Introdução: derivar como Chaplin
Em passagem do seu diário, Eduardo Prado Coelho, leitor atento de Eduardo Lourenço, analisa um dos motivos da sua admiração para com o autor de Labirinto da Saudade: a sua relação particular com o tempo (). Se, por um lado, uma relação de desprendimento de Lourenço para com o “seu tempo” impede a concentração requerida à construção da “grande obra”, medida pelo fiel da eternidade, por outro a “travessia apaixonada dos tempos” impõe a disponibilidade de uma atenção descontínua, traduzida numa “abertura em relação ao real” (). O apontamento é certeiro: Eduardo Lourenço, na sua viva e prolífica curiosidade, navega pelas intermitências do tempo, muito mais de que persegue o fio da sua continuidade. A sua consciência ensaística decorre de uma postura de descentramento, em que a sedução da matéria pensável se sobrepõe ao modelo de continuidade do tempo ou à linhagem de uma convencional história da racionalidade. Este é já um dos fatores de contemporaneidade em Eduardo Lourenço.
Mas não só, nem talvez essencialmente. Voltando à anotação de Prado Coelho, uma metáfora cinéfila completa o instantâneo: Eduardo Lourenço vem até nós numa espécie de “desequilíbrio chaplinesco” (), a partir do qual irrompe uma inédita e desarmante lucidez. Esta forma de exercer a razão, ziguezagueando no interesse do tempo descontínuo, é já a descrição de uma atitude ensaística, perante a qual a contemporaneidade surge como o mais instigante e o mais impossível dos desafios. O ensaio é uma irresolução, que corresponde à irresolução do que se designa por “nosso tempo”.
Este artigo dirige-se a esta contemporaneidade, entendida não apenas como o tempo de Eduardo Lourenço mas, fundamentalmente, no modo como esta se desenha como problema dos tempos em Eduardo Lourenço. Enfrentar as dificuldades do tempo vivido, que nos pensa mais do que o pensamos a ele (), vai implicar o reconhecimento de uma deriva especulativa que começa na filosofia, mas que excede os seus limites disciplinares, sem que por isso o apelo da pergunta filosófica deixe de se entretecer no fio da sua escrita.
Vai pressupor também o reconhecimento de um percurso intelectual em diálogo com as mais candentes interrogações filosóficas do seu tempo, percurso esse singularmente nutrido pela necessidade de “romper essa muralha da China constituída pelas ortodoxias circulantes” (). A heterodoxia, que analisaremos na primeira parte deste artigo (1), corresponde a um desejo de dissidência que excede a manifestação de insurgência juvenil, em que o próprio autor por vezes limita a atitude, para permanecer como fuga aos ditames da doxa que é, ao mesmo tempo, uma forma-outra de incursão no mundo e no tempo. A heterodoxia assume-se aqui como postura ética transversal ao todo do pensamento de Eduardo Lourenço.
Num segundo momento (2), o ensaio concebe-se como uma tradução da experiência reconfigurada do tempo, onde a transgressão epistémica e o posicionamento ontológico requerem uma nova linguagem ao pensar. Pretende-se auscultar, no hibridismo que caracteriza o ensaio (, p. 136), o gesto que permite repensar a fragmentação da experiência contemporânea do mundo.
Poesia e realidade ou a literatura como sentido estarão em jogo no terceiro momento (3), em que uma poética do tempo designa o fulcro do pensamento existencial de Eduardo Lourenço, no seu modo singular de ler, produzir e permanecer no lapso incaptável de uma “contemporaneidade” nunca plenamente presente.
1. A Heterodoxia como ética
Não podemos excluir uma certa ironia na expressão de Eduardo Lourenço, quando elege uma referência literária para descrever a sensação de dolorido abandono do exercício disciplinar da filosofia: “Eu perdi a minha Eurídice” (). Se, por um lado, o pensador português confirma, nesta referência, a suposta passagem do campo filosófico ao domínio literário, por outro lado contradiz a literalidade da mensagem pelo conteúdo da narrativa. Em luto tão impossível quanto o de Orfeu, que aliás identifica com os destinos da poesia (), o pensador coloca-se sob o espectro permanente dessa Eurídice perdida. A silhueta de Eurídice é a permanente instigação de um perguntar mais propício à reponderação criativa do que à apostasia disciplinar, pelo que –como confirma a vasta obra de Eduardo Lourenço– nunca esse abandono se efetiva, tal como nunca se ultrapassa a tensão limiar do abandono.
Para o pensador português esta aproximação mitológica é a mais visível manifestação para o que, sob o conceito fundacional de “heterodoxia”, designa uma atitude de dissidência face a campos ideológicos cristalizados nos seus anos de formação, mas que a posteridade trataria de revalidar em toda a sua plenitude. Nessa construção, revelada permanente, de um território de pensamento e de intervenção “fora dos campos delimitados por qualquer ortodoxia, de qualquer género que fosse” (), o que estava prestes a definir-se era um posicionamento inédito na cultura e pensamento contemporâneos, nascido de uma indecisão sem âncora entre filosofia e literatura.
Entre essa Eurídice perdida e a formação da heterodoxia como necessidade imposta pelo tempo constitui-se um universo ensaístico, destinado a erigir-se como uma espécie de abóbada sob a qual a filosofia –uma filosofia, ainda que por vezes devindo outra coisa– inscreve a sua contemporaneidade na saída de uma tradição logocentrada.
1.1 A heterodoxia como excesso sobre o logos
A primeira aproximação direta ao conceito de heterodoxia surge, de forma expressiva, a partir de uma aproximação mitológica. A serpente de Migdar, “símbolo de sugestões perpétuas” (), era a primeira expressão de um projeto de pensamento, dito heterodoxo, que continha, em forma e em substância, o que germinava da sua diferença: em forma, quando a prioridade do discurso mítico dá sinal da sua necessária excedência em face da razão sistemática; em substância, quando aí se tenta ultrapassar as lógicas de trincheira, conflituantes entre si na rigidez das ortodoxias. Tratava-se de um ato de recusa, uma “oração de liberdade” () de onde germinava um percurso derivativo e exigente.
Migdar, dobrada sobre si mesma, morde a sua própria cauda, símbolo da abertura de um posicionamento filosófico, ético e cultural que, desde o início, germinou a partir de uma necessidade de alternativa: nem as certezas das ortodoxias, expressas na contundência da mordedura da cobra, nem o desespero do niilismo, na sua circularidade sem saída, constituiriam formas viáveis para enfrentar os desafios do tempo. Era outro o ensinamento desta serpente, na verdade tão vulnerável à mordedura quanto contundente no golpe. O “inteiro movimento de morder e ser mordido”, tradução da “paixão circular da vida por si mesma” (), agrega o misto de virulência e de vulnerabilidade no encarar de uma realidade que, lida sob a exigência filosófica da fenomenologia ou das filosofias da existência (), suscita a necessidade de novo e renovado pensamento. Nele estava o acolhimento das grandes vozes filosófico-literárias do tempo, como estavam também os questionamentos de sempre: do eterno retorno, ao tempo e ao próprio mito, o famoso prólogo do primeiro livro de Eduardo Lourenço () constitui já um pensamento em promessa. Um pensamento que, na sua própria síntese, “já estava pronto para sacrificar o deus dos filósofos, se não ao de Jacob ou de Abraão (hélas), pelo menos ao de Kierkegaard, de Kafka e, sobretudo, de Pessoa” ().
Mas devemos não dotar de literalidade esse sacrifício, nem alijar o peso de um contexto no fluir desta necessidade de transgressão discursiva e disciplinar. É, na verdade, dúplice essa dimensão, assumidamente contextual, que, enquanto gera uma atitude ético-cultural batizada sob o desígnio de “heterodoxia”, comporta também uma espécie de condenação de entrega à circunstância que, longe da obra orgânica, moldará o que o próprio Eduardo Lourenço reconhece, mais tarde, como um “circunstancialismo” e uma “errância” ().
Trata-se, então, de uma atitude, em vez de um programa (); de um ethos que, na sua realidade, reativa ou esvoaçante, recusa o totalitarismo dos sistemas e alia-se, filosoficamente, aos pensamentos mais avessos à consolidação de um imperialismo de razão. Seminal, o primeiro dos prólogos sobre o “espírito da heterodoxia” tende já para definir-se a partir da necessidade de corresponder, em escrita e em pensamento, a uma realidade movediça e inatingível.
As filosofias da existência adquirem, neste seguimento e nesta época, uma importância quase óbvia. Já a heterodoxia, “humilde propósito de não aceitar um só caminho […] nem de os recusar a todos” (), tem nesta posição de humildade muito mais um posicionamento ético do que um artifício retórico. Dos territórios da cultura à linhagem da filosofia, de Homero a Aristóteles, tratar-se-á de responder a um sentido velado, esguio e interditado, onde tragicamente se situa a interrogação e a escrita.
1.2 A heterodoxia na transgressão dos limites da enunciação
A heterodoxia é, nesta conjuntura, já uma resposta, ou, pelo menos, uma via alternativa e singular à ambição totalitária da razão sistemática, que uma parcela considerável da grande filosofia do século XX toma como centralidade e urgência; por vezes, até, como limite do que disciplinarmente se desenvolveu sob o nome de “filosofia”. Lembre-se que em 1946, precisamente no ano em que o jovem Eduardo Lourenço de Faria se apresentava a júri universitário, Martin Heidegger sublinha, na sua Carta sobre o Humanismo, a necessidade de se não pedir demais à filosofia, dando maior atenção ao pensamento (). A possível versão, por Eduardo Lourenço, do apelo heideggeriano abre caminho a duas consequências, tornadas fundamentais no rumo posterior do trabalho do nosso ensaísta.
No campo filosófico, numa primeira consequência, veja-se o modo como um modelo discursivo tradicional vai deixando mais evidentes os limites do que entende por enunciável. Com crescente clareza, a tradição filosófica vai surgindo, não sem incómodo, como uma tradutora infiel da interrogação que, por vezes, ela própria dá por urgente. Tudo se passa como se a filosofia não contivesse em si mesma os meios de expressão dos seus próprios problemas, em registo que não deixa de reabilitar, parcialmente e com as cautelas devidas, a perspetiva de uma espécie de “logos poetikos”, tal como se antecipava no romantismo alemão do século XIX. A poética do romantismo sinaliza já os limites da representação filosófica, na sua mecânica exclusivamente conceptual, insistindo na supremacia da linguagem poética quanto ao alcance das questões do ser (). A distância histórica e teórica é considerável face a Eduardo Lourenço, mas não deixa de constituir-se aqui um precedente digno de menção. Deve ser sublinhado, porém, que o sacrifício do discurso filosófico não é, em Eduardo Lourenço, nem tão acintoso nem motivado pelos mesmos moldes. Uma das originalidades de Eduardo Lourenço está, precisamente, no exercício de um pensamento vivido a partir de um aparente sacrifício do filosófico em benefício do literário, mas que, na verdade, se concretiza como aprofundamento singular de uma problematização filosófica que nunca o abandonou (). O ensaísta move-se num território literário, que não assume como literatura, e num campo filosófico, que não assume como filosofia.
Por outro lado, numa segunda consequência, o fulgor particular deste “entre”, espécie de não-lugar entre o filosófico e o literário, sucede em Eduardo Lourenço como a expressão privilegiada de uma inquietação existencial, estético-literária e político-hermenêutica que não se saberia traduzir de outra maneira. A heterodoxia é o primeiro nome de uma linguagem nova, inédita na cultura portuguesa, ainda que em vivo diálogo com os seus inegáveis antecessores: António Sérgio, certamente, mas também Antero e, no mais decisivo dos encontros, Fernando Pessoa. Além-fronteiras, os espectros de Kierkegaard, de Nietzsche ou de Camus surgem, nas sucessivas edições de Heterodoxias, como uma espécie de roteiro marcando o caminho singular de Eduardo Lourenço.
Cada um destes corolários implica o que, no fundo, releva da tragicidade da experiência humana como motivo permanente na escrita do ensaísta, na sua exigência de nomear infinitamente a impossibilidade da concreção do sentido. Como ritmo, mais do que como meio, o ensaio impõe-se, na sua tragicidade derivativa. A serpente de Migdar nunca percute a mordedura no mesmo e exato local.
2. O Ensaio como contra-tradição
Não deixa de ser paradoxal que justamente um dos eventos de confirmação do estatuto de Eduardo Lourenço na montra da cultura portuguesa, a cerimónia de receção do Prémio Camões, tenha sido ocasião para o premiado sublinhar a quase consubtancial marginalidade do ensaísta no grande panteão da Cultura. Em texto de grande beleza, Lourenço posiciona-se, enquanto ensaísta, no mesmo espaço lúdico e infantil ocupado por um conjunto de crianças que, num poema de Rabindranath Tagore, brinca no adro de um templo.
Um ensaísta, completa Eduardo Lourenço, é uma criança que brinca no adro da Cultura. Sem dúvida para evitar que os seus servidores o tomem por Deus. E, pior ainda, que eles mesmos se tomem por Deus ().
Fora do espaço de privilégio e descentrado do tempo de proferição da palavra, temos o espaço e o tempo da experimentação, da descontinuidade e do encantamento – o espaço lúdico, à escala do olhar da criança como paradigma do olhar ensaísta (). O convite matinal de Lourenço quando, em Heterodoxia 1, instigava à recusa do absoluto, ao cuidado com a unidade como critério ou com a ilusão de que “tudo pode ser inundado de luz”, tem por correlato evidente o ensaio como morada de experimentação e de escrita, bem como ficção que a si mesma se analisa. É a própria disposição conceptual da escrita de Eduardo Lourenço que ditará, desde o princípio e atravessando de lés a lés a sua obra, “a inevitabilidade ou a condenação do fragmento” (). O ensaio surge, por hipótese, como uma desobediência aos preceitos epistémicos hegemónicos, na sistematicidade da razão causal, de forma a enfrentar, em coerência, tanto os desafios do tempo quanto a radicalidade do questionamento filosófico. Em Eduardo Lourenço, ele evolui também como ritmo de escrita, determinado por uma atitude de resposta que é, também, uma das características distintivas do pensador português.
2.1. Ensaísmo e tragicidade
Escrevendo sobre o ensaio em geral, Eduardo Prado Coelho assinala, no ensaísmo, um desígnio de crítica, de ponderação e de experimentação, onde se partilham ou disputam os crítérios do rigor, o sentido do gosto e a muito moderna pluralidade como reconfiguração da experiência do mundo (). Tanto com Montaigne, em tendência mais humanista, quanto na diversidade das suas vertentes até hoje, o ensaio corresponde a uma racionalidade fatalmente inacabada, precária, inscrita nas intermitências e nas cintilações do tempo e da circunstância. Este registo unifica a contra-tradição do ensaio, em toda a sua abrangência e pluralidade. Esta contra-tradição, dentro e fora de fronteiras, coabita com o novo universo de Eduardo Lourenço, permitindo-lhe a configuração de um pensar em movimento, que recusa a especulação pura e que se distancia de qualquer dialética (). Ora, é aqui mesmo que o ensaio se requer.
Não se trata, pois, de uma mera questão estilística, mas de uma consequência do posicionamento ontológico de Eduardo Lourenço, na densidade do seu olhar leitor. Tem como ponto de partida a intuição, precoce, quanto à necessidade de transbordar limites discursivos e tradições disciplinares ante a tragicidade que atravessa a existência humana, na sua opacidade e ausência de garantia de sentido. O ensaio, respondendo ou correspondendo ao que de cada vez se revela como opaco e indizível, nutre-se numa poética arrancada à consciência do seu desalcance fundador. Daí que, “pairando por cima dos grandes momentos do espírito ou da história europeia” esteja sempre, como que no avesso da transparência, um véu de absurdo e de trágico” ().
Quanto a esta tragicidade, há que garantir bases suficientes que possam permitir algumas ilações. Desde logo, assegurar o modo como, para Eduardo Lourenço, a linguagem surge como o núcleo primordial do trágico (). Enquanto “expressão do trágico”, a tragédia revela-se ou oculta-se na intensidade do meio que a transporta e convoca. Este meio pode bem ser o anti-trágico, o meramente lúdico, o simplesmente decorativo ou o escasso objeto de cultura (). Porém, o trágico é a condição de excedência da humanidade face a si mesma, condição inesgotável que apenas o silêncio resguarda verdadeiramente ().
Deve então realçar-se que, em toda a sua densidade, o pensamento diz respeito ao indizível, contrapondo-se assim às imposições de verdade e de vias para o seu alcance, de acordo com as exigências e critérios das ortodoxias reinantes. Quando a literatura, em definição provisória, se diz como “canto reiterado e inesgotável da palavra-signo, que tudo designa sem a si mesma se poder designar” (), inscreve-se a definição numa opacidade cosubstancial, que salvaguarda um “princípio crítico radical” () perante o qual nenhum repouso é permitido. A dinâmica do ensaio surge do interior da literatura, no seu inviolável silêncio. Como bem referia Eduardo Prado Coelho, “a questão da escrita do crítico não é meramente ornamental”, já que “faz parte da questão ontológica da literatura” (). De alguma forma, o que a expressão conseguida de José Gil e de Fernando Catroga assinala como ensaísmo trágico de Eduardo Lourenço () requer a poética do ensaio como deriva, como incerteza e como fragmentação.
2.2 Poética da fragmentação
Olhando para Montaigne, autor fundacional da escrita ensaística, a leitura de Lourenço encontra alguns pontos fundamentais da sua própria escrita, desde logo no que designa por poética da inconstância (), subversora do padrão epistemológico da estabilidade e da rigidez das essências. A resposta às grandes questões, entregue à disposição situada e volitiva de um sujeito, imerso num mundo de intransponível mistério e de ressonâncias diversas, é um desafio já retirado das ancestrais armadilhas da universalidade. Em Lourenço, o reconhecimento do “pathos eterno do filosofar”, que é a aspiração ao saber uno e total, tem por contrapartida o protesto contra a transparência e contra a auto-transparência (), na alternativa metodológica que o ensaio permite.
Encontrar Montaigne é encontrar a escrita. É entrar na escrita como movimento, indagação e prospetiva, mas também – aqui, para lá de Montaigne – com o que, nessa escrita, se assume como entrada de olhos abertos na irresolução e no mistério. Este movimento convoca a tragicidade “inerente à História”, onde a escrita é incursão, “por puro desafio a si mesmo, no curso e no discurso do mundo como tragédia” (). Daí que, na modulação de Eduardo Lourenço, não haja ensaísmo feliz. A leitura admirativa de Montaigne passa, em Eduardo Lourenço, por duas linhas de força reveladas decisivas no roteiro do seu pensamento.
A primeira delas é estratégica, e parte do modo como, sob o olhar de Lourenço, o autor de Essais oferece uma zona de margem potencialmente desestabilizadora das águas calmas, uma vez mais, das ortodoxias mais agrilhoantes. Uma margem que se mantém periférica da “perspectiva real ou intencionalmente universalista” (), colocando as grandes questões de uma maneira ludicamente desterritorializada (). Daqui resulta uma liberdade irrequieta, que alimenta o ensaio e que se constitui como uma forma de habitar o tempo como seu tempo, quase permitindo chamar a si a construção de uma contemporaneidade que Lourenço traduz, de forma luminosa, por “imersão na clareza natural do presente” (). Temporalidade e história encontram, na errância do ensaio como no “espírito da heterodoxia”, esse fino e indistinto limite entre mundo e consciência de mundo, que atravessa a assinatura filosófica de Eduardo Lourenço.
A segunda linha de força retoma da primeira a dimensão temporal, quando uma poética do ensaio ressurge como inscrição da singularidade no tempo. Quando Montaigne inscreve o Eu no tempo, quando coloca a singularidade como motor definitivo da escrita, desligando o processo de escrever da missão transparente e transitiva de espelhar uma realidade precedente, a abertura do tempo do ensaio passa a ser a abertura do tempo como escrita; como tempo escrito, mais do que tempo transportado para uma forma de representação. Daí que o ensaio tenha sido, para além de um mero recurso literário, “a primeira fenomenologia espontânea do Homem como tempo” (). Na expressiva imagem de Lourenço, Montaigne surge como um D. Quixote às avessas, que, em vez de adequar a realidade à aventura do livro, coloca o livro como chave da aventura da realidade. O real, na sua plenitude, é jogo e é ficção, é matéria de escrita que, como tal, transporta o eco legível onde se nutre o verdadeiro diálogo e onde se oferecem, às palavras, os verdadeiros ouvidos. Na verdade, “são os livros que nos lêem” (), tendo o ensaio o condão de ultrapassar o gasto e cansado dualismo entre realidade e ficção. Para que esta superação seja possível, o tempo é fundamental. A anti-ficção do ensaio é a ficção de si mesmo no tempo, ideia que sugere, desde logo, o universo pessoano, tão central na escrita de Eduardo Lourenço.
Por referência aos mais estabilizados quadros conceptuais da filosofia, como da própria literatura, o posicionamento ensaístico é mais de deslocação do que de resolução, com o tempo e a temporalidade como vetores particulares de dispersão e de lonjura. No todo deste pensamento surge, com expressiva evidência, a distinção entre o tempo mensurável da cronologia e o “tempo da história humana” (). O tempo humanamente habitado excede qualquer métrica, em desobediência face a categorizações e enquadramentos demasiadamente estruturados. É a rebeldia do problema do tempo, entretanto diversamente constatada e enfrentada no espectro da filosofia contemporânea, uma das condicionantes para o que, por um lado, se afirma em Eduardo Lourenço como abandono da filosofia, mas, por outro, fator da sua proximidade e vigilância. Como no mito de Orfeu, não há momento posterior à Eurídice perdida. É o carácter decisivo dessa perda que faz com que permaneça presente, mesmo em modo de abandono.
A perda de Eurídice, expressão lourenceana para descrever uma deserção filosófica, revela-se uma imagem expressiva para sublinhar o que nunca realmente se abandonou, trazendo, ao mesmo tempo, a singularidade do ensaísta, que nessa perda se define. A formulação poético-literária do problema da temporalidade em Eduardo Lourenço será questão para o segundo momento desta nossa reflexão.
3. Da poesia do tempo ao tempo como poesia
Num breve e curioso ensaio, conteúdo de uma conferência destinada a uma plateia cinéfila, Eduardo Lourenço resume a relação entre arte e tempo tomando por referência o cinema, na sua capacidade de “re-simbolização de todas as artes”(). Ficção “super-realista” ou, como afirma noutro lugar, “irreal em estado puro” que nos toca (), o cinema precipita sobre o sujeito que o experiencia um tempo próprio, simulacro de um tempo sem morte onde este sujeito se diviniza. A imersão no mundo emanado pela projeção da objetiva –como que um “olhar de Deus”– coloca em suspenso o tempo e a finitude, até que o quotidiano se restabeleça na “claridade cruel da rua que nos espera e nos reconduz à nossa condição mortal” ().
Esta consciência do tempo reavivada pela experiência do cinema não é solitária no panorama filosófico contemporâneo. Sem que se pretenda estabelecer uma síntese entre o pensamento do tempo e o surgimento do cinema, relação com laboriosos capítulos na história recente, há uma alusão específica que quase se impõe. De um lugar mais fundacional, mas também mais intuitivo, Jean-Paul Sartre tinha já imputado ao cinema o despertar para a noção fundamental de contingência. Segundo o seu próprio testemunho: “Pensei sobre a contingência a partir de um filme. […] Era pois a necessidade dos filmes que me fazia sentir à saída que não havia necessidade na rua” (). Sublinhe-se a clarificação, por diferença, entre o tempo ordenado e causal e, por outro lado, o tempo em desordem da rua.
Uma interrogação do tempo, com acento fenomenológico e existencial, encontra-se quase espontaneamente com o cinema, sublinhando-se que as dimensões do tempo e da temporalidade já atravessam e condicionam a ligação entre o ethos da heterodoxia e o processo ensaístico. A questão do tempo fecunda um pensamento que encontra, no espaço literário – espaço que reverbera e comunica com o todo das artes e da sua experiência –, a forma mais direta de indagação existencial. Daí que se afigure como particularmente expressivo esse processo de re-simbolização das artes, não especificamente por surgir no cinema, mas porque, de uma forma ou de outra, é um dos processos fundamentais de concretização da relação entre arte e tempo, arte e temporalidade, tempo e poesia.
3.1 Poesia do tempo
Foi já sob efeitos do “choque” da descoberta da poesia de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro que, no princípio dos anos 50, Eduardo Lourenço escreveu o pequeno ensaio “Esfinge ou a poesia” (), texto que seria republicado mais de 20 anos depois, como capítulo do livro, publicado em 1974, Tempo e Poesia, na abertura de uma secção expressivamente intitulada “Poética Mítica”. Uma vez mais, a aproximação mitológica constituia a mais coerente alegorização para a colocação da poesia como centro da pergunta pelo sentido da existência, em movimento do qual se retira pelo menos duas consequências fundamentais: por um lado, a poesia surge investida de uma capacidade de questionamento “paralelo ou análogo ao da própria filosofia” (); por outro, o esvaziamento dos “discursos redutores da explicação sociológica e historicista” (ibidem). A ousadia heterodoxa de Eduardo Lourenço constituia-se, pois, como uma tomada de posição filosófica e crítica, no registo de desvinculação que a aproximação do ensaio permite. Note-se, para além disto, que esta poética mítica, tão tipicamente lourenceana, subsume poeticamente o que o texto que introduz Tempo e Poesia –“Crítica e Metacrítica” ()– afirma como capacidade questionante do todo da palavra literária. Como se uma poesia do tempo fosse a mais legítima forma de indagação ontológica e existencial.
É esclarecedora a epígrafe de Marcel Proust, onde se sublinha que a vida “verdadeira, a vida enfim desvendada e esclarecida, consequentemente a única vida realmente vivida é a literatura” (). Estreita-se uma relação mutuamente interrogativa entre existência e literatura, pedindo uma expressividade decorrente de fora da sistematicidade dos discursos da razão. Vínculo entre literatura e vida, onde as dimensões de “verdade”, de “realidade” ou de “desvelamento” são diretamente afloradas, o mote de Proust não poderia ser mais revelador quanto à formulação de um problema tão filosófico quanto literário ou, principalmente, tão mais filosófico quanto mais literário. A literatura é o lugar preferencial para se pensar uma verdade cujo conceito “se tornou impermanente” (), o que não apenas apela ao expediente ensaístico como, numa geração assombrada pela urgência e discussão da crítica face à literatura, sublinhará em Eduardo Lourenço o tom de uma desvinculação heterodoxa. Está na literatura, e principalmente na poesia, a possibilidade de priorizar a interrogação movente face à rigidez da resposta, saindo-se da ordem do discurso, do ditado solipsista do Eu ou da submissão a qualquer fidelidade de escola. O tempo e a temporalidade, questões filosóficas devolvidas pela literatura em redobrada intensidade existencial, determinam e suscitam a exigência de desarrumação indisciplinar, cultural e institucional onde Fernando Pessoa, na sua escrita transbordante, surgiria como o “desarrumador definitivo” ().
A obra, a obra no tempo, como tempo e como temporalidade, é uma pluralização de sentidos, o que pressupõe a interrupção do sentido único (). Essa suspensão na unificação do sentido é sumamente vivenciável no espaço literário, principalmente na palavra poética. A poesia é destituição de poder e resto de uma soberania deposta, porque demasiado humana. A poesia é tempo transfigurado.
Daí que uma “poética mítica”, capaz de fazer justiça às infidelidades lourenceanas quanto ao pendor explicativo de uma clássica teorização sobre as artes, encontre na figura da Esfinge o seu primeiro ímpeto. “Esfinge ou a Poesia” () proporciona, desde o título, o convite a uma identificação simbólica e a um jogo de espelhos. Tão dúplice quanto a própria serpente de Mígdar, a Esfinge é a imagética de duplo sentido em que o silêncio predomina sobre todo o discurso ou, por outro lado, onde a irresolução permanece, inacessível, para além da resposta como momento dialético na ação do perguntar. O silêncio atravessa o ato da razão sem que o dispense.
A literatura não vive sem silêncio. Inerente à palavra, esse silêncio, sombra que acompanha a experiência do mundo em toda a sua densidade pensável, é a marca da tragicidade da literatura. Esta é, aliás, “a condição moderna da palavra literária, fatalmente caracterizada por um dilaceramento e por uma perda dos vínculos dialécticos com o mundo” (). A aliança trágica entre silêncio e mistério exprime-se nessa “poética mítica” corporizada na Esfinge –onde Eduardo Lourenço vê representado “todo o homem e o acto social que o compreende: a Poesia” ()–, que é também a síntese modelar de um questionamento existencial que só a poesia pode convocar e transportar. A Esfinge alegoriza a relação nunca fechada, nunca resolvida e mutuamente invasora entre Filosofia e Poesia, onde o tempo irrompe como questão decisiva.
3.2 Tempo como poesia
O tempo como questão decisiva ou o tempo como poesia: Eduardo Lourenço assume e reconstrói a diferenciação entre cronos e kairos ou entre a artificialidade do tempo mensurável, correspondente à razão tecnocientífica, e o tempo vivido, no sentido mais decisivo e mais intraduzível, que é o que se instala quando se considera a relação “tempo” e “poesia”.
Torna-se tão ilustrativa quanto provocadora a irredutibilidade que, a determinada altura, o nosso ensaísta inscreve na questão, vertendo-a para duas dimensões do tempo histórico, que designa por “história humana” e “história natural” (). Não há equiparação entre estas duas formas de se conceber (ou de se vivenciar) o tempo, entre o sentido cronológico, mensurável e linear, correspondente ao tempo da causalidade, que é o da tecno-ciência moderna, e, por outro lado, o tempo sem medida universal ou apodítica, que é o tempo humanizado da consciência. Vislumbra-se aqui a aproximação a Heidegger, em que Eduardo Lourenço, ainda que guiado pela sua própria bússola, parece assumir algumas linhas orientadoras da analítica do Dasein como temporalidade, tal como esta se configura, principalmente, a partir de Ser e Tempo (.). Esta proximidade é fulcral, nas suas múltiplas irradiações, ao longo da obra do nosso ensaísta.
Eduardo Lourenço começa por voltar a sua atenção para a estrutura do instante, notando como a sua ligação à consciência, que o marca e que lhe é imanente, retira o problema do tempo à delimitação da resposta enunciável. Na sua vastidão, a questão do tempo ultrapassa todas as possibilidades do dizer. Porque o tempo é índice perfeito para uma realidade inacessível, dada à experiência como obscuridade e mistério. Por isto mesmo –e, uma vez mais, não seria gratuito distinguir aqui a vizinhança de Heidegger–, a poesia “experiência sensível da impronunciabilidade da existência” (), revela-se como o veículo privilegiado para se trilhar uma outra via no pensamento. Uma via que não recusa a condição paradoxal, em si mesma humana, em que dizer-se o mundo é passo de uma tentativa para se sair dele ou, pelo menos, para se habitar em permanência essa aspiração impossível, característica da própria condição criadora. Nas palavras de Eduardo Lourenço, “com o que não existe nos conferimos a mais alta existência” ().
Introduzir aqui a questão literária, verdadeiramente a chave da indagação lourenceana sobre o tempo, é fundamental para abrir caminho a esta intensificação da experiência e da noção de tempo, que Eduardo Lourenço ensaiará com o auxílio de alguns filósofos e de muitos mais escritores. É esta clarificação da complexidade do tempo no território literário que determina, por exemplo, o modo provocador como Lourenço põe em questão a própria possibilidade de uma história da literatura. O tempo histórico, como explicita a António Guerreiro, se entendido como sucessão ordenada de momentos empíricos, não se equivale com a temporalidade da experiência literária, nutrida por várias memórias que se emancipam e desarticulam da ordenação tradicional do tempo (). Ora, precise-se, este literário tem, em Eduardo Lourenço, uma espécie de manifestação maior e preferencial na poesia, já que nela “repousa a nossa existência sem repouso” (Lourenço, 2016i, p. 76). A poesia, “glosa interminável do tempo” (), é, para Lourenço, um “mimar do gesto potente da criação”, feito de “sangue”, de “noite” e de “angústia” (). Fora dos preceitos cartesianos de uma razão totalitária, suma formulação da existência enquanto mistério, a poesia “luta com a mastigação discursiva do mundo” (), como com o tempo do mundo, que reposiciona para interrogar.
Irradiação múltipla desta radicalidade e exemplo preferencial, o encontro entre Lourenço e a escrita de Fernando Pessoa permitirá olhar de frente para este tempo em estilhaços, onde a heteronimia se lê como a vivida ficção da infinitude do tempo, metáfora viva da temporalidade (). Para o autor de Heterodoxias, Pessoa configura uma “relação do homem com o Tempo e, indiretamente, com a morte” (), o que será uma das forças motrizes de uma revisitação quase obsessiva da constelação pessoana. A unidade fragmentada, a realidade dos vários tempos que perpassam o enigma do tempo, vinculam decisivamente a escrita do ensaísta e a obra do poeta: Fernando Pessoa surge, em Eduardo Lourenço, como a mais viva (e a mais dramática) expressão do contemporâneo.
Conclusões
Eduardo Lourenço foi um dos mais solicitados intelectuais públicos da cultura portuguesa. Praticamente até ao seu desaparecimento, no ano de 2020, a expressão do seu mediatismo foi crescente e multiforme, com uma sucessão impressionante de aparições públicas, testemunhos e textos de imprensa a somar a uma obra teórica diversa e proliferante.
Se a escala desse mediatismo, tendo em conta a exigência do seu pensamento e da sua escrita, é potencial fator de surpresa, não é menos verdade que parte desse reconhecimento decorre de uma generosidade inabalável, onde prevalece, de forma quase espontânea, a resposta afirmativa às solicitações mais díspares. Note-se que tal disponibilidade, para além da justificação subjetiva, decorre igualmente de uma ética do ensaio, caracterizada pela abertura às interpelações do tempo, à palavra-outra e ao tempo-outro. A exposição ao imprevisível do tempo é uma das aceções da contemporaneidade.
Não apenas na escrita, não somente no texto, mas decorrendo coerentemente de uma vida feita escrita e texto, Eduardo Lourenço é um pensador do tempo no tempo. Integra uma já sólida tradição em que a atualidade surge como prioridade pensável, em roteiro perspetivado desde Kant (mais especificamente na célebre resposta à questão “O que é o Iluminismo?”), com paragens mais evidentes em Foucault ou Sartre.
Numa muito celebrizada reflexão sobre as exigências da filosofia perante a sua época, o filósofo Giorgio Agamben problematiza o significado da noção de “contemporaneidade” como categoria sinalizadora de tempo (). Enquanto atributo de um sujeito, ser-se contemporâneo não é coincidir no presente, já que é delicada a possibilidade de coincidência no tempo, tal como é frágil o próprio sentido do presente. O agora não se fixa na rigidez da consciência, antes flui na torrente da história.
Ser contemporâneo é nadar nesse fluxo e habitar a fratura do tempo; é viver o agora como tempo fragmentado (), sendo em simultâneo o assumir dessa desarticulação essencial e a tentativa –precária ou até desesperada– da sua junção. A abordagem, em toda a sua exigência, implica não permanecer numa estanque delimitação das categorias do tempo, sendo que “o contemporâneo”, que Agamben sinaliza na figura de “o poeta”, persegue as margens de obscuridade que constituem o tempo. Pensar a contemporaneidade é “escrever mergulhando a pena nas trevas do presente” (), como é viver no confronto atento com o que não foi vivido (p. 70). Pensar o contemporâneo é admitir que os vários tempos no tempo reclamam o alerta da inteligência e convocam a arte interpretativa da leitura.
Encontrar Eduardo Lourenço é também contactar com um dos mais firmes exemplos de resposta a esta desarticulação do contemporâneo, na sua persistente resistência à luminosidade e à evidência. Interrogar o eco do presente é, por isso mesmo, pressupor a sua ausência, a sua margem de impensado ou, para dizê-lo com Eduardo Lourenço, enfrentar a “glosa interminável do tempo” que é a escrita (). Mesmo que desembocando no mais irresolúvel dos mistérios, é de desejo de saber que se alimenta o nomadismo das inteligências.
O ensaio como irresolução, rebelde à solidez da posição de trincheira, concretiza-se na abertura aos muitos sentidos do tempo.