Mais do que debruçarmo-nos sobre as evidentes relações entre Poesia e Filosofia no pensamento e obra de Eduardo Lourenço, é o porquê ou o que subjaz a essas relações o que aqui mais nos interpela. Aqui vemos um amplo espaço de reflexão onde as suas interrogações encontram sintonia e acolhimento. Desde cedo, os sistemas filosóficos não lhe foram suficientes. Por isso, outras vozes se foram juntando no seu pensamento e obra, assim preenchendo o que os sistemas filosóficos deixavam em aberto.
Foram as obras Labirinto da Saudade e Fernando, Rei da nossa Baviera (ainda que Pessoa revisitado seja a sua obra preferida) aquelas que, decerto, mais têm sido assinaladas na sua extensa produção literária, não por aquilo que representaram no seu pensamento, mas acima de tudo pelo modo como nelas interpreta e apresenta uma visão da cultura portuguesa, designadamente ao nível da estrutura e suporte desta cultura, onde a sua atenção à poesia vem a constituir-se como o seu foco reflexivo. Porém, é Tempo e Poesia aquela que constitui a obra de referência do seu pensamento filosófico, nela confluindo não só as suas maiores temáticas filosóficas sobre as quais disserta, ao mesmo tempo que se constituem como bases da sua hermenêutica poética, a mesma que nos permite uma maior aproximação a um autor que sempre afirmou que “o Homem é naturalmente Poeta”.
A matriz de Eduardo Lourenço evidencia a errância de um navegador, cujo ponto de partida, nunca abandonado, foi o de uma eterna insatisfação e desassossego, mas também de espanto e encanto na longa viagem que empreendeu, sempre atento à cultura e à história. Por isso, neste chão comum entre Filosofia e Poesia, cremos poder referir alguns eixos: a tentação do navegante, a tentativa da viagem, a tensão dialéctica e a atenção apaixonada, não do receio de não encontrar um porto seguro, mas sim a de conseguir “deslizar não para a eternidade, mas na eternidade”, aquela que o próprio autor considerou, numa entrevista ao Diário de Notícias, em Abril de 1971, como necessária para que cada um acredite que existe.
Os seus ensaios foram modos de leitura entrelaçados, onde o seu amplo olhar nos posiciona perante uma realidade que designa como “a fonte de todas as ficções”, sendo a história a suprema ficção, que também chamou “tempo incarnardo”. Eduardo Lourenço desde jovem e para sempre considerou a ficção como “a figuração real, objectiva, da mítica Esfinge”, sendo esta Esfinge o Tempo, o seu primeiro e tema de sempre, a ele se referindo como “ficção das ficções”, “Esfinge das esfinges”, que “não tem outra essência que a de nos devorar”, escrevendo também em Tempo e Poesia: “Quem espera do tempo que ele o vista, como o vento cobre de folhas a avenida outonal, ficará nu, pois o que o vento traz, o vento o leva”, evidenciando aqui igualmente um tom bem comum aos filósofos existencialistas desde cedo presentes no seu pensamento.
Tempo e Ser foi o título de um livro que cedo programou escrever e que muito embora possa estar presente em toda a sua obra, e muito em especial em Tempo e Poesia, a Poesia vai em certo sentido tomar o lugar do Ser, uma forma de acesso para o encontro face a face com a própria vida humana, tal como ele acabou por a conceber. Mesmo que Eduardo Lourenço considerasse esse encontro, em dado momento, um desafio impossível e falasse em “fracasso”, em “supuração viva”, a sua maior sedução e mistério, perseguiu-o essa busca, esse encontro que era igualmente um encontro com a verdade e com o ser, desafio maior que mais o aproximou dos poetas como da poesia.
Esta foi a sua “sereia”, metáfora com que à Poesia se referiu, pois nela viu a revelação “de uma ordem que nenhum outro discurso”, nem o da História, nem o da Filosofia, “tinha o condão de iluminar”. E se a Poesia foi a “sereia”, Eduardo Lourenço foi uma espécie de “Ulisses” que a quis ouvir, cedendo à sua tentação, mas consciente da sua sedução. E é igualmente sedutora a arte ensaística do nosso autor, não só pelo modo poético como toda a sua hermenêutica se nos apresenta, mas sobretudo pela “vibração empática” que se sente existir na sua relação com os poetas, numa sintonia e mágica sensibilidade que só a Arte permite.
Se analisarmos as metáforas usadas pelo autor (e são tantas) para falarmos da tentação do navegante, logo nos damos conta do relevo que têm as metáforas marítimas no seu pensamento: o mar, os barcos, as rotas que não deixam marcas na água sugerem-nos o que buscou na interrogação filosófica e na oscilação do sentido poético. Fala o autor de um ritmo oscilante, uma música de trabalho ou um embalo, o começo da arte ou da alma, de tudo o que é animado e se mexe. É próprio do ser humano mover-se, como tudo na natureza, e talvez, por isso, Eduardo Lourenço associa a Humanidade a uma deslocação no tempo e no espaço. A Filosofia e a Poesia são construções mentais dessa Humanidade, que se move. Em Tempo e Poesia, inicia o capítulo com este mesmo nome, escrevendo: “Nascemos a bordo e a caminho, como Pascal […] claramente o soube. A forma do barco onde vamos sem a ver é o mesmo Instante. Neste deslizamos, estranhamente parados, não para a Eternidade, mas na Eternidade”. E esta acontece por uma via de errância que o seu pensamento filosófico-poético emprestou e partilhou com os poetas e a poesia. Por isso, já antes conseguiu Eduardo Lourenço, mesmo sem ver a forma do barco, a ela aceder, sendo esta o Instante, o Instante que nos toca e somos, mesmo que “…o Instante nem é Eternidade nem Tempo…do ponto aonde não chegamos formamos a Eternidade, do que não deixamos, o Tempo…”.
Da tentação do viajante para a tentativa da viagem, é talvez estranho considerar aqui Eduardo Lourenço como um “pensador de acção”, mas cremos que sempre se quis um pensador activo, um pensador político, no sentido em que sempre se preocupou com a polis, com a vida na comunidade e sobre a comunidade. Vergílio Ferreira disse-o talvez melhor do que ninguém: “Podemos dizer que a cultura foi o lugar da sua paixão, como a política receio ter sido o lugar das suas paixões: uma, o lugar do seu amor [a cultura], outra [a política] do que é só o da sua indignação; uma [a cultura], o projecto de uma vida, outra [a política] a de uma circunstância; uma [a cultura], a do ser, outra [a política] a do estar”. Significativamente, voltamos a encontrar aqui o binómio Tempo e Ser, mas agora identificado por Vergílio Ferreira através de uma outra dialéctica: a da política e a da cultura. Também aqui se podem encontrar as coincidências de uma ainda mais antiga oposição da idade contemporânea: a que contrapõe Filosofia à Poesia. Com efeito, associa-se à Filosofia uma interrogação historicista, contextualizada, a do estar; e à Poesia uma permanência da sua lição. E todavia, para Eduardo Lourenço, como para Aristóteles o foi, a Poesia é mais filosófica do que a História, precisamente porque (como a Filosofia) busca uma verdade universal e prática. Porém, o que interessava a Eduardo Lourenço era o sentido das coisas e não a sua realidade, como em diversos momentos afirmou, e é neste sentido que se poderá interpretar a seguinte afirmação: “Em face da sua imagem ou da sua sombra, o homem realiza um dia o encontro decisivo com os seus limites.”.
Um terceiro aspecto deste diálogo entre a Filosofia e a Poesia é a tensão que decorre de certa contraposição. Eduardo Lourenço sabe que Filosofia e Poesia não se confundem (ele distingue-as frequentemente). Mas sabe também que se fundem numa raiz comum, mesmo que a História as tenha separado. Essa tensão, longe de ser um defeito, é uma vantagem epistemológica, porque provém de uma conversação significativa (ainda mais nele que tanto gostava de conversar, de um diálogo que, etimologicamente, é esse logos – conhecimento – pela diferença – dia). Essa tensão é aquela que, grosso modo, aparece também em algumas oposições como Poesia e Prosa. No sentido em que delas fala Eduardo Lourenço, trata-se também de uma (falsa) oposição entre latência e potência do sentido: “O sentido primeiro de prosa é o de discurso, palavra não poética, como o primeiro de poesia é o de palavra não prosaica. Isto nada nos diz do que sejam Prosa e Poesia, mas diz-nos já abstractamente que uma vive do que a outra nega e vice-versa. Esta relação formal, contudo, é mais interessante do que à primeira vista possa parecer. Ela significa que o ser de uma e outra são inseparáveis e que é precisamente do mútuo repúdio que cada qual extrai a realidade que é a sua”. Heterodoxo por “convicção”, sempre duvidando de verdades apresentadas como definitivas, Eduardo Lourenço, na sua permanente inquietação, desenvolve um profundo sentido crítico que sempre e até ao fim da vida revela o seu anti-sistematismo, o seu pensamento livre, o seu modo subversivo mas sempre encantatório com que nos apresenta o seu pensamento.
Impõe-se-nos agora uma quarta e última reflexão sobre o que une a Filosofia à Poesia: não somente uma tensão esclarecedora mas uma atenção esclarecedora. A sua “atenção apaixonada” é uma análoga concentração no pormenor que irmana a Filosofia e a Poesia. Para Eduardo Lourenço, a Filosofia e a Poesia são leituras “rigorosas”, porque fiéis, ambas, à mobilidade do sentido. Atraiçoar o sentido seria acreditar que ele é fixo ou fixável.
É sintomática a ironia que coloca na descrição que faz do “verdadeiro crítico”, afinal aquele que se opõe ao retrato que Eduardo Lourenço faz dos críticos: “o verdadeiro crítico é aquele que não compreende a obra e antevê (um pouco) as razões porque não pode compreendê-la”. Torna-se inevitável assim a decisão que exprime em Tempo e Poesia: “Decidi (…) que os poetas seriam os meus guias e não os críticos, quero dizer a espécie de crítica que vive na ilusão de uma superioridade”. Poderíamos assim dizer que a poesia surge em Eduardo Lourenço como um suporte existencial, no sentido de ser um diálogo com “o que o Tempo faz de nós e nós de nós mesmos, não para sobreviver mas para compreender… ‘o enigma visível do Tempo, o nada vivo em que estamos’”. A Poesia foi para o nosso pensador como uma “varanda para o infinito”, também para compreender melhor o interior e o exterior da sua casa, do seu país, de si próprio.
Na medida do possível, a vida permite aos filósofos a escolha dos guias e das companhias, mais ou menos criteriosas, mais ou menos conscientes. Permite-lhes escolher leituras e influências. É a sensibilidade, o encanto e o espanto que podem ser a base dessas escolhas. Mas quantas vezes a vida condiciona os filósofos também no que eles não querem ser?
Nem sempre a obra de Eduardo Lourenço foi e continua a ser compreendida como filosófica, no sentido em que ele considerava a Filosofia. Muitas vezes, o dogmatismo e a ortodoxia críticas conduziram a caminhos vazios, aqueles que Eduardo Lourenço seguiu, não deixando porém de ser, esses mesmos caminhos, a base da construção do seu próprio pensamento.
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Se a Poesia foi um suporte existencial para Eduardo Lourenço, não pode deixar de se acentuar o seu papel de suporte ontológico. Como já se referiu, Eduardo Lourenço escolheu para seus guias os poetas, desde logo por considerar-se como um “reflexo do dom soberano que os poetas lhe oferecem, a eles tudo devendo, a começar pela existência”, não surpreendendo, bem pelo contrário, a sua paixão e fervor pela poesia: “Lâmpada miraculosamente intacta no tempo de plurais trevas que a cercam sem a poder dissolver”.
Intérprete peculiar dos seus guias, o ensaísta-crítico não abandonou nunca o olhar do filósofo que sempre foi. E nesse sentido, não vendo apenas o poema por fora, habitou-o, à semelhança do que afirmara a propósito de Hölderlin e de Heidegger, onde o conhecimento se torna mais próximo porque “o poema é o próprio meio de resgatar a habitação do ser”.
À semelhança de Antero de Quental, outro dos seus mestres de eleição, com ele tinha em comum uma concepção de Poesia e de Filosofia presente nesta sua afirmação: “Os sistemas caem: os cultos desfazem-se. Só os poemas parecem cada vez mais jovens e belos sob os beijos fatais do tempo”.
Afirmar que Eduardo Lourenço fazia leituras poéticas do “real”, sabemo-lo pelas suas constantes afirmações relativas à própria forma de conceber o humano, a vida e o mundo, numa espécie de puzzle ficcional, onde a sua leitura de Fernando Pessoa conhece afinidades e relações.
Esta leitura vai traduzir-se ao nível da própria linguagem, onde a utilização de metáforas é constante, revelando uma pessoalíssima escrita onde não raro estão presentes não só a argúcia como o seu encantamento, certa ingenuidade que simultaneamente interpela e interroga, como em Montaigne (de que foi grande admirador), mas em que igualmente está presente um estado de permanente vigilância, não só consonante com o seu espírito livre e heterodoxo, como com o seu espírito crítico e de alargados horizontes. Sempre impregnado de uma emotividade e sensibilidade de contínua vibração e diálogo com o mistério do ser, e em diálogo com Heidegger, cita-o em epígrafe em Tempo e Poesia: “Mas se o homem algum dia chegar à vizinhança do Ser, tem que aprender antes a existir no que não tem nome”.
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Se a liberdade como fundamento e a verdade como horizonte foram pilares que o orientaram para encontrar um sentido mais além (não sabendo qual), Eduardo Lourenço teve que, antes de mais, encontrar-se com os seus limites, os mesmos que o levaram à descoberta do que chamou “o enigma vivo onde estamos”. A liberdade e a verdade não eram compatíveis com a crítica (pelo menos aquela que era mais comum nessa época – falamos de meados do século XX). Eram sim compatíveis com as posições de irreverência, de curiosidade, de permanente atenção a tudo o que, sobretudo na cultura portuguesa (mas também europeia) constituía o universo mental que designadamente levou a cabo em Labirinto da Saudade: psicanálise mítica do destino português.
A esta inquietação, onde novos horizontes se pudessem desenhar, Eduardo Lourenço chamou “Heterodoxia”, sentimento de desconforto intelectual (ele di-lo também “religioso”) que o acompanhou por essas décadas e até ao fim da sua vida. Viveu desertos, mas nunca desistindo do que decorria do seu sentimento de ausência de um outro futuro que, no labirinto da existência, pode permitir a instauração de uma “universal presença”, ao mesmo tempo que o “impossível processo da verdade”. O ensaísmo de Eduardo Lourenço visa o mundo inteiro, ou melhor, o seu horizonte de análise crítica alimenta-se de uma preocupação filosófica de que nunca se separa. E este constitui o cerne de um pensamento poético que transporta consigo a vocação que chamaremos “do encontro”, do entusiasmo, não deixando de ser também o de uma constante e imperfeita busca bem presente.
A partir de meados do século XX, Eduardo Lourenço construiu uma visão e uma reflexão única. Repensar a cultura portuguesa, em sentido lato e particularmente na aproximação da Filosofia com a Poesia, leva-o a unir o que foi separado por “escolas” ou “correntes”, máscaras das ortodoxias de que Eduardo Lourenço sempre se afastou.
À semelhança dos eixos que procurámos aqui considerar, os vértices que esta nossa reflexão apresenta podem ser lidos alguns dos olhares que as nossas mãos seguram. Mas há todavia aí um segredo, ou melhor, o segredo. E este será o da criação, que Eduardo Lourenço referia quando falava de “milagre”, o “milagre” presente no mistério das coisas, nos espelhos de água que reflectem o espelho do céu, no “milagre” que é a própria existência.
Hoje, na solidão da sua ausência, pensamos no “milagre” que ele representou para nós, para o pensamento português, para a crítica, para a cultura, para a filosofia e a para a história da poesia em Portugal.
Conclusão
Filosofia e Poesia foram assim possibilidades de contacto, de aproximação à verdade, ao Ser e ao Tempo, onde a tentação do navegante como as tentativas da viagem, em diálogos inspirados numa terra com “mar à vista”, mas renunciando a certezas e aberto à luz em sua singular epopeia, podem ser sintetizadas nesta distinção lapidar que nos propõe Eduardo Lourenço: “a poesia…é navio-fantasma de palavras navegando para a praia futura, onde será então o navio-real do poeta-fantasma. Ela é o objecto no qual o homem encarna ao mesmo tempo a explicação de si mesmo e do mundo. Essa explicação, enquanto explicação, é filosofia. Mas essa explicação tornada objecto, tornada visível, audível, palpável, essa explicação feita Filho do Homem e misteriosamente seu criador,…uma tal explicação é Poesia”.