1. Introdução
A literatura refere-nos que a relação entre os políticos (a política) e os gestores públicos (a administração) é central no pensamento sobre a administração pública, constitui um debate com uma origem longínqua no tempo, e que está longe de estar encerrado.
Neste artigo analisa-se a literatura sobre a relação entre a administração pública (o corpo estruturado de funcionários públicos) e a política (os mandatados politicamente, os eleitos) estudando a literatura acerca da Dicotomia Política-Administração (DP-A), publicada após 2010, e comparando-a com a literatura mais antiga. Procurar-se-á assim não só completar a caracterização da literatura publicada sobre o tema, mas avaliar também a existência de eventuais evoluções do ponto de vista paradigmático.
Assim, este artigo cumpre um triplo objetivo:
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Analisa sistematicamente a literatura publicada depois de 2010 (últimos dez anos)
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Compara esta literatura com a literatura publicada do período anterior; e
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Avalia eventuais evoluções paradigmáticas.
O restante do artigo está organizado do seguinte modo: a esta introdução segue-se a revisão da literatura e a esta uma secção sobre a metodologia. O artigo encerra com o estudo empírico, a discussão e as conclusões.
2. Revisão da literatura
Nada é mais central em AdmPub que o tema da dicotomia política administração (DP-A) (). Habitualmente, a literatura sobre o tema, recua, na sua análise até ao século XIX e aos contributos iniciais de Woodrow Wilson e de Frank Goodnow (; ).
A literatura publicada antes de 2010 acerca da dicotomia política administração (DP-A) é composta essencialmente por ensaios e não por estudos empíricos, isto é, a discussão é feita na base da argumentação e não na base de evidência.
A dicotomia é apresentada como a solução para a separação dos poderes que despolitiza a administração pública () e que permite assegurar o objetivo da sua isenção a partir da competência neutral (neutral competency) do gestor público ()
Vários autores recuam até ao Pendleton (ou Civil Service) Act de 1883 e ao trabalho seminal de Woodrow Wilson de 1887, para estabelecerem a origem da dicotomia (; ). A dicotomia é assim o princípio que impede a influência nefasta da política (nomeações baseadas na fidelidade política – patronage) na administração a partir de um sistema de recrutamento e promoções baseadas nas competências e no mérito (; ; ).
Muitos desses ensaios fazem percursos históricos (e.g. ; ; ) que se iniciam com o estabelecimento do Pendleton Act e evoluem a partir daí. Um segundo momento desse percurso histórico incide sobre o trabalho de que estrutura num modelo os princípios que estivem por detrás do Pendleton Act.
O isolamento decorrente da separação entre a política e a administração garantiria, para os defensores deste modelo, a eficiência, a imparcialidade e o escrutínio (accountability) da AP ().
Os trabalhos de Taylor, Fayol e Weber, dos primeiros anos do século XX, nomeadamente a gestão científica e os princípios da administração () e os princípios da burocracia (), acrescentaram argumentos a favor do enfoque na eficiência, na especialização do gestor público e no estabelecimento de procedimentos próprios, que potenciaram a dicotomia.
Os alertas acerca da excessiva separação entre a política e a administração surgem pouco depois, remontando à década de 1930 (). A estas observações de menor adesão à ideia de dicotomia, seguem-se posições mais críticas, nomeadamente de Dwight Waldo, logo após a 2ª Guerra Mundial (; , ).
É precisamente em torno da questão da eficiência que se dá o primeiro embate contra a construção dicotómica clássica, descrita anteriormente. Waldo em 1948 (p. 197) defende:
“Efficiency, it is true, is a major objective of public administration, but it must be “socially and humanly interpreted.”“
Esta visão é depois explorada, já como um facto consumado, pelo autor em 1952 (p. 103),
“Bureaucracy in the Weberian sense would have been replaced by more democratic, more flexible, though more complex, forms of large-scale organization”
Este equilíbrio entre eficiência e o aprofundamento da decisão democrática, no contexto da AP, vai constar das conclusões das primeiras conferências de Minnowbrook (1968 e depois 1988) e do movimento da Nova Administração Pública (New Public Administration) ().
É na sequência deste movimento que Svara estabelece o seu modelo da complementaridade (ver , , ) o qual realça a interdependência, a influência recíproca e a interação extensiva entre eleitos e gestores públicos.
Os desenvolvimentos introduzidos por e por , nomeadamente, a reinterpretação do conceito de dicotomia e a sua reavaliação, embora com impacto na literatura publicada posteriormente, não reduzem a diferença de perspectivas entre a visão dicotómica e a visão de complementaridade da relação política-administração.
consideram que existem não uma, mas duas dicotomias, uma primeira de natureza estrutural, e que separa a expressão de uma vontade e a execução dessa vontade – a definição de políticas e a sua implementação - e uma segunda de índole operacional, e que corresponde à proibição do compadrio (patronage) nas nomeações para a AP. Os autores defendem que um relacionamento (política-administração) próximo na primeira “dicotomia” e o carácter normativo da segunda, permite compatibilizar o modelo clássico de DP-A com o modelo da complementaridade de Svara.
, com base numa análise da evolução histórica da literatura, conclui que o conceito de DP-A evolui ao longo do tempo de uma proposta de limitação da influência da política na administração para um modelo muito mais normativo e mais separador da política da administração. O autor defende o regresso à proposta inicial de limitação da influência da política na administração.
Os dois trabalhos coincidem, assim, na defesa da limitação da influência da política na administração, considerando isso a essência da DP-A.
Os estudos empíricos, com excepção dos de natureza historigráfica, centram-se num dos dois modelos – dicotómico ou complementar – produzindo evidência que,
No global os estudos empíricos são, assim, inconclusivos relativamente à discussão acerca dos dois modelos.
2.1. Os paradigmas e a crise de identidade da Administração Pública
A segunda metade do século XX ficou marcada, no que ao conhecimento em ciência diz respeito, pelos contributos de , nomeadamente as noções de revolução científica e de paradigma. Em AdmPub o assunto ganha relevo na década seguinte, em especial após o trabalho de .
Na aceção de a evolução do pensamento em ciência faz-se através de revoluções (epistemológicas) que estabelecem novas paradigmas, os quais têm uma capacidade acrescida de explicação da realidade e que, por isso, se afirmam, preenchendo lacunas que os paradigmas anteriores não conseguiam preencher.
Fica desse trabalho de Kuhn também a ideia de que as ciências sociais vivem atualmente envoltas em discussões similares às que ocorreram nas ciências naturais em períodos pré-paradigmáticos (). Este tipo de períodos é marcado por lutas na comunicação entre cientistas incapazes de estabelecerem um corpo de aceções amplamente partilhado pela comunidade científica (; ).
Na AdmPub o tema é explorado inicialmente por que reconhece a dificuldade de estabelecer paradigmas neste campo de estudo e considera que é neste facto reside a razão para a existência de uma permanente crise (epistemológica) na AdmPub.
A questão da crise de identidade e da dificuldade em estabelecer paradigmas foi permanecendo na agenda de investigação, e de publicação, em AdmPub, quer em trabalhos mais antigos (por exemplo (; ; ou ) quer em trabalhos mais recentes (ver ; ou )
2.2. Síntese
Até 2010, há uma produção de literatura consistente e continuada acerca da DP-A. Essa literatura é maioritariamente composta por ensaios e nestes as duas correntes hegemónicas – a dos defensores da dicotomia e a dos defensores da complementaridade – esgrimem argumentos. As tentativas de acrescentar novas visões (e.g. ) e ) têm aceitação na comunidade académica (têm níveis de citação superior à média) mas não alteram este cenário.
O mesmo acontece com os estudos empíricos, os quais são em menor número face aos ensaios, que apresentam evidências no global, inconclusivas.
3. Metodologia
Este estudo aplica uma metodologia qualitativa de análise de conteúdos seguindo-se o protocolo PRISMA (pode-se encontrar a descrição do processo em e para a versão inicial e em para a versão revista de 2020 (a versão mais recente)). Estudos com base neste protocolo têm sido realizados na área da AdmPub (ver: ; ; ; ).
A aplicação do protocolo PRISMA faz-se percorrendo o conjunto de etapas apresentado na figura seguinte. A lógica subjacente ao protocolo é a da replicabilidade dos estudos, isto é, um estudo realizado por uma determinada equipa de investigadores seguindo este protocolo, produz um conjunto de evidências em tudo semelhante ao que uma outra equipa de investigadores obteria, se também aplicasse o mesmo protocolo. O protocolo assenta numa Checklist e num diagrama de fluxo (flowchart) (disponíveis em: http://www.prisma-statement.org/PRISMAStatement/PRISMAStatement) e que a figura seguinte apenas sintetiza.
Na análise aos dados optou-se pela apresentação exaustiva e individualizada dos artigos estudados, semelhante a ou a , porém, tendo em conta os objetivos do estudo, a apresentação dos artigos é feita de um modo muito descritivo.
4. Estudo empírico
Na base deste estudo está uma amostra de artigos retirados da base de dados Web of Science. Esta base de dados é recorrentemente utilizada como suporte de investigações em AdmPub (por exemplo: ; ; ; ; ; ).
Para a seleção dos artigos usou-se a seguinte chave de pesquisa “TÓPICO= (politi*-administrat* dichotomy)” selecionando-se apenas os documentos que fossem artigos ou revisões (article ou review). Desta pesquisa, realizada em março de 2021 resultou uma amostra de 47 artigos, 24 publicados antes de 2011 e 23 publicados após 2010.
No centro deste estudo está a literatura mais recente, isto é, o conjunto os artigos publicados após 2010, embora a análise destes artigos se faça por comparação com o conjunto de artigos publicados antes de 2011.
Obteve-se o texto integral para todos eles os 23 artigos, todavia, dois deles estão apenas disponíveis em turco (e ) o que impediu a sua leitura pela equipa de investigação. Um terceiro artigo - - deve ser considerado como Falso Positivo. Numa análise preliminar constatou-se que o assunto do artigo não se enquadrava com o dos restantes, percebendo-se que o artigo tinha sido selecionado porque a expressão DP-A aparece, uma única vez, no título de uma das referências, não sendo o assunto abordado no artigo em causa.
A amostra em estudo é assim composta por 20 artigos (na literatura mais antiga não se conseguiu o acesso ao texto integral de dois artigos pelo que apenas 22 foram considerados). Os procedimentos realizados para a constituição da amostra de artigos são apresentados na figura seguinte.
No restante desta secção descrever-se-á esta amostra, far-se-á a análise ao conteúdo desses artigos e, por fim, examinar-se-ão as suas referências. Nesta análise será sempre considerada o carácter comparativo já referido.
4.1. Caracterização da amostra
Para a caracterização da amostra consideram-se três elementos de análise: as autorias, a origem geográfica e as principais fontes.
4.1.1. Autoria
Nesta amostra há contributos de 33 autores. Cinco autores contribuem com 2 artigos, são eles: John Alford, Jean Hartley, Sophie Yates e Owen Hughes (numa mesma equipa de investigação; e ainda, Christian Rosser. Todos os restantes autores contribuem apenas com um artigo. Maioritariamente os artigos são em coautoria (9 artigos individuais e 11 coautorias). Existem três coautorias internacionais e duas coautorias envolvendo investigadores de universidades diferentes, mas de um mesmo país. As restantes seis coautorias apenas incluem autores de uma mesma universidade.
Comparativamente com os artigos mais antigos, onde se observa um carácter marcadamente paroquial (os mais artigos foram maioritariamente individuais e quando em colaboração envolviam maioritariamente autores da mesma instituição e nunca as coautorias eram internacionais), o conjunto de artigos agora em análise apresenta uma maior frequência de colaborações, incluindo internacionais (inexistentes, no período anterior). Há, assim indícios que apontam no sentido de se terem fortalecido, no período mais recente, as situações de colaboração e de uma produção académica feita em rede.
4.1.2. Origem geográfica
Todos os países que tinham tido contributos antes de 2011, mantêm publicações após 2010. Adicionalmente, registam-se contributos provenientes de cinco outros países: Brasil, Coreia do Sul, Itália, Nigéria e Nova Zelândia.
Países | Até 2010 | Depois de 2010 |
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EUA | 15 | 4 |
Canadá | 2 | 1 |
Países Baixos | 2 | 2 |
Suíça | 2 | 3 |
Austrália | 1 | 5 |
Reino Unido | 1 | 3 |
Brasil | - | 1 |
Coreia do Sul | - | 1 |
Itália | - | 1 |
Nigéria | - | 1 |
Nova Zelândia | - | 1 |
Um segundo dado de destaque é a diminuição da preponderância que os EUA apresentaram no período inicial (pré 2011) e que se esbate no período mais recente (chegando mesmo a serem ultrapassados pela Austrália na publicação de artigos).
Na conjugação destes dois efeitos – mais países como origem dos artigos e diminuição da hegemonia dos EUA – mostram uma discussão do tema mais disseminada nos anos mais recentes, investigadores de mais países envolvidos e menor preponderância de um único país.
4.1.3. Principais fontes
Relativamente às fontes, no período anterior (pré 2011) elas haviam sido: a Public Administration Review (PAR), o Administration & Society (A&S), a American Review of Public Administration (ARPA), o Australian Journal of Public Administration (AJPA), o International Journal of Public Administration (IJPA), o Journal of Policy Analysis and Management (JPA&M), o Journal of Public Administration Research and Theory (JPAR&T), o Public Administration (PA) e o Public Personnel Management (PPM). A PAR era claramente maioritária com doze artigos.
Destas nove publicações, cinco mantiveram artigos após 2010 (não publicaram artigos com a chave de pesquisa considerada, o AJPA, o JPA&M, o JPAR&T e o PPM. Em contraponto nove novas publicações foram consideradas: o Asia Pacific Journal of Public Administration, o Bulletin of Latin American Research, o Canadian Public Administration / Administration Publique du Canada, a European Business Review, o European Management Journal, o Evaluation and Program Planning, o Local Government Studies, o Nispacee Journal of Public Administration and Policy e o Public Administration Issues.
Duas notas emergem desta evolução:
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A lista é mais diversa,
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porque tem mais publicações (de nove passou para catorze publicações diferentes);
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porque há maior dispersão geográfica: mais publicações europeias, uma asiática, uma da américa latina e outra do Canadá;
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porque o tema foi publicado fora do ciclo restrito de periódicos de AdmPub, em jornais da área da gestão (European Business Review e o European Management Journal), em jornais acerca do poder local (Local Government Studies) e em jornais de natureza multidisciplinar (Bulletin of Latin American Research e o Evaluation and Program Planning), para lá de outros títulos do âmbito da AdmPub.
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A lista é menos concentrada. PAR perde a predominância que teve, emergindo ARPA com alguma relevância, mas de uma forma muito mitigada face ao relevo tido anteriormente pelo PAR.
4.1.4. Breve síntese
As três dimensões analisadas parecem convergir num aspeto: a investigação publicada deixou de se circunscrever a um conjunto de autores (investigadores) a trabalharem mais ou menos isoladamente, provenientes de um conjunto restrito de países e a divulgarem a sua pesquisa através “núcleo duro” de publicações especializadas em AdmPub. Emergiu o trabalho conjunto, inclusive a nível internacional. Os investigadores que participam no debate provêm de um conjunto alargado de países e o número, e a diversidade das publicações, expandiu-se.
4.2. Análise de conteúdo
A análise de conteúdos faz-se de acordo com a tipologia do artigo: ensaio ou estudo empírico.
4.2.1. Os ensaios
Os ensaios, que constituíam o grupo mais representativo de artigos no período anterior, são agora o conjunto minoritário apenas com quatro trabalhos (que compara com 16 estudos empíricos). São artigos que aparecem no final do período – entre 2018 e 2021 – pelo que naturalmente pouco se pode concluir acerca do seu impacto, medido pelo número de vezes que foram citados, de todo o modo, não parecem destacar-se pelo número de vezes que são citados. A tabela seguinte sumariza os ensaios.
O primeiro dos artigos trata-se de um editorial onde o autor reflete acerca das duas legitimidades na decisão política: a técnica e a democrática. Com o estabelecimento da evidência, enquanto elemento do processo de decisão política (processos de decisão politica baseados na evidência) a componente técnica, eminentemente ligada à administração, ganha presença no espaço da política, questionando o autor até que ponto, esse protagonismo acrescido, não compromete a democraticidade do processo de tomada de decisão.
O artigo aborda a questão da legitimidade das burocracias em modo similar às discussões acerca da dicotomia do período pós 2ª Guerra Mundial, todavia, a discussão não é aprofundada, o que se compreende, dado tratar-se de um editorial.
debatem as burocracias das Organizações internacionais (multilaterais) como um espaço que pode ser estudado no âmbito da AdmPub. A questão da dicotomia é discutida a partir da análise da atividade de The World Bank e, em particular, o significado da proibição estabelecida na Secção 10 do Artigo IV dos seus estatutos “The Bank and its officers shall not interfere in the political affairs of any member”.
Os autores debatem a proibição analisando o modo como devem atuar os técnicos no Banco Mundial, quando estiverem em missões de apoio técnico junto dos países auxiliados. Devem eles ser absolutamente neutros nas suas propostas ou podem defender determinados modelos sociais e económicos? Os autores concluem que a proibição estabelecida nos estatutos se circunscreve à grande Política: as eleições, a organização dos partidos políticos e quem deve liderar o país. Todos os outros aspetos, nomeadamente os de organização económica e social, são passíveis de ser objeto de atuação pelos técnicos do Banco Mundial.
A questão central deste artigo é, à semelhança de , a neutralidade (e o escrutínio) da burocracia e o significado e alcance dessa neutralidade. Ambos os artigos assumem espaços próprios de intervenção para a política e para a administração.
examinam a aplicação das metodologias de gestão de performance (PM) das organizações da administração pública, no contexto político africano, centrando-se no caso da Nigéria.
Consideram os autores que a PM produzirá a melhores resultados se se focar em formas de melhorar e manter os efeitos das políticas, assumindo quer a separação entre a política e administração, quer o papel de liderança da classe política (no relacionamento entre ambas).
O eleito político deve ter assim um papel de liderança e de preponderância no processo de tomada de decisão, relegando para uma posição secundária a AP. A aplicação de técnicas de PM deve ser entendida neste sentido, ou seja, inserida no processo político.
Finalmente, no artigo, a autora analisa quatro paradigmas da prática da AP: a Administração Pública Tradicional (Traditional Public Administration, TPA), a Nova Administração Pública (New Public Administration, NPA), a Nova Gestão Pública (New Public Management, NPM) e Governação em Rede (Network Governance, NG). Estes quatro modelos são apresentados e dispostos numa matriz de quatro quadrantes com base em duas dimensões: “Dicotomia Política-Administração” e “Gestão Orientada para o Mercado”. A autora associa a DP-A a uma eficiência na gestão (“managerial efficiency”) a qual se foca nos comportamentos ao nível micro e na redução do consumo de recursos através da melhoria da produtividade. Os modelos TPA e NPM assentam numa elevada separação entre política-administração, enquanto os modelos NPA e NG se afirmam pela baixa separação entre política-administração.
A autora usa a noção de DP-A, mas não a desenvolve conceptualmente. Nesse sentido há semelhanças com o trabalho , que também utiliza o conceito sem o desenvolver. Em ambos os casos a DP-A é instrumental para a discussão de outros assuntos, onde a questão da dicotomia tem uma presença muito marcada, mas não é o centro da discussão.
Há uma evolução muito significativa do período anterior para este período no que respeita aos ensaios. Eles constituíam o conjunto mais relevante de artigos no período anterior, não o sendo no período mais recente. Os ensaios eram alguns dos artigos mais citados no primeiro período e não o são agora, embora, como se disse, este facto, objetivamente verdadeiro, deve ser interpretado com cautela. Por fim, em muitos dos ensaios do período inicial a discussão incidia sobre a dicotomia, ela era o centro da discussão, porém, no período mais recente a dicotomia, embora esteja no centro da discussão, esta não incide sobre a dicotomia. A dicotomia é auxiliar na discussão. A discussão sobre a dicotomia parece assim ter passado de uma fase de retórica para uma fase de evidência.
4.2.1. Os estudos empíricos
Como se disse anteriormente os estudos empíricos são maioritários neste período. Mantém-se os estudos empíricos de natureza historiográfica com três trabalhos - , e . Roberts e Rosser tinham já produzido estudos da mesma natureza e acerca de temas similares anteriormente, pelo que há aqui uma continuidade de trabalhos.
Assinala-se também o trabalho de – uma análise bibiométrica - que mostra o carácter fundacional do trabalho de W. Wilson de 1887. O estudo mostra ainda que nos últimos anos tem havido uma presença continuada da noção de complementaridade, todavia, o autor considera que questões como a ética administrativa ou a neutralidade política da AP não são adequadamente resolvidos fora do conceito de dicotomia.
A variedade do tipo de estudos empíricos inclui ainda análise documentais ( e ) e Estudos de Caso ( e ). A Tabela 6 sintetiza estes últimos quatro estudos.
A tipologia de estudo empírico mais frequente foi, contudo, a análise de dados recolhidos por questionário, frequentemente envolvendo também a realização de entrevistas complementares. A Tabela 7 apresenta de uma forma breve esses oito estudos.
4.3. Análise às referências
A análise às referências permite-nos perceber as principais fontes de inspiração para os trabalhos em estudo. Estabeleceu-se o limite para seleção de autores nas sete referências tendo-se obtido uma lista de 21 autores com sete ou mais referências. Essa lista é apresentada em conjunto com a lista obtida, seguindo os mesmos critérios, para os artigos mais antigos, na tabela seguinte.
Observa-se que, embora as duas listas sejam distintas, há significativos elementos comuns. As duas figuras seguintes, a primeira para os autores “clássicos” (com produção maioritariamente há mais de 50 anos) e a segunda para os autores atuais (todos os outros), apresentam, em diagramas de Venn, a respetiva presença nos artigos mais antigos, nos artigos mais recentes, ou em ambos.
Observa-se a existência de um núcleo de autores, clássicos (Goodnow, Gulick, Waldo, Weber e Wilson) e atuais (Nalbandian, Rosenbloom, Rutgers e Svara) que são frequentemente referidos, quer nos artigos mais antigos, quer nos artigos mais recentes. Estes autores, e os seus trabalhos, devem ser encarados como o conjunto de contributos relevantes para a discussão deste tema.
Os autores comuns sobrepõem-se, em número, aos autores específicos de um período (mais recentes ou mais antigos) no caso dos autores “clássicos” e não se sobrepõem no caso dos autores atuais, o que deverá ser justificado pelo facto de os contributos mais antigos (“clássicos”) constituírem uma base mais estável de referências comparativamente com os autores mais atuais.
Uma segunda dimensão de análise nas referências é a sua antiguidade média. Os cálculos efetuados determinaram uma antiguidade média, quer para esta amostra dos artigos mais recentes de 24 anos, quer, em termos gerais, com o valor apurado para este indicador para os artigos mais antigos.
5. Discussão
A análise, simultânea dos artigos recentes e dos artigos antigos, permite observar diferenças com significado. Assim, a literatura mais antiga é formada maioritariamente por ensaios e a discussão faz-se muito em torno da dicotomia e de uma alternativa à dicotomia (complementaridade). A procura de novos caminhos (e.g. e ) tem impacto, mas não altera a diferença de postos de vista referida, o mesmo acontecendo com os estudos empíricos.
Na literatura mais recente esse esforço para forçar uma opção por um modelo ou pelo outro é menos evidente.
Parece assim desenhar-se algum consenso um torno de um modelo que assume a diferença entre a política e a administração. Em vários artigos assume-se essa necessidade de diferenciar política e administração (; ; ; ; ou ). Do mesmo modo, que em diferentes artigos se assume a necessidade de conjugar política e administração (complementaridade, defendida, por exemplo, em: ; ; ). Todavia, surge também uma literatura onde se defende a conjugação dos dois modelos ( consideram que a Dicotomia e a Complementaridade são usadas, num mesmo município, dependendo do contexto e dos serviços envolvidos, considerando ainda que a fusão dos modelos, dicotómico e de complementaridade, ocorre na prática e deve ser desenvolvida conceptualmente - ambos são úteis para explicar as estruturas de relacionamento, e nenhum é suficiente para explicar todos os aspetos) e uma outra que considera que, para lá de um domínio da política e de um outro da administração, existe uma zona de transição entre esses dois domínios onde coexistem eleitos e gestores públicos no desenvolvimento das políticas e na sua implementação. Uma zona de transição designada por the purple zone (; ). O que é significativo é que estes desenvolvimentos decorrem de estudos empíricos, isto é, os três artigos referidos descrevem estudos empíricos, e como tal, estas proposições decorrem da evidência.
Como se disse, a literatura até 2010 era maioritariamente composta por ensaios e depois dessa data por estudos empíricos, mas esta não é a alteração mais significativa. A literatura até 2010 era marcada pela oposição das posições – ou dicotomia ou complementaridade – e os esforços para alguma compatibilização de posições tiveram eco, mas não produziram alterações significativas no cenário descrito. Após 2010, acumula-se evidência que cria o enquadramento necessário a que, com naturalidade, surjam posições de defesa da compatibilização dos diferentes pontos de vista, dos diferentes modelos. Esta é, seguramente, uma diferença muito significativa entre os dois períodos, a evolução de uma discussão baseada na argumentação para uma discussão baseada na evidência.
6. Conclusões
É conhecido o desconforto das ciências sociais com o conceito de revolução científica e da importância dos paradigmas científicos neste contexto (ver, por exemplo ou ou mesmo ). Em AdmPub esse desconforto foi personalizado que basicamente assume a inexistência de paradigmas, isto é, a permanência da Administração Pública, enquanto área de conhecimento, num estado pré-paradigmático. Este trabalho ajuda-nos a perceber a razão desse desconforto, mas permite-nos colocar como hipótese que, no que à DP-A diz respeito, nos últimos anos se observa uma alteração significativa que, eventualmente, levará ao estabelecimento de um efetivo paradigma.
O conhecimento existente até 2010, porque incluía elementos contraditórios e inconciliáveis, não era adequado ao estabelecimento de um paradigma relativamente à questão do relacionamento eleitos-gestores públicos. Depois de 2010, o novo conhecimento resulta principalmente de estudos empíricos, e estes vão revelando que na prática da AP se vão alternando, consoante a situação, os modelos dicotómico e de complementaridade, criando-se assim uma configuração variável, no tempo e decorrente do tema, para o relacionamento política-administração.
Não se pode falar ainda na existência de um paradigma, mas parece existir uma proposição, que resulta da observação das práticas efetivas, e que pode ser adicionalmente testada em diferentes contextos, de modo que, em definitivo, se possa estabelecer um paradigma para o referido relacionamento.
Essa proposição assenta na ideia da distinção, mas também da necessidade de trabalho em conjunto, dos dois corpos – eleitos e gestores públicos – e na ideia de alguma fluidez e variabilidade no modo como esse trabalho em conjunto ocorre. Não se podendo ainda falar de um paradigma, parece, contudo, ser possível falar-se de um protoparadigma – uma proposição forte -, passível de ser testado.
A excessiva antiguidade das referências, comum aos artigos mais antigos e também aos mais recentes, mostra que tarda em se impor um referido paradigma em torno do qual se desenvolva uma literatura que constitua o núcleo principal das referências quando se quiser discutir o tema. A criação desse núcleo permitirá, que futuros artigos que abordem o tema, se baseiem em referências muito menos antigas. O teste do protoparadigma referido permitirá, crê-se, a criação desse núcleo de literatura.
6.1. Limitações e Futuras investigações
Um estudo desta natureza está sempre limitado pelo modelo de construção da amostra e pelas direções da análise e pelo carácter interpretativo, o que constituem particularidades da metodologia – em parte qualitativa – aplicada. Outros critérios no estabelecimento da amostra (por exemplo, a inclusão de artigos indexados em Scopus) poderiam alargar a base de artigos analisados, mas não é seguro que esse crescimento da amostra tornasse o estudo mais robusto, quer pela dificuldade em estudar documentos de duas fontes de indexação diferentes, quer pela dificuldade acrescida que a análise de um grupo mais vasto de documentos acarreta.
Como proposta de estudos futuros decorre, naturalmente, o desenvolvimento de esforços no sentido de validação do protoparadigma identificado.
Por outro lado, o estudo revelou uma grande antiguidade das referências usadas nos artigos estudados. Tal justifica estudos, autónomos, específicos para aprofundar a análise desta situação.
Agradecimentos
Este trabalho foi financiado através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) através de um projeto de financiamento com a referência UIDB/04521/2020.
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Notas
[1] No restante do artigo quando nos referirmos à Administração Publica enquanto área de conhecimento usar-se-á o acrónimo AdmPub. Usar-se-á o acrónimo AP em substituição de «Administração Pública» enquanto área de intervenção do Estado ou enquanto corpo de funcionários públicos.
Appendices
Anexo II.
Resumo dos artigos relativamente à relação política-administração