Contos de Andersen em livros-objeto: ontem e hoje

Diana Martins, Sara Reis da Silva

Contos de Andersen em livros-objeto: ontem e hoje

Elos: Revista de Literatura Infantil e Xuvenil, núm. 9, 2022

Universidade de Santiago de Compostela

Los cuentos de Andersen en libros-objeto: ayer y hoy

Andersen's tales in object books: yesterday and today

Diana Martins a

Escola Superior de Design, Barcelos Universidade do Minho, Portugal, Portugal


Sara Reis da Silva b

Universidade do Minho, Portugal


Recibido: 01/09/2021

Aceptado: 28/01/2022

Resumo: O presente estudo reflete sobre as singularidades verbo-estéticas e gráficas que caracterizam cinco livros-objeto construídos a partir de três contos do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875), designadamente O Isqueiro Maravilhoso, com ilustrações de Vojtěch Kubašta, distribuído pela Electroliber; O Soldadinho de Chumbo, inscrito na coleção “Era uma vez”, da Agência Portuguesa de Revistas, bem como três edições contemporâneas, a saber: O Soldadinho de Chumbo (2004), da Asa Editores; A Pequena Sereia (2018), de Sébastian Pelon, uma publicação da Dom Quixote, e, finalmente, A Pequena Sereia (2020), da Booksmile, com ilustrações de Gwé. É nosso intuito tornar evidente que estas publicações de forma(to)s diferenciada(o)s e sensorialmente apelativa(o)s podem funcionar como portas de entrada para o universo fantasioso da obra literária deste célebre contador de histórias.

Palavras-chave: literatura para a infância; livro-objeto; Andersen; conto.

Resumen: El presente estudio reflexiona sobre las singularidades verbo-estéticas y gráficas que caracterizan cinco libros-objeto construidos a partir de tres cuentos del danés Hans Christian Andersen (1805-1875), a saber O Isqueiro Maravilhoso, con ilustraciones de Vojtěch Kubašta, distribuidas por Electroliber; O Soldadinho de Chumbo, inscrito en la colección “Era uma vez” de Agência Portuguesa de Revistas, así como tres ediciones contemporáneas, a saber: O Soldadinho de Chumbo (2004), de Asa Editores; A Pequena Sereia (2018), de Sébastian Pelon, una publicación de Dom Quixote, y, finalmente, A Pequena Sereia (2020), de Booksmile, con ilustraciones de Gwé. Es nuestra intención hacer evidente que estas publicaciones de formas diferentes y sensorialmente atractivas pueden actuar como puertas de entrada al universo fantástico de la obra literaria de este famoso narrador.

Palabras clave: literatura infantil; libro-objeto; Andersen; cuento.

Abstract: The present study reflects on the verbal-aesthetic and graphic singularities that characterize five object-books built from three short stories by the danish Hans Christian Andersen (1805-1875), namely O Isqueiro Maravilhoso, with illustrations by Vojtěch Kubašta, distributed by Electroliber; O Soldadinho de Chumbo, inscribed in the “Era uma vez” collection by Agência Portuguesa de Revistas, as well as three contemporary editions, namely: O Soldadinho de Chumbo (2004), by Asa Editores; A Pequena Sereia (2018), by Sébastian Pelon, a publication by Dom Quixote, and, finally, A Pequena Sereia (2020), from Booksmile, with illustrations by Gwé. It is our intention to make it evident that these publications in different and sensorially appealing ways can act as gateways to the fantasy universe of the literary work of this famous storyteller.

Keywords: children’s literature; object book; Andersen; tale.

Introdução

O livro para a infância vive, hoje, dias de grande inventividade e fertilidade estética. Memoráveis e desafiantes, grande parte das obras editadas ou traduzidas na contemporaneidade, mais especificamente, em Portugal, nas últimas décadas, apelam a um diálogo de cariz sensorial, persuasivo e prazeroso com/para o leitor, muito resultante da especial configuração gráfica. Trata-se, portanto, de publicações cuja leitura assenta num paradigma regido pela emocionalidade, em certos casos, fugaz e pouco profunda, facilmente enquadrável nos valores da sociedade hipermoderna, caracterizada, por exemplo, por Gilles Lipovetsky e Sébastien Charles, em Os Tempos Hipermodernos (2020). A este respeito, importa recuperar, ainda que brevemente, a seguinte reflexão aí apresentada: “Os media foram obrigados a adaptar-se à lógica da moda, de se inscrever no registo do espetacular e do superficial e de valorizar a sedução e o divertimento das suas mensagens” (2020, p. 43). Ora, esta mesma observação é, sem dúvida, transversal ao domínio da edição para a infância vinda a lume nos últimos anos e dá conta dos propósitos que norteiam grande parte destes livros-objeto (mas não no seu todo), dado que, também na vertente da publicação de potencial receção infantil, impera, muitas vezes, uma lógica da racionalidade, até mesmo, nos volumes dirigidos a bebés, sendo comum a oferta de propostas pedagogicamente intencionadas ou de cariz utilitário e, ao mesmo tempo, “ruidosas” no que à vertente visual e estética diz respeito.

Estes volumes situados no amplo universo dos livros-álbum, ainda que, do ponto de vista ilustrativo, apresentem uma inegável supremacia, podem ser compartimentados em três grandes tendências cuidadosamente descortinadas por Sophie Van der Linden (2021), em Tout sur la Littérature jeunesse de la petite enfance aux jeunes adultes, embora, na verdade, a sua identificação não seja um processo tão imediato ou preciso como se possa inicialmente pensar ou prever. A arquitetura destas obras oscila, portanto, entre duas configurações. Em primeiro lugar, aquelas cuja leitura privilegia a dimensão verbal, sendo, por conseguinte, publicações nas quais a ilustração cumpre um papel de complementaridade, motivador da interpretação dos sentidos da obra, como sucede, por exemplo, em edições ilustradas de contos clássicos. Numa segunda linha, podemos encontrar volumes cuja leitura é intensamente visual que compreende, deste modo, um texto verbal parco, não raras vezes, de teor poético, circunscrito ao mínimo necessário à compreensão da temática narrada. Assim sendo, “les enfants non lecteurs de texte ont donc la possibilité de lire véritablement une histoire grâce à ces narrations visuelles” (2021, p. 96).

Os livros que selecionámos para análise neste breve estudo situam-se, porém, numa terceira vertente relativa às publicações cuja materialidade ocupa o primeiro plano. Exigem, por isso, uma manipulação e apreensão física da obra feita, frequentemente, de modo não tradicional ou linear, e, desta forma, “les enfants sont alors pleinement acteurs de la lecture qui fonctionne de manière plus intuitive ou sensible” (2021, p. 97). Efetivamente, a centralidade do texto verbal dá lugar, nas obras inscritas neste último grupo, a uma leitura multimodal e plural realizada com recurso ao som, ao tato, a um generoso conjunto de ilustrações compostas por elementos móveis ou manipuláveis, bastante similar, na grande maioria dos casos, à leitura no ecrã, dado que, “neste ambiente rico em multi-estímulos, a acção leitora requer a utilização de quase todos os sentidos sincronizadamente num processo veloz” (Silveira, 2014: 43). Este acréscimo gráfico, visual e, até, emocional acaba por prender a atenção do leitor e por introduzi-lo, por via de um envolvimento emocionalmente positivo, na prática da leitura. A carga afetiva decorrente da exploração de jogos de procura e de descoberta, da observação entre um momento antes e um depois, provindos da alternância entre as ilustrações, por exemplo, a concretização de ações lúdicas (como o brincar ao faz de conta) com partes destacáveis do livro ou por via do recurso a forma(to)s especiais, entre outras estratégias gráficas que não cessam de aparecer e surpreender no domínio da edição para a infância, dotam estas publicações de um conjunto de estímulos significativos e cativantes ao olhar dos mais pequenos.

A materialidade do livro parece responder, portanto, a um ímpeto constante de procura de novidade que visa prender a atenção do leitor através da inclusão de aspetos físicos invulgares, como discos giratórios ou botões com som, por exemplo, que quebram a rotina associada à leitura tradicional. No entanto, é importante ter em atenção a intensidade e o movimento destas opções gráficas, como esclarece Teresa Silveira (2014, p. 90) a respeito das estratégias de promoção da leitura. Assim,

geralmente, quanto maior for um som ou a intensidade da luz, maiores serão as possibilidades de conquistar a concentração num único acto. O mesmo se passa com o movimento. Grosso modo, a nossa atenção é direccionada para os estímulos que se movem, o que significa que se o cérebro for confrontado em simultâneo por um estímulo de natureza estática, como é exemplo da prática leitora e um estímulo com movimento, naturalmente a atenção recairá no segundo. Esta inevitabilidade neurobiológica leva-nos a pensar na natureza das práticas de promoção da leitura, nomeadamente no lugar e na função que os estímulos visuais, auditivos e multimédia têm na conquista do gosto pela prática da leitura contemplativa, uma prática de natureza “estática”.

Com efeito, estas estratégias de animação visual e gráfica do texto podem ser, até certo ponto, comparáveis, a nosso ver, com as práticas de animação no domínio da promoção da leitura, visto que, num primeiro momento, a atenção à vertente emocional, em atividades de leitura em voz alta, por parte do mediador é essencial. Deste modo, “quem gosta trespassa o gosto nas palavras, nos gestos e na entoação da voz, podendo através de algum destes elementos de foro afectivo contornar a probabilidade do cérebro ignorar outros estímulos entretanto apresentados para captar a atenção leitora” (Silveira, 2014, p. 93). Se isto é, sem dúvida, uma prática crucial no domínio da promoção do livro em formato de códice, nos primeiros anos de vida, já no caso dos livros-objeto, é projetada a priori uma leitura que se enseja essencialmente individual e autónoma, dada a exigência de contacto físico direto com o objeto-livro pelo que a emocionalidade da apreensão destes artefactos advém da valorização do design e da componente estética. O designer deve, portanto, atentar não apenas no conhecimento prévio do público-leitor decorrente da ainda parca experiência deste público-alvo, mas também favorecer a apresentação menos expectável, surpreendente ou, até mesmo, desafiante do conteúdo em causa, de modo a suscitar o desejo de contacto com o livro, isto é, suscitar a curiosidade do leitor.

Por conseguinte, esta maior flexibilidade e inventividade inerente ao livro enquanto objeto, esta valorização da linguagem do design deste artefacto, quando em consonância com um conteúdo global da obra que se deseja desafiante, constitui, sem dúvida, um importante veículo de aproximação à leitura. Menos imediatista do que, à primeira vista, se possa supor, a leitura de alguns destes volumes, cuidadosamente construídos, apela a uma apreensão mais lenta e faseada, incita à reflexão e capta, cada vez mais, leitores mais experientes e literariamente críticos ou pouco propensos a uma leitura descartável.

Os textos clássicos ocupam, na verdade, um importante espaço de difusão dentro deste setor crescente de livros-objeto dirigidos aos mais pequenos. Narrativas antigas podem, agora, ser (re)descobertas por via de apropriações graficamente sedutoras, releituras e revisitações que motivam a construção de sentidos plurais, que suscitam múltiplas emoções e se convertem num momento experiencial/chamativo, que se deseja memorável e catalisador de novas descobertas e leituras. Na realidade, este apreço pelo passado vem sendo observado, nas últimas décadas, em vários domínios do consumo, não exclusivamente editorial. Recuperando, novamente, a obra Os Tempos Hipermodernos, facilmente nos apercebemos da transversalidade desta tendência:

a consciência do valor do património intensifica-se, mas o que produzimos tem uma duração cada vez mais limitada. O passado já não é socialmente fundador ou estruturante; foi renovado, reciclado, mas ao gosto do nosso tempo, explorado com fins comerciais. A tradição já não convoca à repetição, à fidelidade e à revivescência do que já está feito: ela tornou-se um produto de consumo nostálgico ou folclórico, piscadela de olho ao passado, objecto-moda. (Lipovetsky e Charles, 2020, p. 94)

A sedução material e visual prevalece, portanto, nestas publicações assentes no reconto de narrativas clássicas dirigidas a um leitor contemporâneo, prevendo um modus operandi, naturalmente, distinto do observado na apreensão dos livros em formato de códice e na sua matriz.

A obra literária de Hans Christian Andersen (1805-1875), pela sua inegável sensibilidade, imaginação e acuidade ética e estética, pertence à listagem das produções literárias perenes e de leitura fundamental em qualquer cultura. Os títulos que assina são, na verdade, clássicos irrecusáveis sobejamente difundidos, cuja pervivência foi sendo substantivada em sucessivas reedições em idiomas e latitudes diversas, com ilustrações assinadas por uma vasta plêiade de artistas1, bem como, por exemplo, na proliferação de alguns livros-objeto dedicados à divulgação de parte dos seus contos, embora a sua oferta seja, na realidade, bastante mais contida comparativamente com o observado relativamente aos contos de Charles Perrault (1628-1703) ou dos irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm (1786-1859) Grimm2. Com efeito, “[...] Andersen escreveu cento e sessenta e oito [contos], universalmente conhecidos e apreciados, e traduzidos em mais de oitenta línguas” (Soares, 1974, p. 299) hoje, consensualmente, inscritos no património literário universal, ainda que o próprio escritor não tivesse grandes certezas sobre a imortalidade que esta sua obra lhe viria a conceder. Como recorda Ana Maria Machado, Andersen, ao contrário do sucedido com as coletâneas de Charles Perrault ou dos irmãos Grimm, optou por enveredar pela criação autoral, marcada por “uma visão poética misturada com profunda melancolia” (Machado, 2002, p. 72). Como tal, ainda que fiel à estrutura do conto tradicional, fez chegar ao leitor obras de inegável originalidade como “O Patinho Feio, A Roupa Nova do Imperador, Polegarzinha, A Pequena Sereia, O Soldadinho de Chumbo, O Pinheirinho e tantas outras” (idem, ibidem).

Imaginação, ironia, sensibilidade e melancolia encontram-se entre as principais singularidades dos contos de Andersen, anotadas por Maria Isabel de Mendonça Soares, em Hans Christian Andersen Vida e Obra – Conferência comemorativa do dia internacional do livro infantil (1974). Particularizando um pouco mais, a mesma autora chama a atenção para a “animação do mundo inanimado: antes de mais, o mundo dos brinquedos” (Soares, 1974, p. 35). Mas a esta tendência soma-se também a personificação da flora e “[...] da fauna miúda, não nos faltarão ratinhos, baratas, caracóis, mosquitos, minhocas, toupeiras, rouxinóis, andorinhas, aves de capoeira e cegonhas. Solenes e eruditas cegonhas que sabem tudo porque muito viajam” (Soares, 1974, p. 37). Como destaca a referida estudiosa, o conto O Isqueiro está entre os primeiros contos publicados pelo autor em estudo, que à semelhança de Grande Claus e Pequeno Claus, “[...] não eram criação do próprio Andersen, apenas recontados por ele, tanto me surpreendera sempre a crueldade gratuita em ambos manifestada num absoluto desacordo com a delicadeza e poesia de todos os outros contos assinados por Andersen” (Soares, 1974, p. 38). De acordo com António Garcia Barreto (2002), a idealização dos contos que Hans escrevera entre 1835 e 1842 terá germinado em Itália, conquanto, na verdade, esta sua criação apresente inegáveis raízes na oralidade dinamarquesa e diga respeito à revalorização do património tradicional, num processo similar ao empreendido por Perrault e pelos irmãos Grimm, conforme sugerido. Deste modo, podemos afirmar, à semelhança do avançado por Carmen Bravo-Villasante (1977, p. 56), que Andersen atribuiu poeticidade ao mais singelo dos objetos quotidianos e à mais rústica das trivialidades, pois

os contos do povo transformam-se, pela elaboração de um poeta que os embeleza, em manifestação da sua própria inspiração e das influências dos poetas preferidos. A fantasia de Hoffmann, a poesia de Heine, o encanto imaginativo de Walter Scott estão na base das narrações de Andersen.

Essa recolha no universo do maravilhoso reflete-se “[...] na utilização que fez dos encantamentos mágicos, da presença de feiticeiras, ondinas e elfos [...]” (Soares, 1974, p. 38). A título de exemplo, a autora em apreço destaca, por exemplo, o conto A Sereiazinha, entre outros.

A esta primeira marca identitária da escrita de Andersen, que, aliás, “[...] patenteia o inegável prazer de escrever como quem conta!” (Teixeira, 2008, p. 234), acresce um cunho indelével nos seus contos, que, não obstante a feição modelar na beleza e na poesia com que retrata a natureza e a realidade quotidiana, não fogem à crueldade da vivência dos seres mais desfavorecidos. Como tal, deve-se ao referido autor a admissão, na literatura de potencial receção infantil, de personagens inscritas em setores económicos marcadas pela extrema precariedade, pela fome, solidão e malvadez acentuadas. Com efeito e “por isso, há na maior parte dos contos que escreveu, um grande fundo de tristeza, às vezes, a roçar pelo mórbido” (Soares, 1974, p. 38). E talvez seja este o principal motivo que se encontra na origem de uma revisitação contemporânea mais concisa dos contos deste escritor, em livros-objeto, comparativamente com o assinalável número de obras desta natureza experimental, lúdica e interativa dedicadas a contos grimmianos e perraultianos editados nos últimos anos, como já anotado. Assim, a referida estudiosa menciona, particularmente, a frequente alusão à morte nos contos em apreço, quer através do desaparecimento de personagens, quer através da simulação da perda por via da ação lúdica praticada por sujeitos infantis. Na realidade, “[...] são numerosas as alusões a cemitérios e sepulturas, por vezes com pormenores macabros; noutros casos, a morte aparece mesmo personificada num velho, num anjo, num jardineiro, e até num belo cavaleiro envolto na sua capa de veludo negro [...]” (Soares, 1974, p. 42). O sofrimento embelezado que sustenta os seus contos (Bravo-Villasante, 1977) não é, contudo, sinónimo de que tudo está perdido, mas antes de que, dentro de uma visão marcadamente cristã própria do Romantismo da época, na vida é esperada a superação de obstáculos, bem como perseverança e coragem.

Assim sendo, este respeito pelo “decurso caprichoso, irreversível da vida” (Soares, 1974, p. 44), manifesto nos contos de Andersen, chama a atenção para o facto de que “o próprio Andersen reconhecia que o verdadeiro significado do que escrevia só os adultos poderiam entendê-lo” (Soares, 1974, p. 44) o que, a nosso ver, uma vez mais, atesta a relutância na tradução contemporânea (e, até, à aproximação) dirigida aos mais pequenos de algumas das suas narrativas com epílogos pedagogicamente mais desconfortáveis. Por fim, Maria Isabel de Mendonça Soares, apesar de registar as perdas sofridas por via da tradução, ao nível da sintaxe e da pontuação do hipotexto, enaltece o respeito pelo “poder descritivo de Andersen” (Soares, 1974, p. 46), dizendo ainda que “nunca se alonga, porém, excessivamente, entremeando esses períodos narrativos com diálogos vivos [...]” (Soares, 1974, p. 47).

As sucessivas e inúmeras edições em língua portuguesa das narrativas de H. C. Andersen, já minuciosamente elencadas, por exemplo, por Silva e Gomes (2005), têm resultado numa multiplicidade de exemplares, consubstanciando-se em coletâneas ou em edições parciais, em adaptações e traduções várias, algumas delas, como as de Guerra Junqueiro (1850-1923) em Contos para a Infância (1877), quase literais (Soares, 2001, p. 10) e outras distintas, igualmente com assinaturas de relevo, como é o caso do conto O Rouxinol, traduzido por Ilse Losa (1913-2006). Outro género de eco desses textos clássicos universais na literatura portuguesa contemporânea pode ser antevisto quer nos prolongamentos – chamemos-lhe assim – criativamente concebidos por António Torrado (1939-2021), em O Pajem não se cala (1981), ou Luísa Dacosta (1927-2015), em Sonhos na Palma da Mão (1990), quer nas próprias ilustrações de certos contos do autor dinamarquês concretizadas por ilustradores portugueses de renome, como João Caetano (Moçambique, 1962) (O Traje Novo do Rei) ou Manuela Bacelar (Coimbra, 1943) e A Sereiazinha, obra pela qual foi galardoada, em 1996, com o Prémio Nacional de Ilustração.

Uma outra vertente reveladora da fertilidade e da perdurabilidade dos contos de Hans Christian Andersen – e genericamente dos clássicos da literatura universal para crianças e jovens (Silva, 2020) – consiste na sua publicação em formatos gráficos bastante distintos e destinados, na maioria dos casos, a pré-leitores ou leitores iniciais. Trata-se de livros-objeto que, apesar do processo mais ou menos depredativo do texto verbal, propõem um contacto precoce com narrativas que, assim, nas primeiras idades, começam a fertilizar o imaginário infantil e a compor um repertório individual, uma cultura literária ou um intertexto leitor de possível mobilização ao longo do percurso-leitor.

No presente estudo, procuraremos, assim, analisar e interpretar um conjunto de volumes selecionados, com datas e chancelas distintas, cronologicamente dispersos, eleitos pela sua diferenciação e variação ao nível da materialidade. Estes exemplificam a tendência mencionada e inserem-se na categoria do livro-objeto. Procura-se evidenciar que, apesar de se tratar de uma tendência exponencial no mercado livreiro, a verdade é que a publicação de obras de forma(to)s distintas(os) não é uma prática totalmente nova no domínio da edição para a infância em Portugal.

Análise do corpus selecionado

Iniciamos o nosso percurso analítico com uma proposta de leitura de um conciso volume dirigido a pré-leitores e leitores iniciais, editado pela Agência Portuguesa de Revistas, constante da coleção “Era uma vez…”, à qual pertencem, ainda, além de O Soldadinho de Chumbo que revisitaremos, os títulos O Flautista da Aldeia, O Gato das Botas, A Gata Borralheira e O Pequeno Alfaiate Valente. Distinto, desde logo, pelo formato recortado das suas páginas de acordo com a silhueta do protagonista, o conto O Soldadinho de Chumbo, uma obra não datada, representa um volume de tamanho reduzido e de capa mole que se aproxima da subcategoria de livro-boneco que podemos inscrever no grupo genérico de livros-objeto que tiram partido de modos distintos de encadernação. Desta forma, a capa dá especial relevo à figura central desta intriga, cuja postura representada chama a atenção para a sua limitação física, ao mesmo tempo que sublinha a sua personalidade audaz, uma vez que a sua verticalidade é assegurada pelo apoio da arma que o acompanha. Neste reconto muito sinóptico, omitem-se as cuidadas descrições originais de Andersen relativas ao espaço físico ou às brincadeiras das crianças e também entre brinquedos, por exemplo, colocando-se, agora, a tónica na visão e nas ações praticadas pelo “boneco malvado”, figura oponente responsável pelos infortúnios vividos pelo soldadinho, bem como pelo final trágico deste e da sua amada bailarina que acabam consumidos pelo fogo da lareira. No entanto, contrariamente à versão matriz, muito provavelmente devido às particularidades dos potenciais recetores desta revisualização, é notório o cuidado em sublinhar, já no desfecho, o arrependimento desta personagem opositora: “Acabaram-se! Porém, quando o boneco viu os seus coraçõezinhos brilhando… chorou de arrependimento!”. No que à componente pictórica diz respeito, é inegável a interpretação adocicada que é feita a partir do hipotexto em apreço, substantivada, aqui, em ilustrações cromaticamente diversas e fortes, preenchidas com apontamentos como, por exemplo, um sol radioso, pássaros que voam pelo céu, pequenos ratinhos sobre a ponte por onde passa o soldadinho levado pelas águas do rio, entre outros. Trata-se, como tal, de um reconto suavizado e breve que pode funcionar como uma primeira aproximação a uma narrativa clássica onde imperam não apenas a fantasia, mas também a temática da morte e do perigo.

Atentemos, agora, num outro volume homónimo do que vimos de revisitar. Com data de primeira edição de 2004, O Soldadinho de Chumbo, volume pertencente à coleção “histórias com puzzle”, que integra igualmente títulos como O Patinho Feio ou A Pequena Sereia, de H. C. Andersen, a par de outros de autoria muito variada (e também não identificada nas publicações) como O Livro da Selva ou Peter Pan, foi editado com a chancela das Edições Asa, não tendo a referência à autoria do texto verbal nem das ilustrações. Trata-se de uma edição que evidencia, como particularidades físicas, o formato quadrangular, os cantos arredondados, o material resistente ou cartonado, assim como o facto de conter seis puzzles, partes-integrantes das seis páginas duplas ilustradas, ou seja, uma das páginas (todas as páginas pares) oferece sucessivamente um segmento recortado com seis peças destinadas à organização ou conjugação/encaixe. A estrutura gráfica do volume pauta-se, assim, pela repetição de um mesmo esquema: nas páginas ímpares, podem ser lidas as diversas sequências actanciais que compõem o conto, para, de seguida, nas páginas pares, se jogar com as peças mencionadas. Na verdade, esta secção lúdica poderá “valer por si só”, por exemplo, no caso dos pré-leitores ou daqueles leitores que não se encontrem predispostos à leitura verbal. Relativamente ao texto verbal, observa-se uma notória redução, com a omissão de certas passagens de índole mais descritiva, mas não pode observar-se uma total intencionalidade “lightizante” ou eufemística, na medida em que todo o dramatismo, toda a tensão, todas as sugestões do mal/da maldade são mantidos. Os infortúnios do protagonista não são omitidos e o desfecho trágico prevalece. Neste conto, o bem não vence sobre o mal, os maus não são verdadeiramente punidos e a justiça retributiva não se impõe também como meio compensatório. O desfecho representa, na realidade, um momento que não deixa de suscitar uma certa perplexidade, bem como algum desconforto pelo facto de, afinal, por muito que assim o leitor o desejasse, nada acaba bem: “Mas, infelizmente, num descuido o soldadinho caiu na lareira. O boneco de molas saltou para o salvar, mas por azar fez tombar a bailarina. Assim, através do fogo, ambos se uniram para sempre”.

Com efeito, a seriedade, a angústia e própria injustiça, que emolduram este conto, que não deixam de possuir algo de “cinzento” e de se desenhar sob o signo da fatalidade, parecem não encontrar eco quer na própria composição ilustrativa, cujo forte cromatismo e representação leve das expressões faciais contrariam a mensagem verbal, quer na disponibilização dos seis puzzles representativos dos principais momentos diegéticos. Observa-se, pois, uma espécie de incoerência compositiva que não deixa de ser enganadora e, de alguma forma, denunciar os fortes intuitos comerciais da publicação. Não deixamos, porém, de registar as potencialidades lúdico-formativas que o livro-objeto analisado, por incluir vários puzzles, encerra. Efetivamente, na prática deste tipo de exercício, a criança, além de se divertir ou distrair, aprimora as suas capacidades motoras, treina as suas faculdades psicofísicas, exercita as suas habilidades e favorece a capacidade de observação, concentração, atenção, análise e memória visual. Além disso, os puzzles estimulam o raciocínio lógico-matemático, a capacidade de resolução de problemas e a inteligência espacial. No caso concreto da sequência de seis puzzles que perfazem a totalidade da obra, eles permitem, também, adquirir conhecimentos que se prendem com a competência narrativa, uma vez que recriam visualmente os diversos momentos da ação da narrativa contada.

Segue-se uma abordagem de O Isqueiro Maravilhoso, com ilustrações de Vojtěch Kubašta (1914-1992), criador checo mundialmente conhecido, autor de diversas revisitações visuais de contos de fadas3, a partir dos anos 1950, período que, a nosso ver, dá início à segunda idade de ouro do livro-objeto que se estende até finais da década de 1970. Esta publicação, distribuída no mercado editorial nacional pela Electroliber, destaca-se do ponto de vista peritextual pelo recurso a elementos tridimensionais de abertura a 90º articulados com elementos pull-the-tab, aliados a uma visão humorística que, aliás, caracteriza globalmente a obra do referido criador. Os pedaços de papel móveis permitem a animação das personagens, alternando a sua feição expressiva, tornam possível a descoberta de elementos inicialmente ocultos, por exemplo, assim como concedem movimento aos três seres maravilhosos, os três cães desta intriga, apresentados, desde logo, na capa, com olhos, igualmente, manipuláveis pelo leitor. Trata-se, na verdade, de elementos gráficos especialmente atrativos, que dotam a leitura desta revisitação num momento especialmente mágico e envolvente, sendo opções gráficas bastante significativas, se atentarmos no facto de que se trata de um conto originalmente marcado pelo inesperado. Similar, de um modo geral, ao hipotexto que lhe deu origem, este reconto substantivado, agora, num suporte material original e particularmente apelativo para leitores iniciais, diferencia-se do ponto de vista verbal, unicamente, pela inegável necessidade de justificação das ações violentas. Assim, a morte da bruxa resulta de uma queda acidental à saída do buraco da árvore: “Mas o soldado vinha muito pesado e a bruxa fez tanta força que o ramo onde ela estava empoleirada partiu, fazendo-a cair e quebrar a espinha. Morreu.” (Kubašta, s/d: s/p). Já o homicídio dos reis, no epílogo, é legitimado pela sua malvadez: “Houve grande alegria entre o povo, porque o rei tinha sido mau e cruel. E como fora o soldado que os salvara daquele tirano, fizeram-no seu rei” (Kubašta, s/d, s/p). O formato horizontal torna possível a conceção cuidadosa dos espaços físicos onde decorrem os acontecimentos avançados ao longo do conto, funcionando cada ilustração como uma cena dramática/teatral, ao mesmo tempo que permitem a distribuição de todo o texto inscrito num pequeno livro aberto que nos remete para a natureza do relato (oral) de narrativas que está na origem deste conto.

O Isqueiro Maravilhoso (s/d), ilustração de Vojtěch Kubašta.
Figura 3.
O Isqueiro Maravilhoso (s/d), ilustração de Vojtěch Kubašta.


Outro conto da autoria de Hans Christian Andersen alvo de larga difusão é A Pequena Sereia, texto que, em 1989, foi retextualizado pela Disney4 e transformado numa das narrativas mais reconhecidas pelo público infantil.

Das várias revisitações verbo-icónicas deste texto, selecionámos, para análise, duas bastante recentes e marcadas por especiais configurações materiais ou pela mobilização de estratégias gráficas que, em larga medida, contribuem e potenciam certos sentidos textuais, além de abrirem possibilidades a uma leitura dinâmica, interativa e/ou sensorial.

O primeiro volume, A Pequena Sereia, assinado por Sébastien Pelon e editado, em 2018, pela Dom Quixote, ostenta, logo deste o espaço peritextual fundamental que é a capa, um exemplo do elemento gráfico recorrente e singularizador de toda a obra: um pedaço de tecido brilhante/prateado, com toque macio e esponjoso, com o qual se recria a cauda da protagonista. Em todas as seis páginas duplas a partir das quais o relato se arquiteta, ocorre a mobilização de um recurso gráfico-visual dessa natureza, além da presença também, em muitas passagens, de tons brilhantes resultantes da impressão com cores que assim o possibilitam. Observa-se que o tecido, de vários tipos, texturas e cores, surge em certas peças da indumentária das personagens, convidando ao toque, até porque, como se pode ler na contracapa da publicação, este livro insere-se na “primeira coleção para ler com a ponta dos dedos”. Sem funcionar como um fator distrativo ou dispersivo da atenção do potencial destinatário extratextual, a sua inclusão favorece, na verdade, a aproximação física (a partir do tato) e emotiva, prende o olhar e, até, poderá ajudar uma mais marcante memória/memorização do texto clássico em apreço.

No que diz respeito ao discurso verbal ou narrativo, é notório um certo esvaziamento – chamemos-lhe assim – estético-estilístico, caracterizando-se o relato pela concisão, concentração e simplicidade lexical. Dos sensíveis segmentos descritivos que tanto envolvem e emocionam o recetor extratextual das narrativas originais ou hipotextuais de Andersen encontramos, no livro-objeto aqui relido, uma pálida amostra. E, tal opção compositiva, quer ao nível visual, quer ao nível linguístico, parece, portanto, justificar-se pelo facto da presente edição se dirigir a leitores cujas competências lectoliterárias se afiguram, ainda, muito restritas ou em desenvolvimento. Acrescente-se, a este título, o facto do próprio desenlace da obra em análise suavizar muitíssimo o dramatismo que caracteriza o desfecho do texto matricial: “Depois de casados, o príncipe e a princesa partiram em viagem a bordo de um enorme barco. E, como a feiticeira havia previsto, a pequena sereia desapareceu nas ondas e dizem até hoje que ela é a espuma branca que brinca no mar.” (Pelon, 2018, s/p.).

A Pequena Sereia (2018), ilustrações de Sébastien Pelon.
Figura 4.
A Pequena Sereia (2018), ilustrações de Sébastien Pelon.


A segunda recriação verbo-icónica e gráfica do conto clássico A Pequena Sereia à qual dedicaremos atenção é datada de 2020 e veio a lume em Portugal com a chancela da Booksmile. Integrando a coleção “Contos Clássicos”, conta com ilustrações de Gwé. As informações peritextuais patentes na contracapa anunciam o essencial quer do desenho gráfico do volume quer da proposta de leitura que distingue a publicação: “Ler os clássicos infantis é muito mais divertido com esta coleção interativa! És tu quem vai animar este livro! Dá vida à história da Pequena Sereia e descobre o que se esconde em cada página! [...] Fantásticas ilustrações coloridas! Várias surpresas para descobrir!”.

Impressa num material cartonado mais resistente do que o da edição que analisámos anteriormente editada pela Dom Quixote, a obra destina-se a crianças com mais de três anos – assim estipula o editor – e apela, desde a capa, ao toque e à manipulação de mecanismos gráficos como o pull-the-tab, que, por exemplo, num dos segmentos, até resulta numa espécie de efeito moiré e finaliza numa alteração total da cena representada. Assíduo é, pois, o dinamismo ou o movimento advindo da intervenção ou ação física do leitor sobre o livro. O gesto do destinatário extratextual possibilita a alteração de certas cenas, abre outras camadas de leitura ou diferentes níveis de acessibilidade à semântica textual e esconde ou desvenda partes da narrativa. Estas estratégias gráficas não deixam de responder também aos impulsos do pequeno leitor, a quem o volume potencialmente se destina, concedendo-lhe a oportunidade de, também ele, através da sua “entrada por via dos sentidos” na obra, co-construir o seu sentido global. Como acentua Alaca, a especial materialidade pode funcionar como uma “strategy that at times extends to inviting the reader to actually contribute to the narrative” (Alaca, 2018, p. 59), porque, efetivamente, “Materials can engage the child in a unique experience of performative reading” (Alaca, 2018, p. 59). De notar, também, e ainda atendendo ao perfil do destinatário extratextual da publicação em apreço, a prevalência de uma composição ilustrativa assente numa paleta de cores fortes, vivas e contrastivas, no jogo claro-escuro, e na representação expressiva das expressões faciais das personagens que, aliás, parecem, quase todas, deter traços próprios de figuras infantis. Mesmo o explicit do relato, e à semelhança do que mencionámos no que diz respeito ao volume editado pela Dom Quixote, afigura-se intencionalmente “ajustado” a um leitor mais novo, supostamente menos familiarizado com o sofrimento ou a tragédia, tendo o texto matricial sido passado pelo filtro de uma relativa “suavização”:

O príncipe acabou por casar com outra jovem, e a Pequena Sereia, apesar de triste e de coração partido, desejou felicidades ao príncipe e decidiu voltar ao mar, e aceitar a maldição da bruxa... / Ao mergulhar no mar, recuperou a sua cauda de sereia, mas continuou sem voz. As suas irmãs receberam-na de volta com alegria e a Pequena Sereia prometeu impedir que a Feiticeira dos Mares amaldiçoasse outras sereias. (s/n, 2020, s/p)

A Pequena Sereira (2020), ilustrações de Gwé.
Figura 5.
A Pequena Sereira (2020), ilustrações de Gwé.


Considerações finais

Fica claro que a sobrevalorização do cuidado gráfico pode funcionar como um instrumento de sedução, de captação do olhar e do interesse pela leitura de obras clássicas, desde tenra idade, assumindo-se como um reforço positivo de aproximação ao livro e, neste caso, particular à obra de Andersen. A fisicalidade e a interatividade inerente à leitura de um livro-objeto tornam-nos artefactos de importância significativa até aos três/quatro anos de idade (como livros em forma de boneco, livros com aplicações táteis, livros-puzzle, entre outros), fase, recorde-se, marcada pelo experimentalismo. Assim, “em termos práticos, significa o desenvolvimento de acções assentes em experiências concretas como ver, comparar, ouvir ou cheirar, que permitam gerar e fortalecer conexões neurais sobre a realidade” (Silveira, 2014, p. 102). Posteriormente, deste período até aos seis anos, as atividades de promoção da leitura devem passar, então, a valorizar símbolos ou representações, isto porque “[...] o ser humano não tem consciência da existência daquilo que não experimentou [inicialmente] pelos sentidos e pelas vivências” (Silveira, 2014, p. 104). Como tal, ações concretas (o manuseamento ou o toque) sobre objetos reais são imperativas, para que, mais adiante, a criança conquiste a capacidade de se concentrar, de se abstrair e de imaginar durante a leitura, como sublinha Teresa Silveira (2014). Ora, os livros que enformam o nosso corpus valorizam muito especialmente, como procurámos explicitar, a dimensão experimental e física do suporte de leitura e apelam a um contacto precoce com intrigas intemporais por via dos sentidos.

Importa, pois, aproximar os mais pequenos da obra de um autor cuja infância dolorosa acabou por trazer para a escrita enquanto adulto, uma escrita que viria a tornar-se célebre pela beleza das vicissitudes e das fatalidades da existência quotidiana, pois

a riqueza da sua obra ensina-nos a conhecermo-nos a nós próprios. [...] Aguça-nos o olhar para o que é genuíno e não é genuíno nos homens e dá-nos o dom incompreensível da poesia, ao mesmo tempo que pela simplicidade de expressão torna a sua mensagem compreensível para todos. (Bo Grønbech apud Duarte, 1995, p. 86)

No entanto, as obras relidas estão longe de se assumirem como caminhos substitutos dos hipotextos que as originaram, pois evidenciam-se como revisitações sucintas, assentes em discursos verbo-icónicos, em certos casos, muito contidos ou, até mesmo, aligeirados nos quais os tópicos da morte e do perigo surgem tenuamente assinalados. Não obstante, num período no qual o contacto com modelos do passado, como procurámos expor, se cinge cada vez menos à reprodução fiel e à repetição do objeto-matriz, mas passa, sobretudo, pela aproximação lúdica e experimental, sendo o leitor chamado a envolver-se ativamente no processo de decifração, consideramos que o contacto com o corpus analisado funciona como uma relevante porta de entrada concomitante a outras materialmente mais comuns, no universo do maravilhoso dos três contos do autor dinamarquês levados a análise. Em suma, uma descoberta precoce, por via também dos sentidos ou do livro-objeto, de um registo literário de qualidade universalmente reconhecida, mesmo que o conteúdo, por vezes, seja alvo de um processo depredativo, poderá, enfim, ser proporcionada pelas obras de Hans Christian Andersen reconfiguradas, num percurso de formação literária idealmente inaugurado antes de se saber ler.

Referências bibliográficas

Bibliografia ativa

Andersen, H. (2015). Contos. Temas e Debates/Círculo de Leitores.

Kubašta, V. [ilust.] (s/d). O Isqueiro Maravilhoso. Gonçalo W. de Vasconcelos – Electroliber.

Pelon, S. (2018). A Pequena Sereia. Dom Quixote.

S/n (2004). O Soldadinho de Chumbo. Asa Editores.

S/n (2020). A Pequena Sereia [ilustrações de Gwé]. Booksmile.

S/n. (s/d). O Soldadinho de Chumbo. Agência Portuguesa de Revistas.

Bibliografia passiva

Alaca, I. (2018). Materiality in picturebooks. Em B. Kummerling-Meibauer (Ed.), The Routledge Companion to Picturebooks (pp. 59-68). Routledge.

Barreto, A. G. (2002). Dicionário de Literatura Infantil Portuguesa. Campo das Letras.

Bravo-Villasante, C. (1977). História da Literatura Infantil Universal. Volume I. Editorial Veja.

Carpenter, H. e Prichard, M. (2005). Andersen, Hans Christian. Em H. Carpenter e M. Prichard, The Oxford Companion to Children’s Literature (pp. 20-23). Oxford University Press.

Duarte, S. (1995). Andersen e a sua obra. Livros Horizonte.

Linden, S. (2021). Tout sur la Littérature jeunesse de la petite enfance aux jeunes adultes. Éditions Gallimard Jeunesse.

Lipovetsky, G. e Charles, S. (2020). Os Tempos Hipermodernos. Edições 70.

Machado, A. (2002). Como e Por que Ler os Clássicos Universais desde Cedo. Objetiva.

Silva, S. R. (coord.) (2020). Clássicos da literatura infantojuvenil em forma(to) de livro-objecto. Uminho Editora.

Silva, S. R. da e Gomes, J. A. (2005). Hans Christian Andersen en lingua portuguesa. Em B.-A. Roig Rechou (Coord.), Hans Christian Andersen, Jules Verne e El Qujote na literatura infantil e xuvenil do marco ibérico (pp. 75-89). Edicións Xerais de Galicia.

Silveira, T. (2014). Cérebro e Leitura – Fundamentos neurocognitivos para a compreensão do comportamento leitor no processo educativo. Lema d’Origem.

Soares, L. (2001). Guerra Junqueiro e a Literatura para Crianças. Malasartes. Cadernos de Literatura para a Infância e a Juventude, 6, 7-16.

Teixeira, C. (2008). Os contos de H. C. Andersen: uma visão romântica da infância. 7.º Encontro Nacional, 5.º Internacional: Investigação em Leitura, Literatura Infantil e Ilustração, p. 226-240.

Notas

1 Conferir, por exemplo: “Innumerable artists have illustrated English editions of Andersen, ranging from the highly insuitable Mabel Lucie Attwell (1913), to Arthur Rackham (1932) and Rex Whistler (1935)” (Carpenter e Prichard, 2005, p. 23).

2 Curiosamente, Andersen, em Berlim, tornou-se amigo dos irmãos Grimm, “though their first meeting was blighted by Jacob’s never having heard of him” (Carpenter e Prichard, 2005, p. 22).

3 Nesta coleção, com arquitetura gráfica e ilustração do referido autor checo, traduzida em língua portuguesa, podemos encontrar ainda os títulos: Capuchinho Vermelho, Branca de Neve e os 7 anões, João e Guida, A Bela Adormecida, O Gato das Botas, A Gata Borralheira, Dora e os três Ursos, Os três Porquinhos, A Galinha dos Ovos de Ouro; As Botas de 7 Léguas e O Baú Voador.

4 Convém lembrar que “a obra de Andersen revelou a sua enorme atracção logo no nascimento do cinema. Muitos episódios dos contos são puras cenas de filme e a potencialidade que neles se contém de sugestão cinematográfica prontamente se tornou evidente” (Duarte, 1995, p. 100).

Autor notes

adianamaria20008@gmail.com bsara_silva@ie.uminho.pt

Informação adicional

Como citar este artigo : Martins, Diana e Silva, Sara Reis da (2022). Contos de Andersen em livros-objeto: ontem e hoje. Elos. Revista de Literatura Infantil e Xuvenil, 9, “Artigos”, 1-14. ISSN-e 2386-7620. DOI http://dx.doi.org/10.15304/elos.9.7913

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Elos: Revista de Literatura Infantil e Xuvenil

Vol.
Num. 9
Año. 2022

Contos de Andersen em livros-objeto: ontem e hoje

Diana Martins, Sara Reis da Silva
Escola Superior de Design, Barcelos Universidade do Minho, Portugal, Universidade do Minho
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