1. Introdução

A coleção de ficção juvenil Dois Passos e Um Salto foi criada, em 2012, pela editora Planeta Tangerina, permitindo, assim, o prolongamento do seu projeto editorial e artístico, para lá da conceção de inúmeros títulos para a infância, com particular ênfase no caso do livro-álbum. Desde então, foram vários os livros de ficção publicados, de autores portugueses, mas não só, nos quais é dada uma particular importância ao projeto gráfico, contando as obras com uma forte componente ilustrativa e incluindo a coleção, por exemplo, romances gráficos. Entre os autores portugueses, destacam-se Ana Pessoa, que assina, até à data, cinco textos e Bernardo P. Carvalho que ilustra quatro deles. Joana Estrela é também uma autora representada, assinando já texto e ilustração em obras desta coleção que se dirige ao público juvenil, podendo, todavia, interessar também a adultos. Sobre este aspeto em particular, será útil salientar que, embora o conceito de literatura e ficção crossover seja de complexa definição, poder-se-á considerar que “addresses a diverse, cross-generational audience that can include readers of all ages: children, adolescents, and adults” () e que “calls into question the boundaries which used to define children’s fiction by prescribing what it should contain or exclude” (). No caso da coleção em análise, ressaltar-se-á ainda que é atravessada por marcas de hibridismo e de multimodalidade, uma vez que se recorre, nestas obras, a diferentes géneros literários e linguagens artísticas para criar a narrativa. A este propósito, convirá ressalvar a existência de um pertinente debate teórico sobre as designações usadas para descrever estes corpos artístico-literários, notando-se, por exemplo, que “o conceito de hybrid novel tem suscitado alguma reflexão” (), bem como o termo multimodal, questões que se abordará adiante neste trabalho. Para já, e ressalvando-se que inovar implicará sempre alguma repetição, relevar-se-á, ainda assim, a existência, na coleção em apreço, de aspetos que poderão denotar alguma propensão inovadora, formal e tematicamente, havendo uma marca exploratória no que respeita a novas formas de contar que afastam aquelas obras das ideias de mera e simples repetição de fórmulas artístico-literárias. Já do ponto de vista temático, será possível encontrar narrativas sobre temas como morte, emancipação feminina, afirmação e descoberta da sexualidade, entre outros exemplos. Sendo várias as obras literárias em causa, não se procederá a uma análise exaustiva, pretendendo, antes, elaborar-se um quadro geral de questionamento crítico e reflexivo enquadrado nas propostas analíticas dos Estudos Culturais, em diálogo com os Estudos Literários. O trabalho dividir-se-á, assim, em quatro partes. Na primeira, a reflexão incidirá sobre as dimensões de contestação, desnaturalização e complexificação que caraterizam a investigação e a procura do conhecimento no âmbito dos Estudos Culturais; na segunda parte, a literatura juvenil será posicionada diante das problemáticas da legitimação, decorrentes das relações de poder com o cânone e das dinâmicas entre centro e periferias; numa terceira vertente, a abordagem será realizada em torno da noção de hibridismo literário, bem como de multimodalidade artística, considerando as suas potencialidades de transgressão às ideias de forma, de género literário e de fronteira entre linguagens artísticas e no âmbito da combinação repetição/inovação; na quarta e última parte desta reflexão, merecerá análise a conexão entre a linguagem e as representações do mundo, enfatizando o seu poder de transformação e perspetivando as obras em questão como possíveis processos de resistência.

2. Pela lente crítica dos Estudos Culturais

Antes de se posicionar as obras da coleção Dois Passos e Um Salto diante da perspetiva crítica adotada pelos Estudos Culturais, será preciso problematizar, na primeira parte desta análise, a área em questão, considerando, todavia, que as suas marcas de contestação, de questionamento crítico e de reposicionamento do olhar dificultarão e complexificarão a sua própria definição e delimitação. Neste sentido, tratar-se-á de uma área “intrinsecamente paradoxal, objecto de discussão e incerteza” em que, “se algum ‘método’ há […] ele consiste na contestação dos limites socialmente construídos”, como sejam, por exemplo, os de “classe” ou “género”, entre outros e “nas mais diversas realidades humanas”, sublinhando-se, neste aspeto, que “a ‘naturalização’ dessas categorias tem sido precisamente objecto de grande contestação a partir dos Estudos Culturais” (). Desta forma, “não admira, por isso, e desde logo pela marca de crítica constante com que nasceu e da qual se alimenta, que este domínio científico tenha tantas dificuldades em auto-limitar-se”, salientando-se, ainda, que “a história dos Estudos Culturais, enquanto disciplina académica está efetivamente marcada pela contestação”, tendo contribuído, “igualmente, para destabilizar as fronteiras de disciplinas já com longa tradição académica, como a História, a Sociologia, a Literatura, entre outras” (). Ainda assim, apesar das múltiplas camadas e visões que complexificam esta área, poder-se-á considerar que “é objectivo primeiro dos Estudos Culturais construir um discurso crítico e auto-reflexivo que procure constantemente redefinir e criticar o trabalho já feito”, assumindo igualmente “um papel desmistificante em face de textos culturalmente construídos” (). Esta ideia de irrequietude face ao conhecimento, de incerteza face às certezas e de permanente movimento em terreno mutável poderá, assim, constituir-se como um traço relevante no âmbito dos Estudos Culturais. Talvez, por isso, Stuart Hall tenha manifestado dúvidas sobre a publicação em livro das aulas que deu, tal como recordam Lawrence Grossberg e Jennifer Daryl Slack, na introdução à obra Cultural Studies 1983, A Theoretical History:

he was, to say the least, uncertain and finally agreed only if they could be presented as a historical document, the product of a particular moment, as a story constructed at a particular moment and from a particular perspective about developments that by the very act of being narrated were being artificially closed, as if they were finished, or their trajectory already guaranteed. (Slack e Grossberg, citado em )

Neste sentido, Lawrence Grossberg e Jennifer Daryl Slack sublinham, ainda, que Stuart Hall era um ensaísta e que, sendo os ensaios “interventions into specific intellectual debates, and into specific historical and political contexts”, não criam “fixed and universal positions; they are not finished statements”, apresentando-se antes de maneira “provisional, always open to revision as new intellectual resources become available, as historical contexts change, and as the relations of power (domination and resistance, containment, and struggle) face new challenges” (Slack e Grossberg, citado em ). Se este posicionamento reflete “Hall’s mode of thinking” (, citado em), representará igualmente a visão dos Estudos Culturais sobre o caráter dinâmico e provisório do próprio conhecimento, sempre sujeito a novos pontos de vista, a novas abordagens e a novas perguntas, abrindo-se, assim, à contestação, à mutabilidade e à refutabilidade.

Podendo encarar-se a cultura como a articulação entre a dimensão simbólica e as práticas, atravessada por fenómenos de poder, então os Estudos Culturais, construindo-se em movimento, reposicionando permanentemente o olhar, desnaturalizando-o e desautomatizando-o, enfrentam o desafio constante de as respostas de ontem poderem já não chegar para as interrogações de amanhã, relevando-se, ainda, neste processo ser “very difficult in a particular intellectual milieu to think outside of the dominant philosophical discourses with which you have to engage” ().

O que apresentará conexões pertinentes no âmbito da coleção juvenil incluída nesta análise será o facto de que, no que concerne aos Estudos Culturais, “todos os estudos procurarem revelar os discursos marginais, não oficiais, ou daqueles que propriamente não têm voz” (). Esta consideração assume especial saliência no âmbito da chamada literatura juvenil, uma vez que foi sofrendo transformações ao longo do tempo, o que, como se verá na parte que se segue, permitiu não só iniciar um processo de legitimação literária, com toda a controvérsia que tal implica, como, sobretudo, abrir caminho para a liberdade de exploração temática, sem pretensões moralizantes e com a preocupação de apresentar não o ponto de vista pedagógico do adulto sobre a adolescência, mas o de procurar o(s) ponto(s) de vista dos adolescentes sobre a vida e o mundo.

3. Literatura juvenil: legitimação, centro e margens

Encerrando apenas nas próprias designações de literatura infantil e juvenil enormes incompletudes e polémicas, o território literário em causa tem sido alvo de inúmeras variações formais, temáticas, e até de perspetivas. Se o panorama contemporâneo se destaca como terreno particularmente fértil de experimentação artística, apostando no cruzamento de géneros literários, linguagens artísticas e explorando formas outras de contar e representar o mundo, nem sempre, todavia, esse horizonte se desenhou tão vasto.

Particular expressão assume, por exemplo, o facto de, durante muito tempo, os livros juvenis tenderem a não adotar o ponto de vista do adolescente. Aliás, na tese de doutoramento Vozes e silêncio: a Poética do (Des)encontro na Literatura para Jovens em Portugal, salienta Teresa Mergulhão que, “até ao início dos anos oitenta, e salvo honrosas excepções”, a “literatura para jovens, de cariz tendencialmente pedagógico e moralista, encontrava-se não raro ao serviço da ideologia dominante […] condicionando os discursos e as formas de actuação das personagens” (). Desta forma, o acesso ao “mundo interior” dos adolescentes apresentava-se “vedado e submetido à focalização heterodiegética ou omnisciente de um narrador, quase sempre adulto, que conduzia o rumo dos acontecimentos e emoldurava os diálogos das personagens frequentemente com apreciações de carácter judicativo e moralizante” (). As implicações e o alcance desta mudança na criação literária e na própria receção das obras são inúmeros, apresentando já “a ficção juvenil das últimas décadas” vários exemplos “de narradores em primeira pessoa, quase sempre adolescentes ou jovens, que dão conta da sua visão do mundo, filtrando-a à luz da sua experiência de vida e do seu contexto particular” (). Pese embora as dimensões de alteridade acarretadas pela escrita literária, atendendo à presença de um escritor que já não é, mas que já foi, adolescente, a capacidade transformadora desencadeada pela mudança de ponto de vista permitirá, pelo menos, tentar dar voz a quem tendencialmente não a terá, podendo os adolescentes situar-se nesse lugar periférico. Neste ponto, será, ainda, de relevar que se, no estrito âmbito literário-formal, se poderá apontar a mudança de ponto de vista no singular, já atentando nas obras da coleção em apreço fará sentido o uso do plural para referir os pontos de vista de diversos narradores adolescentes.

Ao questionarem igualmente as relações de poder, os Estudos Culturais serão certamente pertinentes para se refletir também sobre a legitimação da própria literatura juvenil. Qual a relação do cânone com a chamada literatura juvenil ou literatura de potencial receção juvenil? Estas questões comportam, ainda, uma outra que é a de se tentar estabelecer, mesmo noutros ângulos analíticos, o que é a adolescência. Sobre este aspeto, convirá realçar que “o conceito de Literatura Juvenil é ainda bastante recente e resulta do tardio reconhecimento da adolescência como um período vital […], reconhecimento que só ocorre nas sociedades pós-industriais” (). Não obstante, e apesar desse reconhecimento, “a relativa ‘novidade’ do conceito’” contribui para que se mantenham “algumas indagações que marcaram os debates em torno da literatura infantil: existe uma obra especificamente juvenil? O que a distingue dos textos destinados às crianças e aos adultos?” (). Tais interrogações contribuirão para tornar de demarcação complexa o conceito de literatura juvenil, não parecendo “possível definir com exatidão a faixa etária a que se direcionam as obras”, o que se deverá também ao facto de adolescência ser uma categoria “construída” (.

No quadro da legitimação literária, nas relações que estabelece com o centro e com o cânone, também a chamada literatura infantil, para crianças, ou de potencial receção infantil – as designações assumirão sempre, como já referido, contornos de incompletude e polémica –, enfrentou obstáculos semelhantes. Poder-se-á, aliás, concordar que “motivos de ordem histórica, social e cultural contribuíram para que, durante muito tempo, se tivesse negado a existência de um subsistema literário infantil (ou infantojuvenil)”, sendo que, entre várias dessas razões, estaria também presente o entendimento da “criança como um ser limitado ao nível das suas capacidades intelectiva, perceptiva e estético-valorativa” (). Todavia, se “nem sempre […] a literatura para crianças recebeu” o “reconhecimento e a validação merecidos, tendo sido durante muito tempo marginalizada e subalternizada em relação à sua congénere para adultos e entendida como uma forma literária menor e periférica” ou “tendo visto ser-lhe negado o seu estatuto de fenómeno literário, tal tendência tem vindo a inverter-se” (). Ainda assim, “se a literatura infantil, hoje, já viu reconhecidas as suas especificidades, o mesmo ainda não ocorre, pelo menos não de forma tão evidente e sistemática, no que respeita à literatura juvenil, apesar de todas as qualidades que possui” (). Se se poderá considerar que “a evolução – e até a legitimação – da literatura juvenil” decorrerá “da instabilidade do próprio conceito de adolescência e juventude, alvo de mutações em resultado das alterações da sociedade”, merecerá igualmente atenção como aspeto que condicionará aquela legitimação “a proximidade com práticas literárias marginalizadas, como as fórmulas usadas em séries e coleções de diverso âmbito”, situação que se verificará “não obstante a publicação de obras de assinalável originalidade e qualidade literária” ().

Uma questão, porém, permanecerá: importará à arte fazer parte do cânone, fará sentido posicioná-la no centro? Situando-se as dinâmicas provocadas pelas dicotomias de centro e margem, de inovação e repetição, longe da consensualidade e animando, antes, o debate teórico no âmbito da literatura juvenil, várias considerações têm sido tecidas, merecendo algumas ser assinaladas, recordadas, problematizadas. Será no âmbito dessa reflexão e discussão que se poderá, por exemplo, questionar que “a repetição seja critério tout court de falta de reconhecimento, por oposição à originalidade de processos que caracterizaria a ‘boa literatura’, quando ela é a base da memória do sistema literário, sobre a qual se constrói a inovação” (). No âmbito do mesmo debate, poder-se-á igualmente considerar que “a maioria dos textos da literatura juvenil situa-se nas margens do sistema literário, fazendo parte do conjunto de obras que incorrem nas questionáveis designações de paraliteratura, literatura periférica ou literatura marginalizada (ou nas ainda mais questionáveis denominações de infraliteratura e subliteratura), usadas para marcar o afastamento em relação à literatura legitimada” (). Neste sentido, deverá, ainda, ser introduzida neste diálogo a ideia de que “as obras para adolescentes e jovens continuam a ocupar um lugar marginal, pela sua associação a tipologias, géneros e técnicas de fidelização de público normalmente associadas a uma cultura de massas, também ela marginalizada” (). Relevante será, todavia, a consideração de que

o respeito pelos diversos públicos, pelas suas diversas realidades e culturas torna questionável a consideração de um sistema de legitimação que assente na discutível distinção entre ‘alta-cultura’ e cultura popular ou de massas, sobretudo porque esta estabelece a priori diferenças valorativas entre leitores. ()

Além disso, convirá salientar que “a própria História da Literatura ilustra largamente o princípio dinâmico que rege a valorização das obras, operando transferências do centro para a periferia e vice-versa” (). Existirá, assim, uma relação dinâmica entre inovação e repetição, também no âmbito da literatura juvenil, atendendo-se, por exemplo, a que “a própria reabilitação da literatura popular, particularmente do conto, assentou no reconhecimento de que esquemas interminavelmente repetidos podem dar lugar à inovação e à renovação necessárias à expressão múltipla de visões do mundo, criando obras que se pautam pela qualidade e pela originalidade” (). Ainda no âmbito deste debate, “há que considerar, aliás, que a criatividade artística opera, precisamente, nesta margem de oscilação entre a repetição – subjacente às convenções literárias, às normas dos géneros e aos paradigmas do gosto de cada época – e a inovação” e que “do ponto de vista do leitor, esta dupla faceta permite o reconhecimento, que é em si mesmo tranquilizador e facilitador da leitura, pelo apelo ao familiar, e a motivação e o desafio que resultam da novidade e da invenção” ().

Mostrando-se, assim, ampla a teorização em torno de conceitos como literatura canónica ou literatura periférica, e podendo ser estabelecidos diferentes critérios e perspetivas, este texto tenderá a propor a existência de uma particular vitalidade artística em espaços que se mantenham, de alguma forma, nas margens. Se essas margens forem encaradas como lugares mais livres de constrangimentos e convenções, sejam económicos, de mercado, ou de reconhecimento canónico, poderão, de certa maneira, assumir também, com assinável dinamismo, uma propensão transgressora e inconformista, tão fundamental para se inovar e transformar (a arte, o mundo, e até o próprio cânone). Se uma das possíveis definições para a periferia poderá ser, em contraposição a outras, a de

um maior desapego em relação às convenções literárias, uma focagem de orientação comunicativa, contemplando a atenção ao público e o acompanhamento criativo da sua formação enquanto pessoas e leitores, talvez convenha à literatura juvenil guardar essa posição, não sem ter o cuidado de cultivar a originalidade e o enriquecimento dos textos enquanto arte verbal. ()

Interessando, para a perspetiva deste estudo, sublinhar, sobretudo e mais do que os restantes pressupostos referidos, o “maior desapego em relação às convenções literárias”, poder-se-á, então, considerar que será também nas margens que qualquer projeto artístico poderá revelar mais vitalidade e mais vocação experimental. Todavia, tal relação poderá igualmente constituir-se em processo de negociação permanente, em lugar não fixo entre o centro e a margem. Se, de facto, muitos dos livros da coleção em apreço são já reconhecidos por setores da crítica especializada, por segmentos da academia e até pela instituição escola, não se poderá, ainda assim, pelo seu experimentalismo, fechá-los em absoluto na convenção e no centro. Para além disso, mesmo no âmbito das questões de mercado, também não demonstram qualquer propensão para se adequarem a fórmulas, sejam literárias ou gráficas.

Numa entrevista que faz parte do livro Children’s Picturebooks – The art of visual storytelling (second edition), Bernardo P. Carvalho e Madalena Matoso, dois criadores da editora Planeta Tangerina, explicam por que razão “they have no desire to get any bigger” (, da seguinte forma:

“You have to balance the creative side and the business side. We are confident that we can stay small. If you want to get rich, you grow and grow. We have grown to this size. […] We never try to repeat or replicate something because it was a commercial success. We always want to do something new.” (, entrevista a fundadores do Planeta Tangerina)

O que distinguirá, aliás, a coleção é o tratamento singular dado a cada um dos livros, encarando-os como um objeto artístico único, mesmo do ponto de vista gráfico, peritextual e estético. Ainda assim, e sendo um projeto editorial e artístico, pretenderá chegar ao público e ser lido, o que justificará uma permanente e cuidadosa negociação entre centro e margens.

4. Do hibridismo e multimodalidade à repetição e inovação

Os livros da coleção Dois Passos e Um Salto, da editora Planeta Tangerina, apresentam algumas singularidades, atendendo ao segmento em que se inserem no âmbito do panorama editorial português. Revelando um perfil menos convencional, denotam particulares contornos no âmbito do hibridismo genológico, bem como traços e um perfil multimodal, por recorrerem, por vezes de forma fusional, a outras linguagens artísticas, como seja a ilustração. Mesmo admitindo a impossibilidade de se inovar totalmente, sem alguma repetição, poder-se-á, todavia, ressaltar a sua vocação transgressora em relação à ideia de fórmula e de forma. De facto, a coleção explora, de forma praticamente transversal, formas novas de contar e de representar.

As designações usadas para descrever este tipo de obras têm merecido debate teórico, nomeadamente a delimitação de conceitos como hybrid novel e o termo multimodal. Se este último poderá designar obras em que tanto linguagem verbal como visual assumem relevância narrativa, já o primeiro apontaria para textos em que palavra e imagem se fundem, “originando um novo texto” (). De qualquer forma, o conceito de hybrid novel pode também ser encarado

não no sentido mais tradicional do texto que combina, transforma ou subverte características de diferentes géneros e subgéneros literários, esbatendo fronteiras genológicas e tipológicas mesmo do âmbito não literário, sempre dentro do universo textual, mas na aceção contemporânea, de nítido recorte pós-moderno e até metaficcional, que inclui apropriações e recriações de outro tipo de linguagens ou sistemas, como as imagens/ilustrações, fotografias, tipografia, mapas. ()

Para além de romper “as barreiras entre os géneros, a narrativa juvenil incorpora ainda elementos da poesia, do teatro e mesmo de géneros considerados não-literários ou paraliterários pela tradição” (), o que também lhes atribui, contemporaneamente, um “cariz desafiador” ().

Atendendo à moldura analítica deste estudo, que se estabelece dialogicamente entre os Estudos Culturais e os Literários, ressalte-se ainda como estas obras juvenis não só incluem inúmeras referências à Internet, às redes sociais, às mensagens de telemóvel, entre outras manifestações comunicacionais contemporâneas, como desafiam, misturando, as noções de cultura erudita e cultura pop, podendo, numa mesma obra, como é o caso de Pardalita, de Joana Estrela, haver referências a músicas de Rolling Stones e António Variações, bem como a quadros de Maria Helena Vieira da Silva e à obra de Ovídio. No âmbito, aliás, da literatura juvenil contemporânea, o “recurso não apenas a textos literários, mas a letras de músicas, filmes ou elementos da cultura popular e mediática são evidentes, seja de forma implícita ou explícita” (), havendo muitas histórias

revisitadas e recontadas/recriadas não envoltas por um sentimento de nostalgia ou de simples tentativa de exaltação do passado, mas a partir de um olhar paródico, que subverte o texto original e convida o leitor a encarar as diferentes perspetivas sobre o que é narrado em resultado do cunho crítico que veiculam. ()

Ressalte-se igualmente que, no âmbito da “produção destinada preferencialmente ao público jovem” se encontram também marcas do “experimentalismo”, do “humor” e da “provocação”, revelando muitos autores “consciência de que tão importante como propor inovações em relação aos temas é também rever a forma de se trabalhar com a linguagem e a estrutura narrativa, já que não é possível tratar temas ‘revolucionários’ através de uma linguagem ou estrutura narrativa anquilosadas” (). No que à coleção Dois Passos e Um Salto respeita, observa-se a existência, e mesmo preponderância, de muitos dos traços e elementos atrás citados. Reconhecendo o pressuposto que releva “the pleasure of, and the inseparability of, repetition and innovation” e considerando, ainda, que “no cultural statement entirely sweeps away the past to create a tabula rasa, upon which it can suddenly make an absolutely unique statement, unrelated to any statement ever made before” (), ponderar-se-á, ainda assim, apresentar a coleção em apreço como potencialmente inovadora. Tal consideração atenderá aos pressupostos da combinação entre repetição e inovação, uma vez que “change and innovation come about through transformation, through transforming what is already given, producing the new out of it, leaving some of the old elements out, bringing new elements in, making a new rule of combination, and so on” (). Será, assim, através de um consistente trabalho sobre a forma, explorando-a artística, literária e até tematicamente, ao ponto de criar desafios de leitura e até algumas indefinições analíticas, que muitas obras da coleção em causa, mesmo repetindo, se distinguirão e inovarão.

5. A coleção como processo de resistência

Na quarta e última parte desta análise pretende perspetivar-se a coleção Dois Passos e Um Salto como processo de resistência também em relação a discursos e formas de poder hegemónicos e dominantes. Para sustentar esta proposta, contribuirá igualmente a possibilidade de o trabalho sobre a linguagem, nomeadamente a literária, bem como a exploração de formas outras de contar mundo, permitirem expandir horizontes artísticos e ampliarem as representações do mundo, não se limitando as reproduzi-las. A este propósito, convirá, no entanto, salientar o dinamismo e a persistência do próprio processo de resistência, que se constituirá mais como uma incessante intervenção do que na feição de resultado final. Conexões intrínsecas com o dinamismo implicado na ideia de processo, pelas suas extensões de movimento permanente que não se fixa, de desajuste e de provocação ao instituído apresentarão as manifestações artísticas, considerando-se o alcance que representações outras do mundo e de ser poderão ter também na criação de novas molduras de pensamento. Neste sentido, convirá sublinhar que, considerando “both emergent and residual forms”, entender-se-á “resistance as a process” que se apresentará, sobretudo, como “the continual practices of working on the cultural domain and opening up cultural possibilities”, e sempre lembrando que “the conditions within which people are able to construct subjective possibilities and new political subjectivities for themselves are not simply given in the dominant system. They are won in the practices of articulation which produce them” ().

No âmbito específico da coleção Dois Passos e Um que, apresentando desafios interpretativos, potencia igualmente a “literacia crítica” (), poderá ser defendido que, mesmo repetindo, este projeto editorial inovará também, explorando formas artísticas, trabalhando sobre a linguagem verbal e visual e, atendendo a que não haverá forma sem conteúdo, desviando igualmente do convencionalismo as incursões e abordagens temáticas. Ressalvando que a coleção juvenil em apreço merecerá certamente uma análise exaustiva que inclua a totalidade da sua proposta artística, a presente parte exporá apenas um breve périplo por algumas obras que permitirão exemplificar, de certa forma, a existência de um combate a estereótipos e de um entendimento sobre a vitalidade da arte nas suas variantes de contaminação e de experimentação.

Neste sentido, poder-se-á atentar, entre outros livros, no diário gráfico Aqui é um bom lugar, criado por Ana Pessoa e por Joana Estrela, como um exemplo de uma narrativa multimodal que se ergue com recurso a texto visual, verbal, ilustrações, fotografias, recortes, colagens. Trata-se de uma obra com um cunho experimental, construída de forma fragmentária, marcada pela variedade e pela irreverência tipográfica, o que poderá espelhar a própria desautomatização do olhar da protagonista adolescente. Apresentando igualmente traços de multimodalidade, ainda que menos intensos, O Caderno Vermelho da Rapariga Karateca, escrito por Ana Pessoa e ilustrado por Bernardo Carvalho, destaca-se, ainda, pela exploração do próprio conceito de hibridismo genológico, desafiando em permanência a ideia de forma e de género. De facto, quando N, a narradora adolescente, nega ser uma menina (), quando nega que o caderno seja um diário e quando nega até que o caderno seja um caderno (), o que se verifica será a existência de uma provocação às limitações impostas pelas convenções, pelos estereótipos e pelas formas do “gênero em todos os gêneros”, seja “um gênero de ser vivo ou o gênero humano”, seja “um gênero artístico, poético ou literário” (). O desafio ao género, incluindo o literário e o feminino, desencadeado pelas negações inscritas na obra que N seja uma menina () e o caderno um diário () permitem corroborar que “a questão do gênero literário não é uma questão formal: ela atravessa de uma ponta a outra o motivo da lei em geral” (). Este movimento desafiador à ideia de forma e de género que atravessa toda a obra apresenta ainda desdobramentos ficcionais, uma vez que o caderno se metamorfoseia, podendo ser “um gato, um coelho, uma mosca, uma personagem, uma pessoa” (). Tais metamorfoses acontecem, porém, porque N escreve nele, ou seja, é a própria escrita literária, enquanto processo artístico, que transforma a forma e que cria novas realidades, tão reais quanto a ficção o poderá ser. Já em Mary John, por exemplo, e para salientar outra obra igualmente escrita por Ana Pessoa e ilustrada por Bernardo P. Carvalho, a própria reflexão sobre a condição de adolescente mulher denota uma visão pouco ou nada naturalizada. No dia em que teve o período pela primeira vez, Maria João, a protagonista adolescente, pensa que a expressão “Estar com a História” usada pela mãe, porque a avó “também diz assim”, é “esquisita”, é como se “tivesse a História enfiada entre as pernas, a História do tempo e do espaço, a História da humanidade. Por exemplo, o Império Romano, o caminho marítimo para a Índia, o Estado Novo, tudo isso enfiado no meio das pernas” (). Mais tarde, a adolescente ponderará mesmo ser “o resultado de todas as mulheres de todos os séculos de toda a história” (). Se em Finalmente o Verão, de Julliam Tamaki e Mariko Tamaki, se retrata a maternidade igualmente de forma múltipla e não estereotipada, em Época das Rosas, de Chloé Wary, a narrativa aborda a discriminação de que um grupo de raparigas, que joga futebol, é alvo, e a consequente luta pela afirmação que protagonizam. Depois de “um corte nos subsídios” ter levado “a diretora a retirá-las da qualificação e a apostar tudo na equipa masculina” (Chloé, 2020, contracapa), a equipa feminina faz uma “esmagadora demonstração de força” (Chloé, 2020, s/p), mas, ainda assim, é a masculina que se mantém no campeonato.

As perspetivas temáticas surgem, todavia, em articulação com a exploração das potencialidades das linguagens verbal e visual, aspeto que abrange a toda a coleção. Pardalita, de Joana Estrela, o último título publicado no âmbito deste projeto editorial, é também disso exemplo, constituindo-se como uma obra em que são cruzadas fronteiras formais, entre linguagens artísticas e géneros literários. De facto, a narrativa é construída por texto verbal, que cruza diversos registos, como o epistolar, com elementos típicos do modo dramático, apresentando passagens escritas como partes de uma peça de teatro, e recorrendo, ainda, ao diálogo, bem como a excertos que, pela mancha gráfica, convocam a ideia de poema. A exploração da forma não se fica por aqui, estendendo-se ao texto visual que se constrói pela ilustração, por vezes em página dupla e até substituindo o texto verbal, e recorrendo também a elementos característicos das novelas gráficas e da banda-desenhada. Já tematicamente, narra-se a história de uma adolescente que se apaixona por outra, introduzindo-se igualmente uma longa reflexão sobre o tema dos refugiados e dos migrantes, sobre o que separa as pessoas umas das outras, a que distância estão, e sempre no âmbito do grande tema da inclusão, da diversidade e dos direitos humanos. Trata-se, ainda, de uma obra que questiona igualmente as fronteiras entre a chamada cultura erudita e cultura pop, aludindo a, por exemplo, a músicas de Rolling Stones e António Variações, a um quadro de Maria Helena Vieira da Silva, intitulado “História Trágico-Marítima ou Naufrage”, ao mesmo tempo que inclui uma menção a Ovídio. Neste sentido, a referência ao mito de Hero e Leandro como sendo a peça que o grupo de teatro está a ensaiar assumirá relevância especial, permitindo articular, no passado e no presente, dimensões relacionadas com ideias de género e de preconceito, uma vez que Hero e Leandro eram dois amantes que viviam um amor desaprovado e que se encontravam, cada um, numa das margens do estreito de Helesponto, atualmente de Dardanelos, que separa a Europa da Ásia. Pardalita, como outras obras da coleção, poderá, por isso, ser considerada como participando nessas “continual practices of working on the cultural domain and opening up cultural possibilities”, ou seja, como um processo de resistência (), ou em processo de resistência.

6. Considerações finais

Da análise efetuada poder-se-á concluir que os Estudos Culturais, ao questionarem a articulação da dimensão simbólica com as práticas culturais, atravessadas por relações de poder, permitirão enquadrar criticamente as possibilidades transformadoras das manifestações artísticas, em particular e no caso em apreço, as que ocorrem no terreno da literatura juvenil e, especificamente, no âmbito da coleção Dois Passos e Um Salto. De facto, a moldura teórica dos Estudos Culturais, tanto nas suas abrangências como nas suas especificidades, e em diálogo com os Estudos Literários, permitirá também perscrutações outras no território da literatura juvenil à luz de problemáticas como a sua própria legitimação, o seu estatuto, por vezes, considerado periférico, as suas relações com o cânone e com as noções de centro e de margem. Se, por um lado, o processo de legitimação vai acontecendo e conhecendo obstáculos, por outro, esse eventual ou possível lugar marginal permitir-lhe-á também exponenciar as suas propensões exploratórias e transgressoras, formal e tematicamente. Trabalhando a forma, a coleção em causa trabalha também o conteúdo, significando, no contexto de tal articulação, que o hibridismo e a multimodalidade que a caraterizam se constituem igualmente como desafios em relação a fórmulas instituídas, bem como a convenções de forma e de género. Trabalhar e explorar a linguagem, e não apenas a verbal, permitirá novas representações, novos diálogos, novas aceções. Assim, mesmo repetindo, mas não se limitando a reproduzir modelos e discursos dominantes será possível senão inovar, ir, pelo menos, inovando, num movimento contínuo e dinâmico que poderá produzir pequenas fissuras e deformações nas representações culturais hegemónicas. Desta forma, posicionar-se-á a coleção juvenil Dois Passos e Um Salto também como processo de resistência (), ressalvando-se que não se tratará tanto de chegar a um sítio novo, mas antes de, com irrequietude e procura, ir experimentando, questionando, e criando outras formas/conteúdos para contar o mundo. Criar objetos artísticos que desafiam categorias literárias e processos de leitura previamente estabelecidos pode também abrir novos caminhos de pensamento e conhecimento acerca de nós e do mundo. Em última análise será até difícil encarar a arte, em qualquer manifestação, como não se constituindo como processo de resistência. Se serve ou pretende apenas reproduzir e repetir, arriscar-se-á a ver esmorecida a própria vitalidade artística que a animaria. Nesse sentido e constituindo-se como um projeto artístico consistente, a coleção Dois Passos e um Salto continuará a movimentar-se, inovando na repetição, abrindo pequenas e ininterruptas fendas por onde a alternativa e a diversidade sempre passarão.

Agradecimento

Apoio financeiro da FCT, através de bolsa de investigação para doutoramento, com a referência UI/BD/151283/2021.

Bibliografia

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