Abstract
The objetive of this paper is to reflect on Orphism in its two conceptions: religious and artistic; and in its three meanings: the myth, the cult, and the artistic movement of the twentieth century. This research will not describe in detail the Orphic cult nor the artistic movement, but instead look for the reasons that led Guillaume Apollinaire to define Orphism within the field Cubism and develop hypotheses that lead to a deeper exploration of the subject. To establish these relations, the following are considered: research on religions, reflections on Ancient Greek myths by historian and anthropologist Jean-Pierre Vernant and philosopher Algis Uždavinys, and the notes on aesthetics and art by Guillaume Apollinaire, Pierre Francastel and Robert Delaunay. The works of Sonia and Robert Delaunay, Guillaume Apollinaire and Frantisek Kupka are also attached in relation to the present argument. The relationship between the artistic and the religious Orphisms is formed upon pictorial features and their symbolism, such as lyricism, color, light, shapes, rhythm and movement, and the effects that these elements have on artists and their audiences, which may be related to Orpheus myth and Orphic practices. In short, the music of Orpheus is experienced through the painting.
Keywords:
ORFISMO ENTRE A RELIGIÃO E A ARTE
Sérgio Manuel Valadas das Neves
ORFISMO ENTRE A RELIGIÃO E A ARTE
Quintana: revista do Departamento de Historia da Arte, núm. 20, 2021
Universidade de Santiago de Compostela
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Recibido: 02/01/2020
Aceptado: 03/06/2020
Resumen: Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre el orfismo en sus dos concepciones, religiosa y artística, y en sus tres significados: el mito de Orfeo; el culto órfico; y el movimiento artístico, el orfismo, del siglo XX. Esta investigación no buscará describir en detalle el culto órfico y el movimiento artístico, sino buscar las razones que llevaron a Guillaume Apollinaire a llamar a esta rama del orfismo cubista, y presentar algunas hipótesis que conducen a una exploración más profunda del tema. Para establecer estas relaciones, se utiliza principalmente la investigación sobre las antiguas religiones griegas del historiador y antropólogo Jean-Pierre Vernant y el filósofo Algis Uždavinys; las notas sobre estética de Guillaume Apollinaire, Pierre Francastel y Robert Delaunay; y las obras de Sonia y Robert Delaunay, Guillaume Apollinaire y Frantisek Kupka. El puente establecido trata sobre características pictóricas y su simbolismo, como el lirismo atribuido, el color, la luz, las formas, el ritmo y el movimiento, y los efectos que estos elementos tienen en los artistas y el público, que pueden estar relacionados con Mito de Orfeo y prácticas órficas. La música de Orfeo que se siente en la pintura.
Palabras clave: orfismo; cubismo; dionisismo; Delaunay; Apollinaire.
Abstract: The objetive of this paper is to reflect on Orphism in its two conceptions: religious and artistic; and in its three meanings: the myth, the cult, and the artistic movement of the twentieth century. This research will not describe in detail the Orphic cult nor the artistic movement, but instead look for the reasons that led Guillaume Apollinaire to define Orphism within the field Cubism and develop hypotheses that lead to a deeper exploration of the subject. To establish these relations, the following are considered: research on religions, reflections on Ancient Greek myths by historian and anthropologist Jean-Pierre Vernant and philosopher Algis Uždavinys, and the notes on aesthetics and art by Guillaume Apollinaire, Pierre Francastel and Robert Delaunay. The works of Sonia and Robert Delaunay, Guillaume Apollinaire and Frantisek Kupka are also attached in relation to the present argument. The relationship between the artistic and the religious Orphisms is formed upon pictorial features and their symbolism, such as lyricism, color, light, shapes, rhythm and movement, and the effects that these elements have on artists and their audiences, which may be related to Orpheus myth and Orphic practices. In short, the music of Orpheus is experienced through the painting.
Keywords: orphism; cubism; Dionysism; Delaunay; Apollinaire.
Introdução
Por que razão, em 1912, Guillaume Apollinaire nomeia de Orfismo o movimento artístico que tinha como principal via de expressão a cor? Que relações mantem esse movimento com o mito de Orfeu e com uma das religiões, o Orfismo, da Grécia Antiga? Haverá uma dimensão holística que os una ou simplesmente questões estéticas? O presente artigo propõe tentar responder a essas perguntas ou, em última instância, avançar somente com algumas hipóteses que permitam um futuro estudo mais aprofundado. Para esta investigação recorremos aos estudos do pensamento filosófico-religioso grego e às anotações de Guillaume Apollinaire, Robert Delaunay e Pierre Francastel, que abordam a estética desenvolvida no Cubismo órfico, bem como algumas obras destes, juntamente com as de Sonia Delaunay e Frantisek Kupka. Não sendo este artigo somente uma análise das obras do Cubismo órfico, foram escolhidas as que melhor sintetizam as concepções artísticas do Orfismo, colocando em evidência a relação que aqui é feita com o Orfismo, movimento intelectual e religioso.
A primeira parte deste ensaio é constituída pelo levantamento das práticas e ditames do Orfismo enquanto culto: desde as suas concepções cosmogónicas, à sua visão sobre o humano no mundo, à relação entre o mito de Orfeu e o mito de Dioniso, contemplando as influências dos dois na religião órfica. Num segundo momento, a atenção recairá sobre o Orfismo, movimento artístico, e sobre a síntese dos orfismos. Ou seja, estabelecidas as pontes, resta apenas explorar o mundo órfico nas suas várias dimensões e indagar uma possível relação entre a construção do mito órfico e o processo criativo da arte órfica.
Muitos são os chamados, poucos são os escolhidos
Mateus 22: 14
Muitos são os que carregam o tirso – dizem os iniciados nos Mistérios – mas
poucos os verdadeiros entusiasmados.
Platão, Fédon 69c
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Orfismo, um modus vivendi
O mito de Orfeu, assim como qualquer outro mito, é apresentado com diferentes detalhes e até com diferentes finais, de acordo com o carácter funcional, mais artístico ou religioso, com este ou aquele público, tendo cada variação a sua função (cf. Vernant 19991, 12). Todavia, podemos optar pela seguinte versão, que se tornou mais conhecida e que serve os propósitos já mencionados deste ensaio.
O bardo Orfeu da Trácia, filho da musa da poesia épica Calíope, encantava tudo e todos com a lira que Apolo lhe dera. Apaixonara-se pela ninfa Eurídice, que veio a falecer por causa da picada de uma serpente. Orfeu desce ao mundo dos mortos para resgatar Eurídice, com a permissão de Hades e de Perséfone, hipnotizados pela sua música, contanto que Orfeu não olhasse para trás, para Eurídice, até que estivessem sob a luz do Sol. O poeta não resistiu, olhou para a sua amada e esta foi tomada novamente por Hades. Orfeu regressou amargurado ao mundo dos vivos, tanto que perdeu a vontade de cantar e de tocar (cf. Ovídio 1826, 246-249). Um grupo de mulheres, as ménades, seguidoras de Dioniso, que cobiçavam Orfeu, sem que este nada quisesse delas, resolveram vingar-se, despedaçando-o.1 Após a fragmentação do corpo de Orfeu, a sua cabeça e a sua lira viajaram, cantando, pela água até à ilha de Lesbos (cf. Ovídio 1826, 275-277), passando também a ter dons proféticos (cf. Bernabé e Casadesús 2008, 84).2
A água é o elemento da Natureza que reafirma a desintegração da matéria e a lavagem espiritual. Esta consegue purificar a alma e o corpo, “seja lavando-lhe as máculas, seja dispondo-as para as não contrair” (Barthélemy 1940b, 20), conduzindo à unificação do espírito com o divino. A concepção órfica evoca também uma imaginação erótica (cf. Conte 2007, 141), o objecto não alcançado, sedutor, fetichista, mas também o talento para encantar os elementos do mundo real e do submundo com o manuseamento do instrumento musical que produz fascínio a partir do som, imaterial e abstracto. Uma imaginação afectiva e criativa, a arte e o êxtase, a disciplina ascética e forças ctónicas, Apolo e Dioniso (cf. Vernant 1964, 1015-1021), ambas presentes na figura de Orfeu.3 Ademais, a viagem pela água, chegando a um novo sítio, revela um renascer, uma nova vida, a partir da concepção das águas primordiais como origem da vida.
O mito de Orfeu não pertence originalmente à tradição homérica (cf. Uždavinys 2011, 56),4 podendo antes remontar às tradições xamânicas siberianas, que tiveram contacto com a Trácia (cf. Dodds 1997, 140-147), conduzindo o pensamento para a simbologia da morte, dado que a incorporação espírita xamânica é feita por meio de uma viagem ao mundo dos mortos (cf. Vernant 1990, 112). O xamã induz a sua própria morte, para regressar com a personalidade ou as aspirações de um outro espírito já desencarnado. A metáfora da viagem de Orfeu em busca de Eurídice, a sua musa inspiradora, é a viagem xamânica. Se se atentar na palavra transe e no verbo transitar, bem como no verbo francês transir [morrer], poder-se-á considerar a transição do xamã e a transição de Orfeu como uma morte simbólica, uma transição. Esta é induzida pelos protagonistas do culto extático, em que o xamã mascarado de um animal “morria”, transitava, dando-se uma paragem no tempo, e a sua alma ou espírito totémico saía do seu corpo e ia até ao mundo dos mortos. No regresso, ele vinha com uma nova entidade, um novo eu dentro de si, resgatado do submundo, ou trazia informações dessa entidade para a terra, saberes que o ajudariam a curar e a aconselhar quem precisasse (cf. Guinzburg 1989, 150-151).
Orfeu trouxe do mundo dos mortos a sabedoria que lá residia oculta sobre o pós-vida (cf. Uždavinys 2011, 43) e, quer este tenha tido ou não sucesso na sua empresa, ele passou a ter acesso aos conhecimentos do post mortem que permaneceram no culto órfico, necessários para a interrupção das reencarnações. A relação xamânica continua, na observação dos poderes proféticos e encantatórios que comunicavam e dominavam a natureza, dos animais às pedras, pelo poder da sua lira, e os dons proféticos, ganhos após a sua morte e a separação da cabeça do corpo, isto é, a renúncia ao corpo, com intuitos ascético e divinatório.5 Enquanto os que não fizeram a travessia órfica permanecem num movimento contínuo, de eterno retorno, dentro dos ciclos das reencarnações.
De Apolo veio a lira, e possivelmente a paternidade (cf. Uždavinys 2011, 38), já de Dioniso, as experiências de vida semelhantes, como o regresso de Orfeu ao mundo dos mortos, que se tornou uma nova vida para este, e o regresso de Dioniso à sua segunda vida (cf. Hesíodo 2006a, 193), bem como a viagem igualmente feita ao submundo para resgatar a sua mãe Sémele (cf. Gregg 1970, 266). A própria morte de Dioniso equipara-se à de Orfeu: o primeiro Dioniso, Zagreu, filho de Zeus e Perséfone, sua filha e rainha do submundo, fora despedaçado e devorado pelos Titãs, instigados por Hera ciumenta, ou seja, do unificado ao fragmentado (cf. Vernant 1990, 107), que se torna a unificar ou procura alcançar tal meta.6 Orfeu fragmenta-se, mas busca a unificação, esta espiritual, com o divino, através da música e da profecia.
Há em Orfeu a combinação apolínea e dionisíaca. Um lado mais solar, outro mais lunar. Um mais excêntrico, outro mais concêntrico. Quer isto dizer que Orfeu está capacitado para interagir com o mundo, expressando-se e deixando o seu próprio rasto exotérico. No entanto, ele também se salvaguarda, transmitindo a sua essência mais profunda àqueles que por ele são atraídos para o seu próprio centro, nervo central, de sabedoria mistérica.
Quando os Titãs devoram Dioniso (cf. Uždavinys 2011, 67), sobra apenas o seu coração, dado a comer à mortal Sémele, passando a gerar dentro de si Dioniso. Porque Sémele pedira a Zeus para o ver na sua forma mais real, novamente, outro plano de Hera, morrendo fulminada por tal visão, antes de dar à luz Dioniso. O Crónida costura-o na barriga da sua perna e ele consegue nascer passados nove meses (cf. Hesíodo 2005, 127). No entanto, os Titãs perseguem-no novamente, sempre por Hera movidos, atraindo-o com brinquedos de criança e devoram-no (cf. Gazzinelli 2007, 16), perpetuando este círculo, até que Zeus os fulmina e das suas cinzas surgem os humanos. Se, por um lado, é a cabeça de Orfeu que sobrevive, por outro, é o coração de Dioniso que resta depois do hediondo acto dos Titãs. Em certas versões, aparece Dioniso a proteger e a acolher a cabeça do bardo em Lesbos, enterrando-a de seguida no seu templo, Baccheion (cf. Detienne 1989, 130. É como dizer que, a cada um, sobreviveu o que mais vital era: a cabeça para cantar e pensar, o coração para bombear o sangue, um dos fluídos mais essenciais da vida. Platão diz-nos em Timeu que a cabeça é a parte mais divina do humano por ser a morada do intelecto. Por seu turno, paralelamente ao sangue, existe o outro fluído vital, a água, que é tão relevante para Orfeu, como acima observado. Foi este órgão, o coração, que acolheu a cabeça de Orfeu. Juntos dão vida ao binómio alma-corpo, pensar-sentir, mas, sobretudo, dão vida ao culto dionisíaco e ao movimento órfico.
O Orfismo, como movimento religioso, está ainda envolto em especulações e teorias que dificilmente conseguem ver saída em alguma definição segura que não entre em contradição com alguma evidência, sendo, pois, difícil de se falar acerca dele, evitando generalizações e, por consequência, erros de sintetização. Miguel Herrero de Jáuregui, especialista contemporâneo em Orfismo, pertencente à 2ª geração de estudiosos do tema, discípulo de Alberto Bernabé, faz um justo e pertinente levantamento introdutório das várias questões que se colocam, ao falar-se de uma suposta religião órfica e dos seus seguidores, os «órficos» (cf. Herrero 2010, 1-31).
Na verdade, damo-nos conta, a partir dos dados que nos fornece Herrero, de que o Orfismo, mais do que uma religião de mistérios, é ele próprio uma caixa de mistérios que, antes de serem de ordem espiritual, são ainda de ordem histórica e hermenêutica, cujas interpretações variam consoante os tempos, espaços e credos dos seus seguidores da altura e dos seus estudiosos do nosso tempo. Primeiramente, devemos deixar já claro que, “Orpheus, however, is one thing, Orphism, quite another” (Dodds 1997, 147), algo que tentará ser iluminado nesta parte. O Orfismo é, pois, uma “cultura híbrida” (Gazzinelli 2007, 32), sem um rito unitário, “but rather presents a multiplicity of cults – generally connected to the mysteries of Dionysus and of Demeter-Core – tinged with Orphism in varying forms and degrees” (Herrero 2010, 41).
O principal corpus literário do Orfismo, cuja autoria de muitos dos poemas não pertence, irrefutavelmente, a Orfeu,7 é um conjunto de escritos que tentam assegurar um determinado sistema doutrinário, sob a autoridade do músico trácio, cujos pensamentos coabitam entre pitagóricos, são parodiados por Platão, por exemplo, e influenciam, e são fixados, pelas diferentes escolas filosóficas, nomeadamente, neoplatónicas, neopitagóricas e estóicas e, posteriormente, pelo próprio Cristianismo (cf. Herrero 2010, 32-36), a partir do que era veiculado oralmente, não obstante “a evidência directa do seu carácter literário, [com uma] tradição predominantemente escrita” (Gazzinelli 2007, 11-12). É principalmente um sistema intelectual, cujos escritos eram usados na prática pelos cultos eleusinos e dionisíacos (cf. 42-47).
A doutrina órfica começa, pois, a ter um movimento mais significativo a partir do século V a.C.. Podemos interpretar o profeta Orfeu, dentro do Orfismo, como um reformador da religião, que pretende polir o excesso dionisíaco e integrá-lo em Apolo (cf. Guthrie 1993, 9).8 A iniciação decorria envolvida em secretismo, bem como as doutrinas ensinadas, que se mantinham destinadas apenas aos que pertenciam ao círculo (cf. Vernant 1990, 105).
Os órficos sentem a necessidade de escrever, ou melhor, reescrever, uma teogonia, que neste caso contém uma cosmogonia, porque “su interés se centraba en la salvación humana através de los misterios de Dioniso” (Bernabé e Casadesús 2008, 280). Diferentemente da Teogonia de Hesíodo, em que tudo se desenvolve a partir do Caos e ganha organização com a autoridade de Zeus (cf. Hesíodo 2005, 13), na concepção órfica, há uma noite primordial e Protogonos-Phanes-Eros é o deus criador,9 primeiro a nascer, sem ser criado (cf. Herrero 2010, 177): “the epithet of Eros also indicates that the power of creation (conceived of as sexual in nature) is rooted in him alone” (299). Protogonos nasce com asas de ouro e ambos os sexos, copulando consigo mesmo e gerando diversos deuses. Mais tarde, une-se à Noite, tecedeira de profecias, para criarem o Céu e a Terra (cf. Bernabé e Casadesús 2008, 282). Este deus primogénito nasce do ovo cósmico: a ideia do uno que dá o todo, (fig. 1). Esta visão vem de cosmogonias mais antigas, “which make the world begin with the hatching of an egg, […] Eros is the bird with golden feathers who comes out of the egg” (Cornford 1957, 70), fazendo da tradição órfica uma revisitação às formas mais primitivas de se pensar o Universo. O ovo cósmico é fruto do Éter. Este é irmão do Caos e ambos foram gerados pelos pólos masculino, o Tempo, e feminino, a Necessidade,10 figurados como duas serpentes aladas (cf. Bernabé e Casadesús 2008, 282). Posteriormente, Zeus, aconselhado pela Noite, tratou de devorar os Titãs e Protogonos, para novamente os dar à luz do seu próprio corpo.
Fig. 1
Orfeu recusa a divisão entre os vivos e os mortos e os dois mundos ficam mesclados por meio da potência estética, poesia e música de Orfeu, e do amor que une o que está morto com o que está vivo. O Orfismo pretende inserir a morte na vida, e esta na morte, diluindo a ideia do fim. Esta união de mundos de Orfeu é comparada à função mística do Eros primordial, que “fills up the interval between the human world and the divine, so that the universe is bound together in one” (122). Este é um dos objectivos do Orfismo: reconhecer a fragmentação humana como falha e voltar ao uno (cf. Uždavinys 2011, 49), sob o imperativo do amor que reside na unidade. Este amor sentido fê-lo enfrentar os perigos existentes no Hades com sucesso, porém, o excesso causa a sua perdição também. Talvez porque a morte une aquelas serpentes, Tempo e Necessidade, e Orfeu não acolheu em si o compasso de espera necessário para se voltar a unir à imagem da sua amada.
A viagem ao mundo dos mortos e o seu regressar acarretam outro dos princípios: a imortalidade da alma, a sua transmigração e o desprezo pelo corpo, que nada mais é do que uma prisão para a alma enferma (cf. Boulanger 1937, 46).11 Contrariamente ao pensamento de Hesíodo (cf. 2005, 47), em que os deuses são imortais e o humano mortal, a religião órfica atribui a imortalidade ao humano (cf. Vernant 1960, 40), enquanto ser espiritual, pela existência da alma (cf. Uždavinys 2011, 8), tornando-o um verdadeiro descendente dos deuses, trazendo consigo uma parte divina, uma parte de Dioniso, que mora dentro de cada humano, passível de ser acedida por meio das doutrinas, apenas transmitidas aos iniciados (cf. Vernant 1964, 1015-1021).
A alma do humano rompe com a tradicional adoração ao corpo, reinterpretando a existência humana: o corpo é o cárcere onde a alma paga pelo pecado original: o despedaçamento de Dioniso pelos Titãs (cd. Dodds 1997, 152),12 e o objectivo passa por se libertar do corpo como sinal de uma pureza alcançada. O Orfismo pretende inserir a morte na vida, sem que esta seja estranha e final. Um devir-morte, que faz esquecer o corpo, as formas rígidas, tornando-o cada vez mais luz e menos matéria, como Eurídice se tornara. Morre a inspiração e o artista vai em busca dela até à morte e é lá que se origina a fase seguinte da sua arte, uma arte profética.
Orfeu sublima a vida espiritual, tornando-a luz descarnada, ultrapassando as noções de vida e de morte. A sua arte é capaz de superar os limites da vida do mundo concreto aristotélico, dada a natureza profética da sua poesia post mortem, isto é, supera a natureza e o real. O artista Orfeu não poderia olhar para trás, para o lugar de onde saiu a arte, pois isso implicaria a perda total do que o inspira. Olhando, ele perde a musa, mas ganha pela experiência as inspirações proféticas.
O humano deve, então, fazer por se libertar do doloroso circuito das reencarnações, submetendo-se aos preceitos ascéticos órficos (cf. 8), “to return to the company of the gods” (cf. 55). Um desses preceitos ascéticos é o de ter uma dieta vegetariana: ao passo que no dionisismo há que matar o animal e comer a sua carne para comunicar com as divindades (cf. Barthélemy 1940b, 15). No Orfismo, os animais não são tidos como alimento porque “the lives of all creatures must be spared” (Burkert 1983, 7),13 e significaria isso a comemoração feita pelos Titãs com o corpo de Zagreu. Essa dieta seria também motivada pela crença na transmigração da alma, que poderia reencarnar em qualquer animal e, consequentemente, poder-se-ia dar um caso de canibalismo, como referiu o filósofo Empédocles, praticante da doutrina órfica (cf. Bremmer 2009, 14).
Para os órficos, o humano nasce com um lado dionisíaco, divino, espiritual, do bem, e um lado titânico, material, corporal, do mal, incorrendo no risco do maniqueísmo da nossa existência, de professar um dualismo que aufere à carne um estatuto de pecado e à alma um estatuto divino e imaculado. Todavia, mesmo que não se queira assumir essa dicotomia, a fragmentação de ambos os corpos, “can also represent the forces of separation and fragmentation on the level of the individual soul” (apud Uždavinys 2011, 67). Orfeu, inserido nos mistérios apolíneos, converte-se à religião dionisíaca, sem renunciar Apolo (cf. Boulanger 1937, 46), e, com a presença das duas religiões em Orfeu, acontece uma terceira religião: o Orfismo: “Apolline in character […and…] is a Dyonisus tamed, and clothed” (Cornford 1957, 195). O poeta contém em si os dois deuses e, no culto órfico, a fusão entre a exactidão apolínea e o êxtase dionisíaco tornam o Orfismo um modus vivendi que prima pelo equilíbrio e pela transformação do espírito (cf. Uždavinys 2011, 38).
Nas palavras de Cícero, o grande poeta tem de ter invariavelmente a presença de uma inspiração, algo semelhante à loucura (cf. Cornford 1975, 106). Parece-nos que os quatro tipos socráticos de inspiração, ou de loucura, mania, se encontram em Orfeu (cf. Uždavinys 2011, 4).14
A loucura poética, pelas musas, originando o talento hipnótico da arte de Orfeu, que no seu espírito “assiste aos feitos que ilustra” (Cornford 1975, 123), qual vidente. Esta inspiração, fá-lo artesão e manipulador da matéria da vida. Seduzindo, conduzindo, convencendo, iludindo, Orfeu legou aos seus diversos seguidores esta faceta de ilusionista, que gera charlatães, falsos curandeiros e falsos profetas. Não pela culpa dos ensinamentos órficos, mas talvez porque esses enganadores apenas possuíam desequilibradamente essa virtude.
A segunda loucura, do desejo e excesso de Eros, faz Orfeu ir ao submundo incitado pelo impulso do amor que sentia por Eurídice, tentando resgatá-la e unir-se a ela novamente, movido por Eros, para regressar ao Uno (cf. Uždavinys 2011, 8). Sem o arrebatado desejo de rever e reaver a sua amada, Orfeu não teria ganho a terceira loucura, mântica, profética, de Apolo, que “recorda o passado, entende o presente e prevê o futuro” (Cornford 1975, 118). O excesso de desejo de reunião erótica fá-lo quebrar a linha da vida e chegar ao lugar da morte. Contudo, o seu lado mais humano, fáustico até, leva-o a falhar na campanha de reunir a morte com a vida. Todavia, a aprendizagem feita nesse processo garante-lhe o estatuto daquele que estará sempre à frente do seu tempo, profeticamente lançando a sua arte para o desconhecido e abstracto devir.
Por fim, a loucura anagógica concedida por Dioniso, que o faz retornar e purificar a vida, na sua dimensão ascética libertadora. O xamã volta a ser invocado, pois, deste ponto de vista, ele também possui as quatro formas de inspiração, enquanto poeta, profeta e sábio (cf. 233). Assim, Orfeu pode ser considerado com a construção simbólica do próprio ovo cósmico, que integra os quatros elementos. A inspiração é aérea, a paixão é ígnea, a descida à morte pertence à terra, e a purificação final é pela água feita. Haverá uma correspondência destas fases com o movimento artístico órfico?
Orfismo, um modus operandi
Admirez le pouvoir insigne
Et la noblesse de la ligne:
Elle est la voix que la lumière fit entendre
Et dont parle Hermès Trismégiste en son Pimandre.
Guillaume Apollinaire, “Orphée”, Le Bestiaire, ou Cortège d’Orphée
O século XX fica marcado por uma nova vivacidade na arte, tendo como cicerone o Cubismo. Os seus pioneiros intentaram aplicar o movimento, desmontando fragmentariamente o real, para que a percepção espácio-temporal fosse também ela modelada (cf. Francastel 1983, 206-207). A arte tinha de dar conta do que se vivia neste século. Os seus artistas não seriam indiferentes ao movimento, tempo e velocidade, às ciências, que permitiam revelar o pormenor microscópico e prometiam o escrutínio da realidade. Dos meios de transportes ao cinema, tudo inspirava outros olhos e outros formas de agarrar o real e de o modificar, ou melhor, de o assinalar. Assim, a perspectiva angular, o interseccionamento de planos, as especulações das linhas, de olhar cúbico, começam a expandir-se. Finalmente, a cor e a análise da luz inserem-se na arte cubista. Assistimos, pois, a um trabalho de “perspectiva articulada – com pontos de vistas múltiplos” (216).
Em 1913, nasce em França, como ramificação do Cubismo, e influenciado pelo Fauvismo (cf. Apollinaire 1913, 69), um movimento artístico apelidado de Orfismo por Guillaume Apollinaire, inspirando-se no poema “Orphée”, do seu Le Bestiaire, ou Cortège d’Orphée, cujo intuito "était dans le sens de rallier au cubisme toute manifestation d’art de l’époque” (Delaunay e Francastel 1957, 169), construindo desde já uma ponte com o Orfismo grego, pela mesma necessidade de unir diferentes formas de expressão cultural e mística, nomeadamente a fusão apolínea e dionisíaca no culto órfico, isto é, a arte do belo numa dimensão ctónica e extática. Orfeu torna-se o símbolo tutelar do movimento porque o seu canto “était censé amadouer même les fauves, faire se mouvoir les rochers et les arbres; l'orphisme pouvait ainsi entraîner au rythme de son chant les objets réfractaires” (Damase e Delaunay 1971, 307). Portanto, mover o que resistia ao movimento, mover o insubmisso, seria o mote. A necessidade de criar este movimento radica no facto de o chamado Cubismo instintivo, que apela à intuição e ao instinto do artista, carecer de clareza e de crença artística (cf. Apollinaire 1956, 37). Em Apollinaire, como observarei, essa crença e clareza passarão por uma motivação espiritual também.
Além de Apollinaire, destacavam-se no grupo Sonia e Robert Delaunay, Fernand Léger, Marcel Duchamp, Frantisek Kupka, Francis Picabia, Alexander Calder. As suas obras possuem como características o padrão, o jogo de cores quentes e frias, o uso de cores puras, num contraste simultâneo, analogamente à música e ao imaginário abstracto, evocando movimento por meio da luz, interesse retirado do Impressionismo, que se inscrevia num ritmo descompassado nas suas formas circulares, nas suas hélices e espirais. Esse contraste simultâneo, em que na unidade se observa a multiplicidade, também é apanágio da tradição órfica, cujo objectivo é “di superare i contrari, di comprendere che bene-male, bello-brutto, luce-tenebre e così via, sono momenti della stessa unità che si manifesta in modi diversi” (Castro 2017, 205). Um percurso labiríntico que perde e encontra perpetuamente os olhares e pensamentos. O Orfismo, enquanto culto, tenta reconciliar dois contrários, em que um não determina o outro, Apolo não determina Dioniso e vice-versa, por isso, na luta por essa conquista alcança-se o Sol, “an immutable deathless God” (Cornford 1957, 196). Esta junção de forças, que da sua tensão dão origem às diversas nuances do Orfismo, atingindo a luz e uma noção de pureza, é contemplada na corrente artística também, como diz Robert Delaunay.
[…] si réellement une couleur simple détermine sa couleur complementaire alors dans le cas contraire si elle ne la détermine pas, elle se brise dans l’atmosphère et provoque simultanément toutes les couleurs du spectre solaire. Cette tendance on peut l’appeler l’Orphisme (Delaunay e Francastel 1957, 165).
O nome Orfismo era então atribuído a todas as manifestações artísticas coloridas, inclusivamente nos domínios da poesia e da música, cujos “éléments [ont été] empruntés non à la réalité visuelle, mais entièrement créés par l'artist et doués par lui d’une puissante réalité” (Apollinaire 1913, 25). O que estava em jogo era, pois, a expressão da subjectividade, uma olhar para dentro e um saber fazer vinculado ao que o sujeito tem para oferecer. Neste ponto, o culto órfico também se assemelha, posto que “il privilegio dell'iniziazione consiste in un «vedere» che altro non è che un «sapere», non di tipo scientifico, bensì è un sapere sapienziale, un'esperienza sacrale che si fa assistindo ai misteri” (Castro 2017, 52). O saber ver órficos formulam a sua técnica expressiva ab intra, a partir de dentro da experiência do sujeito.
A busca pelo puro, pelo sublime, nessa religião ascética, que subjuga Dioniso – tornando-se este Apollinised –, como foi anteriormente citado, repercute-se no modo como se vive, da alimentação, à purificação do corpo pela água, à contemplação até às suas esperanças além-vida. O caminho órfico passa por práticas espirituais e por condutas irrepreensíveis, submetidas a uma certa ordem, para encontrar esse estado puro primordial. Da mesma forma, o grupo de Puteaux, assim conhecido pelas reuniões entre artistas terem sido sediadas nessa comuna francesa, teve de passar pelo rigor do Cubismo analítico para chegar ao seu estado de pureza, em que, como afirma Guillaume Apollinaire, “les oeuvres des artistes orphiques doivent présenter simultanément un agrément esthétique pur, une construction qui tombe sous les sens et une signification sublime. […] C’est l’art pur” (Apollinaire 1913, 25).
No campo da arte abstracta, abdica-se dos adornos e contingentes da realidade, promovendo uma maior espiritualidade, assim como, comparativamente, o Orfismo incita à libertação do corpo, como marca da pureza da alma. Há algo de imaterial, que lembra o espectro de Eurídice, e algo de informe que pode fazer lembrar o movimento supra-humano de romper a fronteira vida-morte, gerando a própria desfragmentação e deformação. Nessa senda destruidora, em nome de uma busca pela própria unidade e essência, quebrando o tempo, ganhamos o dom do futuro, a profecia. Aqui, a unidade e a essência lutam para se fazerem sentir pela cor e pela luz.
Da mesma forma que Eros nasce num universo “conceived in terms of darkness and emptiness” (West 1983, 201), assim nasce o Orfismo francês, para dar luz, plenitude e vida ao Cubismo, visto que “le retour des cubistes aux formules anciennes prouve l’inefficacité du cubisme cosidéré comme plenitude expressive!” (Delaunay e Francastel 1957, 170). O retorno às fórmulas antigas é encontrado, como já vimos, igualmente na reanimação do Orfismo, “a return to a type of religion more primitive […] caused by one of those outbursts of mystic fervour which […] upheave and shatter the crystallised forms of theology and ecclesiasticism” (Cornford 1957, 195). O regresso a estruturas do passado não significa necessariamente copiar os mesmos moldes em que estas existiram, mas, a partir delas, criar um movimento: “the Dionysus, to whom the Orphics return, is not the old Dionysus. Thus, Dionysus, though revived, is also reformed” (196), o mesmo sugerem Robert Delaunay e Francastel, dizendo que “représenter est à la base de la plastique. représenter ne veut pas dire copier ni imiter, mais créer” (Delaunay e Francastel 1957, 173).
Assim, a religião órfica diverge dos ensinamentos tradicionais da Grécia Antiga, concomitantemente,15 o Orfismo, movimento artístico, ergue-se pela criação, em detrimento da reprodução, tentando-se demarcar igualmente do resto da produção artística da sua época. Afinal, o Orfeu que da morte saiu, não é o mesmo Orfeu que na morte mergulhou. O mesmo no diferente. A transmutação ocorre entre o mesmo, mas, ora enquanto sujeito, ora enquanto objecto de transmutação: auto-anulação da matéria, para expressão da luz. O artista órfico transmuta a realidade a partir de dentro e, nessa operação, ele se aproxima da revelação órfica.
[…] la pluralità delle cose, il molteplice, nasce da uno sguardo del dio dell'unità e dell'interconnessione, Dioniso, sulla propria esteriorità che si manifesta come pluralità. Se ne deduce che: […] il mondo è atto conoscitivo-contemplativo: conoscenza senza soggetto né oggetto […] (Castro 2017, 109).
A pintura reivindica uma analogia com a música, no campo do abstracto, na medida em que, enquanto Orfeu tinha a sua lira e a sua poesia, o grupo Puteaux tem a poesia e a pintura. Percebemos isso no trabalho Horse Calligram de Guillaume Apollinaire (fig. 9): um poema visual de 1917, cujo movimento da escrita desenha gera um movimento ecfrástico. Ou no trabalho de Sonia Delaunay, em 1913 (fig. 5), sobre La prose du transsibérien et de la petite Jehanne de France, de Blaise Cendrars, que descreve, pintando, sem recorrer à figuração, criando uma música visual, se assim quisermos; é dizer “nous nous dirigeons vers le lyrisme plastique.” (Delaunay e Francastel 1957, 166). De igual forma, Robert Delaunay, em 1911-13, pinta Les Fenêtres (fig. 6 e fig. 7), a partir do poema de Apollinaire sob o mesmo título, em que se pode ver o trabalho de luz e cor submetidas a um movimento, ganhando uma espécie de textura visual, sem deixar de haver alguma influência apolínea na delimitação dos espaços. Estas janelas, escritas e pintadas, simbolicamente dão a abertura para se descer aos mortos, mas também dão fragmentos, que, no seu todo, mostram as cores reunidas em celebração luminosa.
Em todo o caso, a música de Orfeu continua a fazer-se ouvir no movimento artístico francês, pelas palavras de Apollinaire. No primeiro poema Orphée, do seu bestiário, lê-se “et la noblesse de la ligne: / elle est la voix que la lumière fit entendre” (Apollinaire 2011, 2). A linha é a voz que a luz faz ouvir: um verso encantatório, digno de um órfico, que reúne todas os contrastes, dissolvendo a forma e coagulando a ideia de que a luz é da mesma ordem do som e que ambos se presentificam na linha. Com efeito, o prefaciador do bestiário, X. J. Kennedy, sublinha que “this legendary hero [Orpheus] meant much to Apollinaire […], whose lyre cast a spell over the listening animals” (Ibid. xiv), fazendo notar esta relação mágica entre o som e as palavras, aos quais se juntam a luz e a cor. Por isso se diz que cada obra dos artistas órficos “est un poème lyrique à la coleur” (Damase e Delaunay 1971, 307): a lira, o lírico e a cor. Nas suas notas, ao mesmo poema, traduzidas por Kennedy, Apollinaire assume a influência do Corpus Hermeticum, da suposta autoria de Hermes Trismegisto, o pai-mito da alquimia, relativamente à voz da luz, e indaga: “is not this voice of light the craft of drawing, that is to say, the line? And when light fully expresses itself, all things take on color” (Apollinaire 2011, 69). Esta construção interartística encontra-se em Orfeu, na própria composição do movimento religioso: “l'Orfeo che i nostri bricoleur ereditarono era già in se stesso il risultato di un bricolage notevolmenteduttile e mutevole secondo il variare delle circostanze” (Castro 2017, 75). As bricolagens dos orfismos acontecem pela sua permeabilidade e, sobretudo, diafaneidade, transparecendo a luz da criação humana.
As cores sobrepõem-se de forma orgânica, capazes de criarem uma expressão material que embriaga os sentidos e que oferece uma imagem unificada de várias individualidades. É o paroxismo do Orfismo, não só na arte, como na consagração do Eros primordial, na reunião do corpo de Dioniso, na comunhão de Orfeu com Eurídice. “La représentation rythmique des couleurs, […et…] la simultanéité harmonique des couleurs” (Delaunay e Francastel 1957, 168) conseguem sublimar a representação, atrair o puro dramatismo com a cor e a luz, promovendo um certo contraste que cria um forte movimento e uma profundidade que nos deixa viajar para outros mundos, para se resgatar a inspiração perdida ou a fenecida Eurídice. É a cor que dá a dimensão e que determina o ritmo das formas.
A objectividade retira-se da representação e dela sobra apenas a essência, a pura essência da sua natureza. Afirma Robert Delaunay que “l’art est dramatique, que sa parfaite expression est trouvée dans la vie vers la lumière” (188). Veja-se, por exemplo, o quadro Hélice de Robert Delaunay (fig. 8), de 1923, e facilmente se percebe o movimento criado pelo contraste e pelas diferentes nuances da cor, resultando daí um certo ritmo que não se deixa demover pela delimitação precisa de certas formas pintadas, querendo atravessar o espaço, lembrando inclusivamente os avanços na aviação. Enquanto estas mesmas formas, que obedecem a um traçado rigoroso e frio, são ultrapassadas e perdem relevância, ao existir uma hélice que mostra a vontade de mesclar as formas, de distorcer, num movimento axípeto, que quer comover e unificar, vórtice que assume o papel de Eros. Orfeu excêntrico e concêntrico, apolíneo e dionisíaco.
A obra de Sonia Delaunay, Le Bal Bullier (fig. 2), de 1912-13, apresenta um novo peso e uma nova profundidade que nos propõem uma dança frenética, extática, nas cores e formas. No seu Prismes életriques (fig. 3), de 1914, além dos traços supramencionados, encontra-se mais abundantemente a forma circular, facilmente conotada com o ciclo de reencarnações de Dioniso, cujos órficos querem romper. A circularidade invoca o movimento, invoca o retorno, mas nem por isso invoca o regresso ao mesmo. É a revelação do diferenciado que está em jogo.
Fig. 2
Fig. 3
O quadro Contrastes simultanées: Soleil et Lune (fig. 4), 1912, de Robert Delaunay, acrescenta ao Orfismo a procura pelo equilíbrio, metaforizada pela relação entre o sol e a lua, combinação que também tem o seu lado espiritual, na hermenêutica órfica: o equilíbrio apolíneo, o Sol carreado por Apolo, e a Lua, da deusa Selena, mãe de Museu, discípulo de Orfeu (cf. Herrero 2010, 114). Dois mundos que se fundem: o dos mortos e o dos vivos, o da noite e o do dia, o contraste entre a escuridão e a luz, um casamento alquímico da lua com o sol, a união sagrada, o voltar ao Ovo primordial, à unificação preconizada pelos órficos.
Fig. 4
De resto, é de salientar a expressividade da cor tão aclamada pelos órficos cubistas, como já vimos, mas em especial por Robert Delaunay. São exactamente esses contrastes, em conjunção, que permitem ao artista exprimir “de maneira plástica, uma experiência imediata da cor, só por si figurativa da ordem total dos fenómenos” (Francaste 1983, 161). Certas cores justapostas trazem um movimento e uma sensação de luz plena, cuja unidade vibrante transmite vida.
Com Frantisek Kupka, Printemps Cosmique (fig. 10), de 1913, mergulha-se nos turbilhões de formas e cores que permitem tanto um deslumbramento estático como extático, logo, um modo ascético de abordar a arte órfica e um modo dionisíaco de se entrar nesse mundo onírico e, contudo, bastante material. Kupka foi influenciado pelo ocultismo, o que incrementa ainda mais a dimensão mágica e mistérica na sua arte. Algo como círculos deformados que continuam em profundidade, de uma textura quase palpável, remetem para a viagem aquática e aquosa, que promove a matéria da vida manipulada, alterada e renascida. Há igualmente algo de fragmentado, ainda assim unido, num mesmo sistema, que evoca os estudos moleculares.
No Orfismo, enquanto movimento artístico, o querer alterar a dimensão fria e rígida do Cubismo analítico, por exemplo, é equiparável à dimensão inexorável da morte que Orfeu quer contrariar. A mesma ponte se pode estabelecer com a religião órfica, dado que esta transmitia a crença da reencarnação e o romper com esse ciclo. É no morrer e renascer que o ser humano reencontra a sua vocação e perpetua as suas actividades intelectuais e artísticas, no confronto com a dor morre-se e renasce-se. Sem o Cubismo analítico, não haveria a necessidade de se recorrer ao Orfismo; sem a morte de Eurídice, Orfeu não se teria reinventado. Ou melhor, “la katabasis iniziatica prelude sempre a una risalita verso la luce (anabasis)” (Castro 2017, 49).
Fig. 5
A intenção de sair do racional e quebrar com um aspecto tão severo, como a morte, traz à arte o desapego à materialidade, às formas realistas, permitindo suspender o véu, ou a crença neste que tornaria a katabasis impossível e, em última instância, impediria o mergulho num “eu” oculto, que seria na Antiguidade um daimon, cuja função “is to be the carrier of man's potential divinity” (Dodds 1997, 153). Com o intuito de viajar até ao mundo dos mortos e de convencer Hades a entregar-lhe Eurídice, Orfeu potencia os seus dotes artísticos por meio da dor, do exílio e da necessidade de romper barreiras, exponenciando, assim, a sua arte. A sua experiência torna-se mote para dela derivar uma prática espiritual e religiosa que influenciou basilarmente o Cristianismo, com todo o estudo Herrero, já citado, aponta (cf. Herrero 2010).
Neste sentido, é relevante explorar que tipo de luz é essa tão presente nos orfismos. Atinente ao movimento religioso, é flagrante que o objectivo sacrificial de Dionisio e de Orfeu seja demonstrar a possibilidade da salvação (cf. Castro 2017, 67). No contexto artístico, é Apollinaire quem nos esclarece, ao comentar o seu poema “Tortoise”, confirmando: “trained in magic, he [Orpheus] could see into the future and with Christian foresight predicted the coming of the SAVIOR” (Apollinaire 2011, 70). A luz salvífica e mistagógica que redime e salva é a procurada por Apollinaire. A tal crença artística mencionada inicialmente. Sem podermos apresentar a mesma intenção em todos os artistas órficos, mantem-se pertinente a intenção de um dos seus fundadores e, principalmente, de quem lhe deu o nome. É essa luz da arte transcendente que o faz escrever no poema do terceiro “Orphée”: “n’oyez pas ces oiseaux maudits, / mais les Anges du paradis” (48). Ao olhar para cima, em direcção ao sol e à luz, ou, ao olhar para a tela, a luz e a cor fazem ver anjos do paraíso, em vez de pássaros.
As quatro loucuras, inspirações, de Orfeu são evocadas, para se arriscar uma ponte com a arte órfica. Na primeira fase, o Cubismo órfico nasce como filho do próprio Cubismo, assim como a loucura poética é transmitida ao bardo pela mãe, a musa Calíope. Orfeu pode ser filho de Apolo, mas entrega-se também a Dioniso. Ambos os orfismos hipnotizam, seduzem e manipulam a natureza circundante, os materiais dos seus ofícios.
Fig. 6
A morte que leva ao excesso de desejo corresponde a uma cisão com o Cubismo analítico, na intenção de trazer a pureza das cores e o lirismo das formas novamente à vida. Esta segunda loucura, erótica, permite reunir o material com o imaterial a vida e a morta, o corpo e o espírito. Quebra-se algo inquebrantável como se rompe as formas rígidas analíticas.
A profética inspiração de Apolo, a terceira loucura, faz Orfeu movimentar-se para o futuro, tal como a arte abstracta que, sem olvidar as suas raízes, projecta-se para fora do seu tempo. Mas, projectar e criar algo fora do seu tempo, faz com que essas criações se tornem já desse tempo, elas presentificam-se. Assim como as profecias órficas, passam da previsão para a construção do que se previu. Actualiza-se, na senda aristotélica, para o mundo fenoménico todas as virtualidades, assim como se reorganizam todos os elementos pictóricos, para que os sonhos, fora da forma, entrem na tela.
Por último, a loucura dionisíaca em Orfeu corresponde à libertação órfica das formas rígidas e concretas das convenções artísticas. É ainda assaz pertinente notar que Zeus devorou os Titãs e Protogonos-Phanes-Eros, isto é, o primeiro desejo de luz, e reorganizou o cosmos. O Cubismo órfico integrou as suas origens e constituiu uma nova forma de se fazer arte. O Belo, o Bom e o Verdadeiro de Platão passam por um êxtase emancipador da arte. Em última análise, emancipador do eu demiurgo.
Em jeito de conclusão, o movimento artístico chamado por Guillaume Apollinaire de Orfismo capta do poeta Orfeu o seu lirismo e a sua musicalidade, materializados nas cores, nas formas e no movimento rítmico que estas ganham. As suas formas circulares e centrípetas remetem para as crenças do culto órfico, nomeadamente, o círculo de reencarnações que deve ser quebrado e a existência fragmentária que deve ser reintegrada novamente, segundo a cosmogonia órfica, unindo as partes do corpo, quer de Dioniso, quer de Orfeu. É de fragmentos que o Cubismo, em geral, e o órfico em particular, também falam. Como reflecte Francastel, em relação à Torre Eiffel de Robert Delaunay, trata-se “duma montagem em que se fragmenta o assunto da observação” (Francastel 1983, 218). Sem dúvida, a técnica mecânica inspirou este processo de construção.
Fig. 7
O talento hipnótico da lira de Orfeu tem correspondência directa com a capacidade contemplativa, e outras vezes extática, das obras dos artistas do Orfismo. Limpar o corpo da culpa do crime cometido pelos Titãs relaciona-se com a pureza pretendida na arte órfica. A sua função catártica e libertadora advém de conjugação dos elementos pictóricos sem adornos, mas também da relação interartística, como se constata em Apollinaire, nos seus poemas visuais e sinestésicos.
Fig. 8
O carácter repetitivo do ciclo de encarnações, bem como de tudo o que é ritualístico conjuga-se bem com esta perspectiva de Francastel que nos diz que “não há arte senão onde há repetição” e que esta se situa “no ponto em que alguém se mostra capaz de retomar um apontamento e de o transformar numa obra completa” (254). O símbolo do ouroboros presente na religião e na arte. Repetição e união de opostos que criam sempre um novo elemento, aquando do regresso de si próprios ao ponto de onde partiram.
Fig. 9
Fig. 10
O objetivo deste movimento artístico, arriscamos, era dar alma, animar, e dar luz ao Cubismo analítico, infundir no apolíneo o dionisíaco, tal como Orfeu fez dentro dele e colocou em prática no culto órfico. O esvaecimento do véu que separa a morte da vida, o descobrir a senda divina existente em cada um, acentuado a individualidade e imortalidade humana pela via artística, leva, por sua vez, à universalidade da contemplação do objecto artístico, não obstante as apreciações subjectivas de cada um. Essa questão espiritual está bem visível em Apollinaire, para quem Orfeu é um profeta do Cristianismo e, ousaríamos, Apollinaire, um profeta do novo Orfismo. A reunião das musas com Eros, Apolo e Dioniso existem em Orfeu e no Cubismo órfico, concedendo-lhes as suas loucuras, melhor dizendo, inspirações.
Porventura, torna-se curioso notar que, dentro do Cubismo, o órfico não ficou tão nimiamente divulgado, nem praticado ou reflectido, ainda que a arte abstracta tenha ganho muito com esta ramo. Como observa Gordon Hughes, a sensação que sempre se teve foi a de que “Orphism is important. It’s just not clear why” (2014: 4), ou ainda “the movement does not actually move” (145). Da mesma forma que, de suma relevância para um conhecimento da cultura que nos cria, o Orfismo continua anónimo ou à margem. Apolo e Dioniso são bem conhecidos, este último, talvez mais, na sua variante romana, Baco, ligado sempre ao vinho, quiçá, fruto do descrédito dado pelo Cristianismo, arrogado detentor do verdadeiro “vinho”. Orfeu fica mitificado pelo talento para cantar, pela sua viagem ao submundo em busca do seu amor e o insucesso nessa empresa.
Possivelmente, dizermos que os orfismos passam um pouco despercebidos, ao longo dos tempos, talvez seja verdadeiro e talvez seja intencional: semear sem colher, contribuir sem apanágios. A salvação pretendida pelo culto e pelos artistas, ou, pelo menos, por Apollinaire, encontrava-se numa luz redentora e não numa luz efémera e opaca. Conhecer estas duas dimensões órficas é deixar-se iniciar nos mistérios do mundo e dar novamente aquele poder inefável ao mito. O grupo de Puteaux distingue-se, com efeito, pela sua capacidade de dialogar esteticamente com o mito e com o culto, ao mesmo tempo que comunicam com o seu próprio mundo. Afinal, há um mundo, ainda não comunicado, dentro de cada órfico, sob a égide dos dons de Orfeu, que rompe as leis da natureza, da sua imitação e referência, para dar à luz um novo universo.
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Notas
1
Marcel Detienne argumenta, a partir dos fragmentos da peça Bassarai de Ésquilo, que as mulheres atacaram Orfeu instigadas por Dioniso, quando o bardo nomeou o Sol de Apolo, considerando-o o maior dos deuses. Detienne, L’écriture d’Orphée, 128.
2
A escolha que o mito faz, de ser Lesbos o destino de Orfeu, não é casual, “dado que Lesbos era reconocida como la cuna de la monodia, un subgénero de la lírica griega en el que sobresalieron poetas de esta isla”. Bernabé e Casadesús, Orfeo y la tradición órfica, 26.
3
“Dionysos et Apollon étaient deux révélations diverses de la même divinité. Dionysos [,] vérité ésotérique, … les mystères de la vie, … Apollon, …vérité appliquée à la vie terrestre et à l’ordre social”. Schuré, Les grands initiés, 292.
4
Sobre as relações entre a tradição órfica e a tradição homérica, Bernabé e Casadesús, Orfeo y la tradición órfica, 247-278.
5
A influência xamânica na Grécia, desde o período Arcaico, não é consensual. Bremmer, The rise and fall of the afterlife, 27-40.
6
Esta relação incestuosa entre Zeus e a sua filha Perséfone pertence apenas à genealogia órfica. Jáuregui Herrero, Orphism and the Christianity in late Antiquity, 53.
7
Há duas hipóteses para se reflectir sobre os motivos que levariam os poetas a assinarem como Orfeu. A saber: a antiguidade do poeta, tornando a ideia defendida mais respeitável, quanto mais antiga fosse, principalmente, se fossem ideias também validadas por Platão; e o discurso de Orfeu ser sagrado e de revelação. Bernabé e Casadesús, Orfeo y la tradición órfica, 130-131).
8
Isso explicaria também a vingança de Dioniso (nota 1).
9
Os três nomes possuem significados complementares: o primeiro a ser nascido, luz e o desejo/ amor, na sua acepção mais sexual, respectivamente.
10
Tempo, enquanto ausência de velhice, e Necessidade, enquanto destino inevitável e inalterável.
11
Embora essa ideia do corpo-prisão seja discutível, podendo ter sido acrescentada ou modernizada por Platão. Uždavinys, Orpheus and the roots of Platonism, 93.
12
A famosa expressão socrática soma-sema que dá a imagem do corpo-cárcere.
13
Acerca dos animais que não são alimento, cf. Uždavinys, Orpheus and the roots of Platonism, 8.
14
Cornford corrobora o estatuto de Orfeu, de possuidor das quatros loucuras socráticas. Cornford,Principium sapientae, 143.
15
Estas divergências, cosmogónicas, teogónicas e ascéticas, levam o humano a ser .promoted to the climax of creation”, colocando o Orfismo “completely outside normal civic religion”. Bremmer, The rise and fall of the afterlife, 22.
Notas de autor
sergioneves@campus.ul.pt
ISSN: 1579-7414
Vol.
Num. 20
Año. 2021
ORFISMO ENTRE A RELIGIÃO E A ARTE
Sérgio Manuel Valadas das Neves
Universidade de Lisboa
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