inversão está igualmente dependente do esquema da polarização, relacionando-se com o facto de cada época recuperar as formas expressivas de outras épocas não como algo a imitar, mas como forma de reanimar determinados valores, os quais podem adquirir novas configurações, e, inclusivamente, revestir-se de significações antitéticas ().
A Missa de Bolsena (1512.14), de Rafael, que domina o conjunto das três reproduções, é um exemplo acabado desse processo de inversão energética. A pintura representa o Milagre de Bolsena de 1263, referente ao fenómeno extraordinário do sangramento da hóstia durante a Eucaristia, celebrada por um padre que vivia atormentado pela dúvida sobre a real presença encarnada de Cristo no acto cerimonioso. Como observado por Christopher D. Johnson, a mestria formal da pintura e a presença anacrónica de personalidades contemporâneas a Rafael, que observam o evento à distância, marca um espaço de equilíbrio entre as tendências mágicas e racionais. Já o afresco Esperança de Giotto, pertencente ao conjunto As Virtudes e os Vícios (1304-1306), remete na perfeição para a inversão do frémito primitivo da Ninfa na figura Olímpica e alada que expressa os sentimentos de fé e de redenção.
Ora, sabe-se que o título provisório deste painel era o seguinte: Igreja e Estado. Poder Espiritual renunciando ao poder secular. Com isto, Warburg muito provavelmente queria referir-se ao momento histórico, marcado pela assinatura do Tratado de Latrão, como indicado mais acima, que determinou a auto-exclusão da Igreja da esfera de influência política. Mais exactamente, renunciando ao poder secular como premissa do acordo com Mussolini, que exigia a alienação de todos os poderes concorrentes nas decisões políticas do governo, a Igreja consentia, de certa forma, que as estruturas simbólicas do sacrifício religioso passassem agora a ser plenamente incorporadas no Estado fascista. Ou seja, apresentando-se a si próprio — e corroborado pelo papa — como o homem enviado pela divina providência, Mussolini faz transitar a componente mágica do ritual católico para a política bélica e irracional da ideologia fascista, integrando no poder político a superstição e o desejo quase mórbido por formas de sacrifício primitivas. Pode-se especular, neste sentido, que a utilização de imagens do auto-sacrifício japonês (haraquíri ou seppuku), neste painel, alude ao perigo de se aceitar a brutalidade e a violência de Estado como normativa social (). O que está em causa é a transferência da componente mística, em parte associada ao ritual de imolação e de passagem da Eucaristia, para a esfera política de um regime assente na força e no ódio contra o outro, contra o estrangeiro, contra tudo o que escapava à norma instituída. Mas é interessante notar, por outro lado, que o belicismo expansionista próprio ao fascismo não está assim tão distante da ambicionada universalidade territorial da Igreja Católica Romana, sendo este um sentido complementar que pode eventualmente ser atribuído à montagem de Warburg no painel 79. Como observado por , a Missa de Bolsena, que, como vimos acima, constitui o paroxismo do milagre eucarístico, deve ser enquadrada no horizonte mais amplo do Quarto Concílio de Latrão de 1215, concílio que não só implementou o dogma da transubstanciação e definiu todo um novo conjunto de normativas eclesiásticas, como também avançou a propositura da Quinta Cruzada, desenhada para conquistar Jerusalém por via da expansão através do Egipto.
No painel 79, a afirmação da cultura como espaço de pensamento e de equilíbrio entre a razão e a emoção parece relacionar-se com a necessidade de Warburg em diagnosticar o esvaziamento espiritual e a esteticização gratuita operados pelo fascismo. O fascismo encontra-se fundado na grandiosidade das formas clássicas do triunfo Imperial; nas formas kitsch do corpo atlético celebrado pelo dogma ariano, tal como representado pela imagem do atleta, encontrada por entre a amálgama de fotografias de jornais (coluna do lado direito), desvirtuando inteiramente o sentido da frase este é o meu corpo; e, finalmente, na simbologia da autoridade, da força e da violência, aqui vincados pela presença das imagens das paradas do Exército Pontífice e italiano durante a procissão eucarística (coluna central).
Recorde-se que o fascismo deriva da palavra latina fasces, um feixe de varas amarradas em torno de um machado, símbolo do exercício de poder e da autoridade que, por exemplo, concedia aos magistrados da República Romana antiga o direito de flagelarem e decapitarem cidadãos insubordinados. Mussolini adoptou esse símbolo para o seu partido e os seus seguidores passaram a chamar-se fascistas. Compreendem-se assim as palavras de Warburg sobre a relação simbólica activada pelo símbolo fascista: “[a] distância metafórica [é] destruída através da imediaticidade da violência no símbolo do símbolo: através do machado de Mussolini” ().
As fotografias centrais do painel 79 demonstram uma adesão incondicional e frenética das massas a este tipo de simbolismo sacrificial e bélico, associado por Warburg ao fenómeno da “re-paganização de Roma” (), a qual viria a ser efectivamente mobilizada pelos ditadores fascistas nos ritos políticos frenéticos e nas respetivas manifestações das massas em júbilo e devoção.
No contexto do crescente anti-semitismo na Alemanha e da ameaça da destruição da cultura e dos valores humanistas às mãos dos fascistas (Schoell-Glass 2008), este painel prolonga as preocupações de Warburg — que era herdeiro de uma influente família de judeus banqueiros de Hamburgo — relativamente à ressurgência de uma história de sangue, de expansão imperialista e de exercício do poder pela força e pela violência.Esta leitura parece ser autorizada pelo facto de a propaganda anti-semítica ser convocada por Warburg nas reproduções de gravuras propagandísticas do séc. XV, colocadas na parte inferior do painel. As gravuras representam as lendas, disseminadas pelos cristãos, da profanação da hóstia sagrada por judeus, cuja perseguição e discriminação históricas culminariam num dos episódios mais horríficos da história moderna ocidental, o Holocausto, em si uma denominação que remete, talvez não por acaso, para uma dimensão sacrificial e mítica.
A dimensão profética e messiânica (condensação do passado-presente-futuro) do painel é a este título notável. Ela é reforçada pelo recorte de jornal, situado no canto superior direito, onde vemos Gustav Stresemann a assinar o Tratado de Locarno, pelo qual receberia o Prémio Nobel da Paz, em 1926, pelos esforços dedicados ao restabelecimento da ordem internacional e do espírito de cooperação entre as nações Europeias, no contexto pós-Tratado de Versalhes. A disposição no painel faz com que este motivo se intersecte diagonalmente com a imagem de esperança e de redenção de Giotto, apontando aparentemente para o receio de Warburg da repetição do cataclismo da I Guerra Mundial, assim como para a necessidade premente de se resgatarem os valores da paz e da cultura, algo que, tragicamente, não se viria a cumprir.
***
Tal como tinha sido possível identificar no Atlas de Richter, também em Mnemosyne a história é concebida como uma forma de montagem assente na acumulação de figuras e de conceitos, reproduzidos e articulados ao nível de múltiplos cortes espácio-temporais. Em ambos os projectos, a história da arte surge como uma ciência de imagens que engloba o consciente e o inconsciente da cultura, os seus registos materiais e psíquicos. Neste sentido, a história da arte deve incluir todos os materiais visuais capazes de iluminar a complexidade da cultura contemporânea na sua ligação ao passado e aos processos subjectivos da memória, tornando destituída de sentido a divisão entre as imagens da alta e da baixa cultura.
O contexto histórico dos projectos de Warburg e de Richter é radicalmente distinto: no primeiro antecipa-se o desenvolvimento desastroso do fascismo e a destruição dos valores da cultura; no segundo existe uma visão pós-traumática determinada pelo confronto com as imagens que testemunham a ocorrência de um evento catastrófico sem precedentes no contexto da cultura e sociedade moderna europeia.
Ainda assim, a análise de ambos os projectos permite-nos concluir que em Richter e em Warburg a imagem remete para a espessura da história, para os processos de sedimentação e de acumulação da cultura visual. Ambos mostram que a memória é recriada através de subjectividades individuais e colectivas, por olhares retrospectivos capazes de reformular as múltiplas inteligibilidades e as diferentes questões que são colocadas no presente com maior premência. A estrutura do atlas dá a entender que a imagem é a principal portadora de um processo de estratificação histórica que incita ao olhar crítico e reflexivo. Na imagem são impressas formas expressivas e marcas traumáticas do passado (as quais, convém assinalar, no caso de Richter são incompatíveis com qualquer tipo de sobredeterminação mística), levando a uma identificação imediata e brutal com algo que conhecemos, mas que, simultaneamente, permanece latente e irrevelado.
Em Warburg, esta questão encontra-se profundamente relacionada com a teoria engramática da memória biológica de Richard Semon, fundada na ideia de que determinados estímulos são preservados como traços, susceptíveis de serem reactivados em circunstâncias que podem ser totalmente distintas das originais. Como observado por Didi-Huberman:
A matéria orgânica, segundo Richard Semon, seria dotada de uma propriedade muito especial: todo o acto, toda a transformação energética que ela suporta deixa uma impressão. Semon nomeia-a de Engrama, ou "imagem-lembrança" (Erinnerungsbild). Ainda que cessem as sensações ou as "excitações originais", […] sobrevivem os engramas dessas sensações (Zurückbleiben der Engramme), que jogarão, discretamente ou activamente, o seu papel de substituto no destino ulterior do organismo ().
O Pathosformel de Warburg refere-se justamente a esta dimensão enérgica da marca, da inscrição relacionada com as gestualidades expressivas (e não propriamente com o seu conteúdo), fazendo da imagem um espaço de preservação e de transmissão da memória da humanidade, dos seus grandes dramas, paixões, perigos e contradições. Por isso o Pathosformel e a correspondente teoria da polaridade se revelam indissociáveis do conceito warburguiano de Nachleben, ou vida póstuma, dado que a imagem engramática (a imagem enérgica onde a marca expressiva é visível) tende a ser reactivada num tempo distinto. Por sua vez, este tempo outro, bidireccional, é associado a uma configuração de sobrevivência que pode tender para um dos pólos em conflito. Em suma, a imagem sobrevive porque a imagem tem inscritas marcas traumáticas que se repetem nos momentos de ruptura e de transição da história da cultura, dependendo a sua orientação de uma decisão de selecção e escolha ética.
Por exemplo, na prancha 52 do Atlas Mnemosyne, dominada por reproduções de pinturas renascentistas sobre a Lenda de Trajano, Warburg associa o seguinte comentário: “Justiça de Trajano = inversão energética do ato de esmagar enquanto cavalga. Inversão ética do pathos do vencedor”. A Lenda de Trajano, referida por Warburg na palestra da Bibliotheca Hertziana, narra o episódio em que o imperador romano Trajano (53.117 d.C), prestes a partir para a guerra, desce do seu cavalo para atender os lamentos de uma mulher, que reclamava a morte injusta do filho pelo exército romano. Este episódio é complementado por um outro, referente à punição de Trajano do próprio descendente, por este ter assassinado o filho de uma pobre mulher (). Na reprodução da gravura de Hans Sebald Beham, A Justiça de Trajano (c.1537), colocada na coluna do lado direito, a postura de demora do imperador, posicionado frente à mulher que implora por justiça, contrasta com os movimentos impetuosos do guerreiro que cavalga sobre os inimigos, tal como representado, por exemplo, nos baixos-relevos da Coluna de Trajano. O que interessa a Warburg é precisamente o facto das representações renascentistas (d'Andrea, Mantegna, Mocetto, Dürer) sobrevirem como “engramas” onde se joga a inversão do pathos imperial triunfalista em piedade cristã (; ). De forma mais ou menos direta, estas representações baseiam-se na lenda de que depois da cristianização de Roma o papa Gregório I, por intervenção divina, ressuscitou Trajano da morte e batizou-o na fé cristã, pelo facto do imperador constituir um exemplo de humildade, piedade e justiça, princípios que Warburg faz contactar, também no painel 52, com as representações da Clemência de Cipião (236.183 a.C). (Por isso teólogos como Tomás de Aquino diziam que Trajano era o exemplo de um pagão virtuoso). De notar, ainda, que do painel faz parte a reprodução de um desenho de Botticelli para a Divina Comédia de Dante, que no Canto X do Purgatório se refere à aprendizagem da modéstia por aqueles que estão em penitência pelo excesso de orgulho e sobranceria (fig. 7).
Se o engrama remete para uma certa ideia de perenidade, referente a uma energia que atravessa todas as épocas e que se repete através da reactivação de formas expressivas previamente cunhadas (componente trans-histórica), o certo é que este princípio devolve ao passado o seu carácter eminentemente dinâmico e não-evolutivo. Isto porque a sobrevivência se relaciona com a vontade selectiva de uma época, como demonstrado no painel que acabámos de detalhar. De forma mais ampla, relaciona-se com a forma como o passado é herdado, ou melhor, compreendido, construído e transmitido no presente crítico de uma cultura, revelando-se inseparável da consciência ética e moral de um voltar atrás sob a modalidade da repetição como porvir () — em suma, como antecipação de uma memória futura.
Neste sentido, a concepção de Antonio Negri sobre os dois factores que intervêm na abertura do conceito de historicidade revela-se particularmente útil para percebermos as repercussões da noção de sobrevivência. De um lado, o conhecimento histórico une-se à imaginação e à dimensão simultaneamente analítica e poética do pensamento; do outro, a relação histórica integra uma dimensão redentora que nasce da consciência de que “apenas a tensão entre presente e futuro” constitui o tecido do possível, conferindo à memória um poder de decisão ético e ontológico ().
Estes dois aspectos são igualmente decisivos para compreendermos a dinâmica inerente à repetição das imagens do Holocausto no Atlas de Richter (painéis 16 a 20, 635 a 648 e 807 a 808). Como indicado por Didi-Huberman, as imagens dos primeiros painéis do Atlas, dedicados à banalidade das fotografias de família, dos utensílios domésticos, das peças de joalharia e das imagens publicitárias (fig. 8), encontram-se como que infectadas pela questão da banalidade do mal (o Atlas foi iniciado no mesmo ano da publicação do artigo de Hannah Arendt sobre o julgamento de Adolf Eichmann, no qual a autora demonstrava que o mal não é uma categoria metafísica, mas histórica e política, dependente de um espaço institucional de trivialização do ódio e de esvaziamento do pensamento crítico).
Aquelas imagens ocupam os mesmos painéis onde é possível ver cerimónias fúnebres, retratos de vítimas inocentes de assassinatos em série, bombardeamentos e abutres em frente a cadáveres humanos espalhados pelo chão (). É necessário acrescentar que, em painéis posteriores, Richter faz referência a acontecimentos como a morte dos elementos do grupo político extremista Baader-Meinhof, o 11 de Setembro e a Guerra no Iraque (fig. 9). E que as pinturas intituladas Birkenau, de 2014, a única série de pinturas directamente relacionadas com a imagética do Holocausto a serem exibidas pelo artista (), foram construídas num momento histórico de ressurgência de atitudes anti-semitas e de impulsos nacionalistas, respaldados por discursos de ódio de partidos populistas e neo-fascistas alemães e europeus.
De facto, em Richter, a vida póstuma das imagens adquire um valor ético e político, fornecendo coerência aos processos de fragmentação e de justaposição de imagens. Como demonstrei noutro sítio, ao funcionarem como uma espécie de leit motiv do Atlas, as imagens dos campos fazem reverberar diversos painéis e séries de imagens que só aparentemente são destituídas de relação, revelando uma profunda ligação entre o evento do passado e a sua re-inscrição no presente. Ao ponto de podermos compreender a componente citacional da obra de Richter, respeitante às diversas referências a estilos e movimentos da história da arte moderna e romântica, como uma tentativa de encontrar soluções para responder ao problema específico da representação da memória do Holocausto por meios pictóricos. Tentativa essa justificada pela necessidade de afirmação do episódio histórico do genocídio como um elemento constituinte da identidade individual e coletiva alemã e europeia que não pode ser esquecido ().
O que está aqui em causa é também a ideia de que a comparação do Holocausto com outras experiências históricas não tem um efeito de nivelação ou equiparação de acontecimentos históricos traumáticos. A questão colocada por Peter Haidu é de toda a relevância: se o evento do Holocausto “é inteiramente único e desconectado da história humana, qual pode ser a sua relevância para os que ficam perplexos e estão comprometidos em fazer escolhas históricas ou morais?” (). A direcção sugerida por Haidu é a da interdependência do evento do Holocausto com os restantes fenómenos históricos, relacionando-se, por exemplo, com a noção de memória multidireccional de Michael Rothberg, definida pelo autor como uma forma de conceptualizar aquilo que acontece quando “diferentes histórias de extrema violência se confrontam na esfera pública” (). Para Haidu, é a compreensão de que o horror experienciado por aqueles que viveram o Holocausto tem implicações e extensões ao nível de experiências análogas, sofridas por outros grupos minoritários e subalternizados (os negros, os homossexuais, as minorias religiosas, as vítimas de perseguição política, etc), é a compreensão que estes grupos partilham a violenta “inscrição da desubjectivação”, que constitui, no final, a condição da possibilidade de “universalismo” ecuménico a que o judaísmo, tal como qualquer outra religião, aspiram ().
Esta intuição de que a história é feita no espaço cultural da memória anima igualmente o projecto de Warburg. Em Mnemosyne, os painéis 78 e 79 permitem antever o crescente interesse do historiador alemão pelos significados da memória como agenciamento colectivo de consciencialização política, fazendo surgir a memória como um trabalho de fomento de determinados princípios e valores a preservar e a transmitir. Contudo, é impossível saber se os painéis seguintes, a existirem, girariam em torno de preocupações semelhantes.
Certo é que, quer no Atlas de Richter, quer no Atlas Mnemosyne de Warburg, é a criação de intervalos entre imagens desconexas, cuja relação não é dada de avanço, que gera um novo tipo de pensamento historiográfico. Um pensamento que é colocado em movimento através das próprias imagens, das suas relações e diferenças. Em Richter e em Warburg, o atlas surge, portanto, como uma forma que permite experienciar o tempo como espaço de reflexão ética e política, relacionando a construção mnemónica com práticas imaginativas que projectam a identidade individual e colectiva no espaço do “possível” (). Isto é, num espaço que, mesmo não fazendo ainda parte da realidade palpável das coisas, existe, dado pertencer à projecção das mais profundas aspirações e desejos de uma dada cultura.
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Notas
[1] Este trabalho foi financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projeto Estratégico do IHA - Instituto de História da Arte [UIDB/00417/2020].
[2] Para a visualização da totalidade dos painéis que compõem o Atlas Mnemosyne, conferir o arquivo disponibilizado pela revista Engramma: http://www.engramma.it/eOS/core/frontend/eos_atlas_index.php.
[3] Para a consulta integral do Atlas e de toda a obra pictórica catalogada de Gerhard Richter, ver: https://www.gerhard-richter.com/en/art/atlas.
[4] Para uma análise detalhada destas imagens e respectivo tratamento do tema da continuidade do passado nazi na Alemanha do pós-guerra, considerado através da história dos familiares de Richter afectados pelo regime nacional-socialista, ver Paul B. Jaskot, The Nazi Perpetrator: Postwar German Art and the Politics of the Right (), 48 e seguintes.
[5] Não é por acaso que as representações cosmográficas adquirem uma forte presença em Mnemosyne, dado se situarem entre o esforço racional de ordenação dos corpos celestes e a simultânea propensão esotérica e fantasista da astrologia (). No Painel C (que forma, juntamente com os Painéis A e B, uma espécie de apresentação introdutória e sinóptica das principais linhas de investigação exploradas nas restantes pranchas), a representação de Marte em formas míticas e matemáticas, juntamente com os esquemas de cálculo do movimento dos planetas de Johannes Kepler, cujas teorias continuavam no entanto ligadas a crenças religiosas, e as fotografias do Zeppelin, que atracou em Nova York a caminho de Nova Jersey, em Setembro de 1929, para dar início à volta ao mundo, focam, no conjunto, concepções do mundo situadas entre a visão primitiva e mágico-religiosa do universo e a racionalidade matemática.
[6] Como afirmava Warburg: “Vejo-me, às vezes, como se fosse um psico-historiador que experimentou diagnosticar a esquizofrenia da civilização ocidental num reflexo autobiográfico: a ninfa extática (maníaca) de um lado, e do outro o triste deus fluvial (depressivo)” (António Guerreiro, “Aby Warburg e a História como Memória”. Revista de História das Ideias 23 (2002): 405.
[7] Esta nova situação repercutiu-se no próprio legado de Warburg, nomeadamente o da sua Biblioteca. Composta por mais de sessenta mil volumes e um enorme arquivo de imagens, a biblioteca de Warburg (que viria a ser convertida igualmente num instituto de investigação com Fritz Saxl, em 1926) foi transferida para Londres, em 1933, já depois da sua morte, de forma a ser salvaguardada das ameaças colocadas pelo anti-semitismo, marca da nova situação política e social na Alemanha na época.